domingo, dezembro 14, 2014

O que Deus tem a ver com isso


Encontro, amiúde, veganos que creem em Deus e acreditam que os animais são “uma graça de Deus”. Como não gosto de conversas religiosas (nem gosto muito de conversa, na verdade), deixo que o assunto morra com um aceno de cabeça, um sorriso sonso ou simplesmente não dou prosseguimento aos comentários na internet. Costumo querer argumentar sobre isso quando sei que tenho alguma chance de inspirar dúvidas e mudanças; se vejo que o debatedor está numa sessão hipnótica que pode durar uma vida, não perco meu tempo – para mim, o tempo que tenho para usufruir é só o de um ciclo e somente nesta terra, não podendo ser desperdiçado. No entanto, meu pensamento não é modorrento como meu papo. Eu realmente gostaria que as pessoas se livrassem dos pesados grilhões imaginários de Deus e eu realmente gostaria que os veganos se propusessem a divagar mais sobre isso para aprimorar suas condutas no que diz respeito à causa animal. Quando você defende animais (que são vítimas da escravidão e das papilas gustativas de uma espécie que acha fancy ser gourmet) e ao mesmo tempo acredita em Deus, algo se perde. Obviamente você se perde porque desperdiça a própria breve existência com um delírio, mas os animais perdem muito mais. Ao estarmos certos de que no final das contas haverá um juiz para justiçar os oprimidos, ficamos um pouco preguiçosos e conformados. “O que esses comedores de porcos fazem é horrível, mas Deus está olhando e tomando notas”. Espera-se por uma justiça que nunca virá.

Existem inúmeros argumentos que contestam a existência de Deus, assim como há uma porção de réplicas cósmicas para aqueles argumentos. A usual é “você não pode provar que Deus não existe” – que pode ter a continuação, feita por céticos requintados “não-radicais”, em “portanto o ateísmo é uma tolice e todos deveriam ser agnósticos”. Não concordo com isso. Mas estou indo rápido demais.

No começo deste ano, li um livro chamado A goleada de Darwin. Faz parte da minha longa lista de livros sobre a evolução que pretendo destrinchar para me especializar, de maneira diletante, num tema que é fabuloso (não entendo como não podem achar fabulosa, por exemplo, a explicação para o desenvolvimento da asa de um morcego) e sempre me interessou. É um livro modesto que eu estava prestes a recomendar como “leitura nota dez” para colegas que quisessem entender os mecanismos básicos da evolução e a contenda entre evolucionistas e criacionistas. Após anos de convívio com intelectuais que tentavam me empanturrar com textos absurdos de Foucault e Deleuze, desprendi-me das convenções e das frases feitas obrigatórias para atestar genialidade (“Foucault escreve deveras bem”) e assumi que a escrita que eu valorizo é aquela que consegue ser clara, com bom vocabulário, meio literária, explicativa. Por que eu tenho que admirar alguém que trata um assunto já difícil com um texto extremamente prolixo? A prolixidade é, muitas vezes, o recurso patético de quem não sabe escrever, não sabe ensinar ou não sabe nem o que fala. Ao ler A goleada de Darwin até o penúltimo capítulo, eu sabia que estava diante de um livro simples, esclarecedor, com conteúdo – um material que merecia compartilhamento. O autor, Sandro de Souza, explica como a evolução funciona e quais as discórdias entre a criação e a seleção natural. Parecia que tudo correria como esperado. Até que no último capítulo o autor diz considerar, sim, possível a união entre criacionistas e evolucionistas, como quem diz “um biólogo evolucionista não cai em contradição quando revela crer em divindades”. Foi uma finalização de livro lastimável, já que foi no decorrer dos capítulos anteriores que eu tive um “click” sobre a impossibilidade de essas duas vertentes andarem juntas. O livro continua sendo interessante. Exceto o último capítulo.

O que os capítulos anteriores do livro de Sandro de Souza me fizeram pensar contribuiu muito para o assentamento do meu ateísmo. Antes, quando um agnóstico me abordava com seu ar monástico para ironizar minha tomada de posição (radical e pueril, pare ele), eu simplesmente retrucava: “mas por que Ele existiria?” Hoje eu teria uma fala melhor. Aliás, duas falas.

Suponho que todos que me leem tenham a evolução como um fato. E suponho que conheçam um pouco da história toda. Muitos devem acreditar que Deus (ou “uma força superior”) foi o responsável pelo desenrolar da evolução. Eu não partilhava dessa ideia, mas partilhava da ideia de que ela era compreensível (“não acredito que Deus seja responsável pela evolução, mas não é tão obtuso que alguém pense isso”). Após o “click”, não acho mais.

Caracteres homólogos

A história da terra envolve números na casa dos bilhões. Antes de uma vida mais complexa aparecer, o mundo ficou por aproximadamente um bilhão de anos somente com bactérias. Digamos que Deus estivesse regulando tudo isso. É uma entidade para a qual não existe uma severa noção de tempo: milhares de anos, para Ele, podem ser como um segundo nosso e só Ele pode entender de fato o que significa redenção eterna ou danação eterna, porque para nós, humanos, a eternidade parece uma coisa muito estapafúrdia. Ele estava lá, esperando por um bilhão de anos para que, finalmente, decidisse tornar alguma bactéria mais complexa. E a evolução foi acontecendo. Alguns animais que apareceram no mar foram para a terra e alguns deles voltaram para a água milhares de anos depois, gerando mamíferos aquáticos (a baleia tem um ancestral terrícola, por exemplo). Apareceram animais que evoluíram para outros tantos com órgãos homólogos (Deus sempre soube que os dedos de um gato fariam sentido quando comparados à mão humana, pois o mesmo arquiteto pode usar as mesmas bases para criar ou permitir a evolução de diferentes bichos). Deus sempre esteve coordenando os parentescos e decidindo quando algum grupo de animais se separaria dos seus por meio de uma barreira geográfica e originaria uma espécie diversa. Deus estava lá quando apareceu o primeiro símio. Até que, um dia, Ele ficou exausto de tantos animais com vidas “vãs” e decidiu dar esclarecimento a uma espécie. Há pessoas que acreditam que os homens têm alma e os animais, não. A elas eu pergunto onde exatamente está o primeiro ser com alma da linha evolutiva. Chimpanzés são os parentes vivos com os quais mais temos semelhanças (digo isso porque, pensando evolutivamente, todos somos parentes, em maior ou menor grau, de todos os animais), mas os cristãos duvidam que eles tenham alma. Alma é mérito do Homo sapiens. Contudo, quem conhece a evolução sabe que a separação por espécie é muito arbitrária e desejosa de organização. Não podemos tirar alguém de sua linha evolutiva e dizer “esse é certamente o primeiro de sua espécie”, porque a evolução acontece de modo gradual e as divisões são feitas mais para fins de organização do que de mudança severa. O pai do primeiro Homo sapiens também poderia ser um Homo sapiens e talvez o filho do primeiro Homo sapiens fosse até menos Homo sapiens que seu avô. Mas a ciência precisa catalogar, precisa determinar o momento em que uma espécie se separa de outra na linha evolutiva. Qual foi, então, o primeiro ser a quem Deus decidiu dar uma alma? Se esse ser já era Homo sapiens, mas era extremamente rude, não possuía uma cultura elaborada – mesmo assim podemos dizer que ele já possuía alma? Quer dizer, então, que um dia Deus olhou para os animais de uma linha evolutiva e disse: “você terá a alma que seu pai não teve”? Se acreditamos na evolução como um fato (abundantemente comprovado), sabemos que ela opera através de uma sequência muito longa de gerações. Se a evolução fez o Homo sapiens surgir do Homo erectus e as pessoas acreditam que somente o Homo sapiens possui alma, podemos dizer que o pai do primeiro Homo sapiens (que seria, para fins de organização, um Homo erectus) não possuía alma. Um crente, não constrangido com esse despropósito, dirá que Deus precisava escolher alguém, em algum momento, para colocar alma. Como eu disse, se o filho do primeiro Homo sapiens tiver mais características de Homo erectus que seu próprio avô, mesmo assim ele ganhou uma alma (pelo visto, sem merecer, para os parâmetros do próprio Criador). Seu avô vai apodrecer na terra como todos os outros animais. A ele algo grandioso foi reservado, pois Deus decidiu que a partir de seu pai todos daquela linhagem teriam alma. Deus pode andar de mãos dadas com a evolução? Parece que não.

Alma: somente para o último

"Repito: os humanos não descendem de macacos. Temos um ancestral em comum com eles. Por acaso, o ancestral comum seria muito mais parecido com um macaco do que com um homem, e provavelmente o chamaríamos de macaco se o encontrássemos, há cerca de 25 milhões de anos. Mas embora os humanos tenham evoluído de um ancestral que poderíamos sensatamente chamar de macaco, nenhum animal dá à luz uma nova espécie instantaneamente, ou pelo menos não a um ser tão diferente de si mesmo quanto um homem de um macaco, ou mesmo de um chimpanzé. A evolução não é assim. A evolução é um processo gradual de fato, e além disso só tem poder explanatório sendo gradual. Enormes saltos numa única geração – como na ideia de uma macaca dar à luz um ser humano – são quase tão improváveis quanto a criação divina, e excluídos de consideração pela mesma razão: estatisticamente improvável em demasia. Seria ótimo se os que se opõem à evolução se dessem o pequeno trabalho de aprender ao menos os rudimentos daquilo a que se opõem". 
(Richard Dawkins em O maior espetáculo da Terra)

Nesse mesmo livro, O maior espetáculo da Terra, Dawkins cita uma frase de Darwin, retirada de A origem do homem, que sintetiza bem o que significa a impossibilidade de declarar que exatamente-no-ano-x-tivemos-o-primeiro-autêntico-homem-na-Terra: "Em uma série de formas que passaram de modo gradual e imperceptível de alguma criatura simiesca ao homem como ele hoje existe, seria impossível fixar em algum ponto definido onde o termo 'homem' deve ser usado". 

Essa explanação pode também levar ao questionamento daqueles que acreditam que “Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança” e ao mesmo tempo aceitam a evolução. Ora, então Deus sempre foi uma entidade "humana" que fez o universo e esperou bilhões de anos para dar vida a uma figura (o homem) que fosse Sua imagem e semelhança? Isso nos leva à ideia de que o homem é a ponta final da evolução, a espécie superior à qual Deus sempre quis chegar. Converse com qualquer biólogo evolucionista sobre a motivação teleológica da evolução e receberá uma aula gratuita para corrigir esse descabimento.

[rebatendo argumentos que tentam defender que um macaco é superior a uma minhoca] "'Os macacos [e outros animais "superiores"] são mais hábeis para sobreviver do que as minhocas [e outros animais "inferiores"]'. Isso não contém um pingo sequer de sensatez, muito menos de verdade. Todas as espécies vivas sobreviveram pelo menos até o presente. Alguns macacos, como o mico-leão-dourado, estão em risco de extinção. Têm mais dificuldade para sobreviver do que as minhocas. Os ratos e as baratas prosperam, apesar de serem considerados por muita gente como 'inferiores' aos gorilas e orangotangos, ambos perigosamente à beira de extinção". 
(Richard Dawkins em O maior espetáculo da Terra)

O animal mais "evoluído" é o que está melhor adaptado. Um homem está adaptado à terra e tem condições de sobreviver nela. Um cavalo-marinho está adaptado à água e sobrevive bem nela. Troque o ambiente dos dois e verá que o conceito de superioridade não faz sentido. Se repentinamente a Terra for atacada por um corpo estranho e pesado e toda a humanidade morrer, a barata que permaneceu viva e vai procriar certamente se mostrou muito mais "evoluída" por sua surpreendente adaptação. 

Essa primeira parte nos leva a algumas ponderações interessantes sobre a ideia de Deus e o fato da evolução serem como água e óleo. Vamos considerar que nem todo mundo percebe Deus e Sua criação do mesmo modo e formular algumas perguntas (comuns e/ou veganas) em cima de alguns casos: 

1. Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que somente o homem (Homo sapiens) possui alma – Deus em algum momento decidiu dar alma a um ser da linhagem e aqueles que viriam a partir dele teriam alma? Isso significa que o pai do primeiro agraciado com alma não tinha alma? Isso também significa que um animal teria parido um animal de espécie diferente da dele e por isso somente o Homo sapiens possuiria alma, e não o Homo erectus? Ou seja, nossos ancestrais não tinham alma, mas de repente passaram a ter? Um rapaz primitivo estava lá, cavoucando um ninho, e de repente recebeu alma, coisa que nem sua mãe, nem seu pai, nem seus irmãos teriam? Uma águia deu o azar de não ter alma só porque não era a imagem e semelhança de Deus? Ou será que a águia só não tem alma porque ela não é capaz de inventar histórias sobre líderes invisíveis reguladores de moral e doadores de almas? Talvez a águia só não tenha alma porque isso não faz nenhum sentido para a sobrevivência e perpetuação dela na Terra. Se isso fizesse, ela teria – senão morreria, mal adaptada por não conceber a noção de alma. 

1.1. Pessoas que creem em Deus muitas vezes tentam explicar a razão de nossos sofrimentos na Terra. São testes, são provações, são coisas sobre as quais Deus não quer decidir agora: mas sofrer aqui pelo bem pode garantir para nós um espaço no céu. Sofremos para obtermos felicidade eterna posteriormente. Nosso sofrimento tem explicação e é efêmero. E o sofrimento dos animais que não têm alma? Qual é o sentido dele? Por que sofrem de graça? Deus acha bom que animais sofram porque não têm alma? Mas eles sentem dor e não serão compensados por um póstumo paraíso que reparará tudo. Por que razão eles sofrem nas mãos uns dos outros e dos humanos? Um leão às vezes leva horas para comer um veado até um ponto em que ele (o veado) não esteja mais ciente do que está acontecendo. Por que esse veado precisa sofrer assim se Deus é tão benevolente e só quer que soframos para que mereçamos o céu (considerando que o veado, sem alma, jamais irá para o céu)? Por que milhares de porcos morrem todos os dias após uma vida miserável sem espaço para se mexer, sem luz, sem comida adequada, sem socialização com outros porcos se esse sofrimento jamais será compensado para eles? 

2. Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que todos os animais possuem alma – suponho que nessa categoria estejam somente veganos, pois achar que os animais possuem alma e comê-los parece um grande desrespeito, já que Deus não permitiria que comêssemos seres com alma (bom, talvez permita, quem conhece o Deus do Antigo Testamento e o do Novo sabe que Ele muda muito de opinião). O que exatamente são "todos os animais"? Todos os seres vivos que pertencem ao reino Animalia? Então um molusco possui alma? 

3. Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que somente animais domésticos possuem alma (quando Heitor e Bingo morrerem, irão juntos para um lugar onde não haverá vacas nem porcos) – por que somente seu cachorro e seu gato são seres com alma? Por que Deus não daria alma a um porco, que é mais inteligente que um cachorro? Porcos e cachorros têm um ancestral comum. Em que momento das linhagens um passou a ser tão refinado que mereceu ganhar uma alma em detrimento do outro? Cães vêm de lobos, são quase como lobos domesticados. Se os lobos não têm alma e os cães têm, quer dizer então que Deus decidiu dar alma aos cães só porque eles passaram a viver ao redor e dentro de casas humanas? Alma, então, é apanágio somente de animais domesticados? 

4. Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução, mas ninguém possui alma (não há céu, não há inferno, há apenas um Criador, um "ser superior" moralista) – a evolução é perversa. Se Deus está  por trás dela, podemos dizer que Deus é perverso? Para que uma espécie dê lugar a outra, algumas vezes acontece uma guerra por território e comida. Darwin se baseou no pensamento de Malthus para teorizar a seleção natural: o crescimento da população ocorre em progressão geométrica enquanto a quantidade de alimentos cresce em progressão aritmética. Assim, não há recursos para todos e disputas pela escassez começam a acontecer. Quando uma ilha, por exemplo, é ocupada por duzentos ratos, mas há somente comida para cem, sabemos que muitos ratos morrerão de fome. Animais mal adaptados a uma mudança climática, a uma alteração no padrão alimentar (uma espécie carnívora passa a viver num lugar em que só há vegetais para comer) ou à seleção sexual costumam sofrer muito antes de morrer. Por que sofrem, se a moral condena o sofrimento sem sentido? E se a moral divina não condena o sofrimento e o tem como natural, por que achamos certo matar galinhas, mas execramos os chineses que matam cachorros? Se é bom que a evolução ocorra "de modo natural", por que preocupar-se com o sofrimento de povos que não têm nada a ver com a propagação dos nossos genes? Por que não concentramos nossas preocupações somente em nossos filhos (ato pró-evolucionário) em vez de sentir pena e querer adotar um abandonado filho alheio (ato antievolucionário)? Sofrer por não estar bem adaptado e morrer em decorrência disso faz parte da evolução.

Acho que são questões cruciais para pensarmos exatamente que Deus é esse que criamos para acreditar. A frase de Voltaire "se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo", muito usada por cristãos, na verdade tem mais sentido se usada por ateus numa continuação óbvia: "e como Ele não existe, nós o inventamos". 

Um cético não convencido pode se apegar àquele paradoxo de que "é impossível provar a inexistência de Deus, então não podemos nos posicionar como ateus". Não acho impossível provar a inexistência de Deus. Essa é a minha segunda fala em defesa do ateísmo.

Nós sabemos que o Papai Noel não existe porque sabemos exatamente quem o criou e sabemos que antes dessa criação ninguém tinha necessidade da existência dele e não há relatos sobre ele. Sabemos que uma figura não existe quando descobrimos quem deu origem a ela. Não podemos dizer que alguém, um dia, deu origem a Deus e que essa ideia perpetuou apenas culturalmente, como no caso do Papai Noel. Há casos de civilizações isoladas que tinham seus deuses e os cultuavam como nós cultuamos nosso Deus. Não devem ter aprendido essa religiosidade com outros povos, já que estavam isolados por centenas/milhares de anos. Isso nos dá a entender que Deus parece uma ideia estrutural, fruto das nossas mentes. Mas, esperem, "mente" é uma palavra que pode ser perigosamente abstrata, prefiro usar cérebros. Nossos cérebros (é nessa hipótese que acredito) criaram a ideia de Deus ou de deuses: enfim, nossos cérebros humanos têm necessidade de um criador, seja ele um deus, uma deusa, vinte deuses de formas variadas. Se essa ideia sobreviveu por tanto tempo, pode ser que tenha sido elementar para que nós sobrevivêssemos na história da evolução, e pode ter começado há muito tempo, antes mesmo do aparecimento do Homo sapiens, talvez de modo rudimentar (não tenho muito conhecimento sobre o Homo erectus para dizer se ele já manifestava algum fiapo religioso). Não só isso propiciou a sobrevivência e a perpetuação da espécie (o homem de Neandertal enterrava seus mortos e foi extinto), pois devemos sempre pensar a boa adaptação como um provável conjunto de fatores favoráveis que vão aparecendo gradualmente e conquistando permanência. Só que a religião para o homem parece ter sido, em algum período crítico, como a perna para um aleijado. Portanto, comungo a ideia de que Deus é fruto de nossos cérebros. Como poderíamos provar sua inexistência? Esquecendo aplicações éticas na ciência, poderíamos provar a inexistência de Deus se descobríssemos a região cerebral que precisaria ser "apagada" para que a ideia de Deus também se apagasse. Infelizmente, tal experimento só seria possível se as cobaias vivessem separadas do resto do mundo, sem poder absorver uma cultura já saturada de religiosidade e outras superstições. Sem cultura religiosa e sem aquele pedacinho do cérebro que poderia ser a origem de Deus, descobriríamos se Deus seria apenas uma criação cerebral. Algum desavisado pode dizer: "mas se a ideia de Deus foi importante para que nossa espécie sobrevivesse, os outros animais também precisariam dela para sobreviver". Ora, negativo, cada espécie é um caso e precisa de coisas muitíssimo diferentes para sobreviver se comparada às outras. Uma águia precisou de um bico adunco para sobreviver e não é por isso que eu também preciso. Os animais, ao que parece, não sentem necessidade de Deus. Deve ser por isso que eles não estão nos planos do paraíso. Somente é martirizado pelos desejos de Deus quem acredita na existência de Deus. Bem, tragicamente, quem não acredita também é martirizado, pois vive numa sociedade que consegue misturar até o público com o religioso. É por causa disso que a militância ateísta faz sentido: porque o ateu militante quer que seus pares tenham coerência e conhecimento; ele quer, como o iluminista enciclopedista, que a sociedade em que ele vive possa se esclarecer. Mas isso é outra história.

E O QUE OS VEGANOS TÊM A VER COM ISSO?

A evolução moderna nos mostra que somos todos aparentados aos outros animais. Em Freud – além da alma, filme de 1962 com roteiro de Sartre, há bem no início uma fala simples, mas atinada, sobre as três grandes revoluções que abalaram a ideia que o homem tinha sobre si mesmo como superior e central: a revolução causada por Copérnico, ao tirar a Terra do centro do Universo; a revolução causada por Freud, ao tirar o homem do palácio do autocontrole, do livre arbítrio e da vontade consciente; e a revolução causada por Darwin, ao tirar o homem da sua pretensa superioridade diante de outras espécies. Realmente essas três bombas abalaram o que pensávamos sobre nós mesmos. Eu, como vegana, pude sentir o peso da nossa arrogada altivez quando percebi que comíamos carne e usávamos outros animais para roupas e trabalhos forçados justamente porque achávamos que éramos a espécie à qual toda a história da evolução quis chegar. Não me interessa que leões comam carneiros. Não sou um leão e não vou escolher quais as características de um leão que justificarão maus hábitos meus (se querem ser como os leões, não só comam carne, mas comam carne crua, matem seus filhos que nascerem com deficiências, matem filhos de fêmeas que vocês têm em vista, lutem até a morte com machos que estão interessados na mesma fêmea, não trabalhem e passem a maior parte do dia dormindo, à espera de outra caçada). Portanto, faz sentido pensarmos seriamente sobre a evolução se somos veganos.

Se somos veganos e pensamos seriamente sobre a evolução (lemos sobre ela), a ideia de Deus não faz sentido. Como expus acima, como é que Deus dá alma a um ser e não dá alma a seu pai? Como é que Deus permite o sofrimento em vão dos animais? Não é possível não perceber que falar de Deus atrapalha nossa militância em prol dos animais. Então você pode pensar que fica revoltado com o que acontece, arregaça as mangas, mas mesmo assim espera que Deus acerte as contas no final. Por mais que você negue, isso colocará um pouco de freios na sua atitude. Você continuará indo a churrascos de modo sorridente, compreensivo, tolerando piadas ruins e gastas porque acha que não tem condições de julgar ninguém e quem vai julgar é Deus. (Interessantemente, duvido que você seria tão plácido e risonho se um vizinho que mata um gato por dia, com as próprias mãos, convidasse, de maneira polida [ele odeia gatos, mas simpatiza com você e com outros humanos], você para um café com cupcake, mesmo que o cupcake fosse vegano.) Se Deus estivesse agindo, não precisaríamos assinar petições diariamente.

Os animais não acreditam em nosso Deus. A porca que está há mais de um ano deitada na mesma posição, recebendo ração no gargalo, parindo dez porquinhos uns atrás dos outros sem sequer poder cheirá-los e cuidar deles não quer saber de Deus, de justiça divina, de pagamento póstumo. Ela gostaria que os humanos, que não são carnívoros (por mais que repitam essa baboseira como uma oração), parassem de explorá-la, até porque eles não dependem da carne dela para sobreviver e ter saúde. Quando esperamos que Deus faça alguma coisa, esperamos que um duende transforme o mundo para nós. Perdemos energia. Perdemos tempo. Nós só temos essa vida aqui (que é maravilhosa e possui muito significado se soubermos aproveitá-la, sem que Deus precise estar aí para conferir sentido à nossa morte – vamos amar os animais como nossos irmãos e aceitar que morreremos exatamente como eles), os animais só têm essa vida. Rezar, colocar nas mãos de Deus jamais fará um animal sair de sua condição miserável. Deus é um delírio, um atraso, uma acomodação. É claro que não é obrigatório que um vegano se torne ateu. Mas que ajuda, ajuda. Tanto para o próprio vegano quanto para os animais.

"Se Deus conhecia de antemão os pecados de que a humanidade seria culpada, Ele foi, então, claramente responsável por todas as consequências desses pecados quando decidiu criar o homem".
(Bertrand Russell - Matemático e filósofo ateu) 

terça-feira, setembro 16, 2014

Editoras


Sou maníaca por editoras. Tenho as minhas preferidas. Às vezes elas me decepcionam. Por exemplo, fico chateada (de verdade) quando uma editora realmente excelente publica o livro de um autor péssimo ou "das massas". Como trabalho em uma biblioteca pública e entendo de livros de algumas áreas (para outras sou uma anulação: até hoje não me familiarizei com os livros do setor 658, que é o da Administração, e sempre me pergunto como é que essa área pode ter tantos livros se tudo parece tão igual... e entediante), participo dos pedidos de livros. Pesquiso os dados do livro em sites de livrarias virtuais - geralmente na Saraiva, que é uma das mais completas no Brasil - e coloco na planilha de compras. Também peço livros que não me agradam em nada, mas são populares. Foi assim, pesquisando alguns livros que estavam na caixa de sugestões da biblioteca (porque também temos que atender aos pedidos dos alunos), que encontrei uma "obra" desse manipulador barato chamado João Verde publicada pela Martins Fontes. Martins Fontes publicando João Verde. Foi revoltante. Eu achei que a Editora Intrínseca é que tinha detido todo o poder sobre as páginas desse cabeça-de-vento. 

A Martins Fontes é uma dessas editoras que me agradam. O material é bom, as traduções costumam ser feitas por gente competente e costumam ser elogiadas por quem entende de traduções (não eu, infelizmente, que fico apenas bebendo do conhecimento alheio). No meu site (blog) favoritado "Não gosto de plágio", da Denise Bottmann, não há menções negativas sobre a Martins Fontes quanto a cópias ou erros de tradução. Muitos dos livros sérios que eu compro são da Martins Fontes e não me lembro de ter visto qualquer erro gramatical neles. Prezo muito esse compromisso com a norma culta. Mas é um pouco desanimador saber que mesmo uma editora tão singular tenha que se prostituir para conseguir se manter no mercado. É claro: se publicar os livros do João Verde fizer com que a Martins fique segura enquanto empresa e fizer com que consiga manter a sua coleção de livros bons, não me oporei tanto a isso. Só que não consigo ficar menos chateada. Talvez ela já tinha essa linha anteriormente e eu não sabia. Nem quero pesquisar muito sobre isso agora. 

Coleção de textos de Schopenhauer
lançada pela Martins Fontes

Quando alguém me diz que comprou um livro (muito raro; todo mundo acha que livros são caros), logo pergunto qual é a editora. É um filtro de extrema importância. Você consegue respeitar alguém que é adulto e compra livros da Martin Claret? Estamos falando de alguém que está atrasado quanto a informações essenciais sobre editoras; ou de alguém que não presta atenção no que lê (num livreto da Claret é possível achar dezenas de erros de ortografia - quem é que continua lendo um livro com erros ortográficos?); ou de um muquirana. Não entendo como um indivíduo que se considera inteligente pode querer encher suas prateleiras com material de quinta categoria que manda a gramática às favas e traduz textos alemães da versão espanhola da versão inglesa. Deve ser o mesmo indivíduo que só sai para comprar livros quando o cofrinho se encheu de moedas. Isso, claro, porque nem cheguei na questão do plágio. Não é só a Denise Bottmann que faz inúmeras postagens sobre a falta de vergonha da Claret em copiar traduções alheias. Esse é um assunto fácil em corredores de universidades. Se essa editora publica algum livro "bem traduzido", tenha certeza: é plágio. Mais algum defeito? Claro. Sou uma amante da estética dos livros. Livro bom é livro com conteúdo responsável. Livro ótimo é livro com conteúdo responsável e uma adequação estética bem pensada. A fonte em que a Claret edita é horrível, o papel que ela usa nas páginas nem fanzines anarcopunks usam, as capas são antiquadas (as imagens sempre me remetem a romance espírita, astrologia, feng shui ou lendas de cavaleiros). Será possível elencar mais defeitos para influenciar as pessoas a pararem de dar dinheiro para essa porcaria? Deve ser, mas não quero pensar sobre isso agora. 

Há as editoras que já foram boas e se perderam um pouco, como a Rocco e a Círculo do Livro. Os livros da boa fase delas podem ser encontrados em sebos; um ou outro de qualidade da Rocco é que foram publicados há poucos anos. (Na verdade, a Círculo nem existe mais.) Não são editoras perfeitas, é preciso dizer. Até hoje sinto muito desgosto ao ter que recomendar para colegas um livro excelente com uma capa desabonadora. É o caso de Memórias de uma menina católica, da Mary McCarthy pela Círculo do Livro. A introdução é um sonho de qualidade, a narrativa faz você parecer o anjo invisível da autora (o livro é uma autobiografia com doses de ficção): você está ali sentado no sofá vendo a Mary criança ser maltratada pelo padrasto que era o mestre das torturas psicológicas, você está ali no carro quando a Mary adolescente tem sua primeira relação sexual, você se emociona com o amor que ela tinha por escritores antigos no tempo do colégio. E então a capa do livro mostra três daminhas de honra, sendo que a do meio faz uma cara "sapeca". Se eu não conhecesse a autora de antemão, acharia que aquele livro era sobre as travessuras de uma garotinha no colégio interno. Eu jamais compraria esse livro se antes não tivesse lido O grupo. Tenho que adivinhar que há gente insensível projetando o design de bons livros dentro de uma editora? Como vou me arriscar na compra de um livro em que a capa manda a mensagem subliminar "lixo mainstream"? 

Um livro que grita: "essa capa
não me representa"

Algumas editoras publicam livros bons e livros ruins quase na mesma medida. Acho que essa é a realidade da Record. Tenho livros boníssimos feitos por ela, como livros do Stephen Jay Gould e do Matt Ridley, mas sei que ela não está nem aí para a publicação de material fácil. Por muito tempo a Record era responsável pela publicação dos livros do Sidney Sheldon, por exemplo. Hoje, ela é um grupo editorial onde encontramos nomes de outras editoras boas, como José Olympio e Civilização Brasileira, e de editoras fracas. Mas (alguma editora que não mereça um mas?) é outro nome envolvido em fraudes de traduções, como mostra uma postagem da Denise Bottmann AQUI. Por muito tempo, a Record publicou livros de diversos autores em que se lia na capa "tradução de Nelson Rodrigues". Era mentira. Nelson não sabia inglês e Ruy Castro escreveu, em O anjo pornográfico, que o biografado era "o mais acabado monoglota da língua portuguesa" (isso tudo li lá no nãogostodeplágio; recomendo esse blog com direito a puxada de braço e ranger de dentes na orelha). Por que a farsa? Porque muita gente compraria um livro traduzido por Nelson Rodrigues, o polêmico interessante da época. E é muito engraçado ter lido hoje sobre a fraude, porque esses dias eu peguei na mão um livro "traduzido" por Nelson Rodrigues. Infelizmente não me recordo se foi aqui, se foi na biblioteca, se foi na casa do meu namorado ou se foi numa livraria. Só posso dizer que esses livros ainda circulam por aí. 

A Companhia das Letras também é mista. Mesmo assim, merece quase todo o meu respeito. Seus livros sobre ciência, literatura e filosofia estão muitas vezes entre os mais recomendados para leitura (se não for possível ler os originais). A nova tradução da coleção de obras do Freud, primeira tradução do alemão (a tradução da Imago usava muito a versão inglesa como referência), feita pelo Paulo César de Souza, é de chorar de encantamento. O texto foi bem trabalhado - você está lendo psicanálise mas se sente lendo uma deliciosa literatura (Freud escrevia lindamente e Souza traduziu com cuidado para não perder os instantes de poesia) - e os livros são esteticamente maravilhosos. O papel é perfeito, a fonte e o tamanho dela são perfeitos, as imagens das peças arqueológicas da coleção de Freud são uma sublime ideia. 
Os livros de história publicados pela Companhia das Letras também costumam ser muito bons. É uma editora que não me faz sentir arrependimento por ter comprado material cuidado por ela. Para estar mais perto da perfeição, bastaria que também não se rendesse ao mercado extremamente popular. Mas o que é que se vai fazer se é esse tipo de livro que gera mais lucros? 

Quinto e último volume da ótima coleção História da
vida privada
, pela Cia das Letras

Não lembro de ter ouvido ou lido reclamações sobre a qualidade das traduções da Cosac & Naify. Espero que seja isso mesmo. Apesar de manter uma linha editorial bem pitoresca, a Cosac consegue publicar excelentes livros. De vez em quando, no meio de dúzias de novidades sobre moda e arte, surge um bom livro de antropologia. Preciso falar da beleza dos livros? Preciso. Cada livro tem uma produção artística única que diferencia a Cosac de outras editoras. Nunca vi livros tão lindos. Alguns reclamam que essa beleza custa caro. Eu, particularmente, não me importo de pagar por ela e não acho que seja cara. Se eu quisesse ler material visualmente feio, baixaria esses arquivos que são cópias de livros, só que sem formatação. Leria no computador. Não me importaria em ver um texto em prosa digitado em formato de verso; texto que foi tirado de um livro mas que eu sequer posso citar porque não está digitado conforme a paginação do livro. Tiraria fotocópia dos livros que me interessam. Não ficaria escandalizada com o papel vagabundo que certas editoras de quintal usam para publicar seus materiais. Entendo que alguns leitores não façam muita questão de agrado visual. Eu faço. Um livro bom com uma capa feia me dá coceira. Um livro bom publicado numa fonte medonha me faz perguntar para que um funcionário é pago para escolher a fonte de uma obra se ele não tem a mínima noção de bonito e feio, pertinente e impertinente, agradável à leitura ou desagradável. 

Conversas com Scorsese, da Cosac & Naify

Por ser assim maníaca por editoras e gostar de ponderar cada coisinha que elas fazem, há livros que ainda não li porque não foram publicados por uma renomada editora. A origem das espécies, por exemplo, foi publicada pela Hemus, pela Ediouro, pela Martin Claret e pela Escala (Fahrenheit 451 seria viver num mundo onde só pudéssemos ler livros dessas editoras bizarras). Todas as traduções têm problemas. Ou espero que a Companhia das Letras nos dê a graça de publicar essa obra após tê-la colocado nas mãos de um bom e ético tradutor, ou terei que ler a obra no original. Não gostaria de ter que fazer isso ainda. Não tenho preparo para ler um livro em inglês cheio de termos técnicos. Só estou paciente porque o que mais me interessa na evolução é o caminho que ela está traçando nas últimas décadas (digo, o que evolucionistas têm dito sobre ela nas últimas décadas), e não tanto especificidades incompletas do livro de Darwin. Não sei se me entendem. Darwin foi magnífico. Seu trabalho é uma das maiores revoluções da ciência. Mas há diversos pontos de suas ideias que estão defasados. Eu quero primeiro conhecer a evolução tal como ela está na modernidade, para depois ler sua obra-catapulta. Minha escolha me permite ficar tranquila em relação a ainda não termos uma boa tradução dessa obra lançada por uma editora de renome (apesar de isso parecer um absurdo, pensando e pesando bem as coisas...). Não me importo muito em esperar. Tenho dezenas de livros sobre evolução na minha fila de leitura, e muitos desses livros estão sempre fazendo referência a trechos de A origem das espécies

Eu poderia falar de mais algumas editoras, mas acho que o que expus acima deixa bem clara a mensagem que estou tentando passar. Se você não compra comida de qualquer marca baratinha desconhecida, também não compre livros de editoras baratinhas. Há um motivo para livros bons serem mais caros. Não é só por causa do papel bonito que os livros do Dostoiévski da Editora34 são mais caros que os livros dele publicados pela Martin Claret. É melhor ter poucos e bons livros do que ter quatro paredes repletas de porcarias. 

Sobre os sovinas que vivem reclamando do valor dos livros, falarei em alguma outra postagem. 

P.S.: uma editora que é uma exceção porque consegue fazer muitos livros baratos e bons é a L&PM Pocket.