segunda-feira, fevereiro 06, 2017

Migrei


Criei um novo blog. Começarei a postar textos somente lá. Todavia, não fecharei este Barbara Maidel Page, pois gosto bastante de muitas coisas que estão aqui.

O novo blog: http://barbmaidel.blogspot.com.br/

Um abraço aos leitores,

Aquela que barbariza.

quarta-feira, setembro 07, 2016

Da utilidade de rabiscar livros


Não-leitores muitas vezes se entregam de bandeja. Há duas oportunidades de destaque para reconhecer, com alguma garantia, um não-leitor. Primeiro, ele vai à sua casa, vê estantes abarrotadas de livros e pergunta se você já leu todos. Você, que é de certa forma um bibliófilo – conforme finanças e espaço permitem –, mas não vive de ler livros porque precisa trabalhar, cozinhar, sair para pesquisar se ainda existe alguma loja vendendo blusas de lã sintética que não provenham da China (conclui que não existe, aliás). Você, que dorme, e dorme todas as preciosas oito horas porque leitor com sono é leitor que não presta atenção direito, que lê mecanicamente, que boceja diante do verso mais bonito de Goethe. Você, que não consegue se dedicar à leitura enquanto termina uma garrafa de vinho e duvida da apreensão de conteúdo dos beatniks que dizem beber e fumar enquanto leem (os mais peculiares talvez aleguem tocar piano e fazer a barba também). Isso porque o não-leitor não sabe quanto tempo leva para se ler um livro. Porque ele não sabe que a maioria de nós não é nem Sérgio Buarque de Holanda nem José Guilherme Merquior para se trancar no escritório e engatar uma leitura na outra, em extrema glutonice. O não-leitor, que não lê nem quatro livros por ano, não resiste: vê a estante cheia de alguém e já quer saber se tudo foi lido. A outra oportunidade de reconhecimento do não-leitor é sua exaltada repulsa sobre livros riscados. É verdade, esse sinal é um pouco menos certeiro, porque há mesmo leitores, metódicos e hospitalares, que consideram sacrilégio apertar o bumbunzinho de uma lapiseira ao se estar na presença de um livro aberto. Mas se o leitor “pode ser” que se horrorize ao ver um parágrafo sublinhado, o não-leitor não pode ser, ele “é”. Acha “feio”. Um desperdício. “Como outra pessoa vai ler o livro desse jeito?” O não-leitor não entende, na cabecinha de prego dele, que a função de um bom livro não é permitir o refúgio do tédio de quem não sabe como proceder com tanta liberdade e enxerga na leitura um jogo de canastra cuja função é fazer o tempo passar para que logo se esteja reclamando que o Natal vem cada vez mais rápido. Não entende que um bom leitor jamais vai passar um livro adiante só porque já foi lido: um livro maravilhoso terminado acaba de dar mais uma razão para ficar. Ninguém, em sã consciência emocional, vai tratar Kafka como leitores da Agatha Christie a tratam (e com razão): como algo a ser enfiado numa lista e marcado ao lado com “lido” e nada mais, o que significa que não há sentido nenhum em reler, em buscar “aquele trecho”, porque é como um item colocado num papelete sobre o que precisa ser enfiado no carrinho do supermercado. Ninguém “relê” Agatha Christie, porque seus livros são descartáveis, são livros de férias na praia, livros para presentear o adolescente que os pais permitiram “ter seu próprio temperamento” e agora, tarde, descobriram que era apenas falta de educação deixar uma criança tonta ficar à própria sorte com estudos e leituras – Hercule Poirot vem para tentar salvá-lo da estupidez à qual se encaminha toda vez que é colocado diante da TV. Assim, ninguém rabisca livros que poderiam muito bem ser publicados pela Coquetel. Mas como não rabiscar A idade do serrote, de Murilo Mendes, que é um primor do cabo ao rabo? Como não rabiscar os Ensaios, de Montaigne? Quem é a pedra disfarçada de leitor que vai ler os Ensaios, considerar que o serviço está feito e passar o livro adiante sem manter uma cópia? Quem é o obsessivo-compulsivo que vai ler Apologia da história, não sentir necessidade de marcar nada, assumir que é excelente e mesmo assim doar para alguém? Existe uma abismal diferença entre olhar um livro pensando “ensine-me” e “entretenha-me”. Rabiscar um bom livro é quase um dever. Um não-leitor não entende isso porque para ele livros são como atrações de circo (adoro circos, desde que não haja animais sendo escravizados neles), e um livro lido é um serviço cumprido. 

Nem todas as minhas experiências com rabiscos de livros são boas. Há alguns anos, comecei a ler Introdução à sociologia, do Adorno (editora Unesp). Rabisquei o livro logo que veio: coloquei meu nome e a data nele, com caneta. Conforme prossegui a leitura, rabiscava uma coisa ou outra. Até perceber, já depois de algum estrago, que eu não estava gostando do livro. Não era péssimo, mas, com tanto material bom para ler, jamais seria um livro que eu salvaria de um incêndio na minha casa. Se não tivesse rabiscado o livro – se tivesse sido mais ponderada e esperasse pelo menos até a página 40 para ver se valia a pena mantê-lo comigo –, poderia vendê-lo. Inutilizei-o com sublinhados. Ocorreu o mesmo com O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais, de Lucien Febvre (editora Companhia das Letras). Comprei porque o tema me interessava: incredulidade, Rabelais, Idade Moderna. Febvre também sempre teve ótima fama. Recebi o livro, marquei-o como propriedade, comecei a rabiscar o pouco que achava que devia. Insisti. O estilo de Febvre é horroroso, com floreios poéticos piegas e muito uso de frases reticentes. Li mais um pouco, tentei marcar algumas outras coisas. Mas não consigo ler textos compridos em estilo ruim. Dão-me agonia da mesma forma como sofro para ler textos mal pontuados. Ali estava outro livro que eu não deveria ter marcado desde o início, porque me permitiria revendê-lo, passar para alguém que apreciasse historiografia nas nuvens. Errei ao maculá-lo. Mas aprendi, finalmente, como agir com livros desconhecidos que caem nas minhas mãos sem muito conhecimento de teor e forma. A imensa maioria dos livros que adquiri nos últimos anos vieram de lojas virtuais. (Apoio apego a livrarias pequenas prestes a serem engolidas por gigantes como Amazon e Saraiva, mas em São Paulo não tenho intimidade com nenhuma que satisfaça esse requisito; e mesmo que apareça alguma hipotética Livraria do Seu Pedro, desde 1952, não tenho a missão de salvar pequenas empresas quando a diferença de valor pelo mesmo produto é muito alta. Se a diferença for pouca, opto sempre pelo pequeno empresário.) E existe um probleminha com alguns livros comprados na internet cujos trechos não estão disponíveis para leitura prévia, que é o de você não saber exatamente o que vai receber em casa. Hoje, portanto, recebo minha caixa de livros e nem marco meu nome neles. Espero. Leio algumas páginas. Vou lendo, lendo, e em poucas dezenas de folhas já consigo perceber se é algo para manter, consumir de rabiscos, ou passar para outros. 

“Consumir de rabiscos”. É isso o que eu penso que as pessoas deveriam considerar a respeito de livros: material de consumo. Não é um quadro, não é a nega de cerâmica que o branquelo trouxe da Bahia para tornar sua casa mais “exótica”. É para ser estraçalhado, no bom sentido. É para ser lido, relido, marcado, repensado, consultado. Está ali para servir, mas sem ser subalterno. Não me entra nas dobras cerebrais que alguém leia um livro excelente e passe adiante. Como esse sujeito não sente falta do livro? Como não sente falta de viver outra vez aquela passagem, aquela descrição? Precisamos ver nossos bons calhamaços como dicionários, dos quais ninguém se desfaz porque são constante fonte de consulta. Imagine se vou passar os livros de Jacques Le Goff para frente como se fossem moedas. Minha cabeça é limitadíssima, como a de todo mundo, e vai chegar um momento – sempre chega para quem gosta de saber as coisas de fato – em que me perguntarei “mas como era mesmo aquela história que ele contava em A bolsa e a vida?”, levantarei do sofá, abrirei o armário, puxarei seu livrinho e terei, instantaneamente, a resposta para minha dúvida, além de uma ressurreição. Em minutos eu revivo Le Goff, não somente graças ao fato de possuir seu livro como ao fato de tê-lo rabiscado. 

Falemos, agora, entre leitores habituais. Leio em média três livros por mês, o que é considerável para quem não trabalha com pesquisa. Digamos que ano passado eu tenha mantido essa média, portanto eu teria lido 36 livros. E digamos que no ano anterior eu também tenha lido 36 livros. São 72 livros em apenas dois anos. Desses, suponhamos que 32 não eram “eternos”: eram livros não tão bons, livros não tão marcantes, livros que não me fariam falta se sumissem. Sobram 40 bons livros lidos em dois anos. Eu inquiro: alguém que tenha a mesma quantidade/qualidade de leituras que a minha e tenha preservado uns 40 livros de dois anos de leituras, alguém que mantenha esses livros, mas não os rabisque – em que estado de angústia ficará quando tentar lembrar de uma passagem recordada vagamente e que está num dos dez livros sobre evolução das espécies, por exemplo? Porque se o livro na estante não for tratado como um mero troféu – “vejam, ali está e eu o li” –, será buscado. Será fácil buscá-lo sem marcações? Não será. 

Há dois livros realmente bons que li este ano sobre evolução, e acabei fazendo uma leitura seguida da outra: As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade, do zoólogo Matt Ridley (editora Record), e A história do corpo humano: história, saúde e doença, do professor de biologia evolutiva humana de Harvard Daniel E. Lieberman (editora Zahar) (também conhecido como “professor descalço” por defender que deveríamos correr de pés nus, quando possível, por causa do modo como a evolução moldou nossos pés). Precisei escrever um artigo de conclusão de curso para a especialização que fiz em Direito Penal. Poderia escrever sem muita pretensão sobre qualquer assunto jurídico que a nota viria, e com ela a fácil aprovação (gostaria de ver quais os critérios usados pelo MEC para manter certas instituições funcionando), mas preferi me dedicar a algo que me interessasse e acabasse como um bom artigo para mim mesma. Escrevi sobre o aborto, trabalhei temas como fetos anencéfalos e morte cerebral. Lá pelas tantas lembrei de ter lido que o feto compete com a mãe por recursos dentro dela, gerando desajustes e funcionando como parasita. Quis a citação indireta desse trecho, mas não lembrava em que livro estava. Sabia que estava num dos dois que tinha lido no começo do ano. Vistoriei minhas marcações nas bordas e não achei nada no livro do Lieberman. Só podia estar no do Ridley. Estava. Na parte superior da página 32 eu havia escrito “a luta na gravidez” e “o feto como parasita” para fichar o que havia naquela página. Meus rabiscos facilitaram minha busca para o artigo, o que foi ótimo, mas eu não fico escrevendo artigos o tempo todo – só que esses rabiscos salvam minha tranquilidade mental e minha vontade de saber sempre. Ali estou eu, tomando sol na varanda enquanto leio uma National Geographic. Uma matéria sobre agrotóxicos me faz lembrar algo que li num livro. Vou para dentro, procuro o livro, começo a ler o que escrevi em suas beiradas ou o que sublinhei com “cobrinhas” – meu sinal para mim mesma para “trecho muitíssimo interessante” – e logo acho o que quero. Leio. Fico satisfeita. Reaprendi aquela coisinha. Volto para meu sol e minha revista. As conexões estão perfeitas e não preciso forçar meu cérebro a lembrar de todas as passagens importantes dos 40 livros bons que li nos últimos dois anos. Lido com a realidade e não passarei ansiedade por não conseguir achar onde li isso ou aquilo há alguns meses ou anos. Dentro de cada livro de minha biblioteca há uma pequena biblioteca, com capítulos e páginas catalogados conforme os assuntos. 

Não consegui convencer sobre a utilidade de um bom rabiscar? Logo ali darei um exemplo ainda mais prático, mas permitam-me falar de mais uma dádiva que a organização oferece ao rabiscador de livros. Há alguns anos li um livro que comprei no sebo, O comunismo, do historiador Richard Pipes (editora Objetiva). Um bom livro com uma visão mais liberal das revoluções socialistas, já que Pipes parece considerar o comunismo, tanto praticado (visão muito justa) quanto idealizado (visão talvez muito dura, já que há, sim, uns poucos sonhadores comunistas de boa vontade), uma catástrofe. Esses dias peguei o livro para “relê-lo”. Não o estou lendo por inteiro: estou lendo somente os trechos que pontuei no fichamento no próprio livro que fiz na primeira leitura. Quando um trecho marcado instigante é seguido por um não marcado, leio também o não marcado. Assim, consigo reler livros sem que precise tratá-los como se fosse a primeira vez. Há livros, claro, que lemos por completo algumas vezes durante a vida (no meu caso, principalmente literatura), mas há outros que bastam ser revividos pelas marcações. Marca-se o que é mais relevante e essencial: quando se tem pouco tempo – ou muito tempo, só que voltado para tantas outras coisas –, um livro rabiscado facilita muito a vida. Quem gosta de seriados muitas vezes não vê várias vezes certos episódios? Acredito que já assisti a quase todos os desenhos do Pernalonga, mas se estiver cansada e com vontade de rever algum, verei qualquer um dos episódios em que ele é maestro ou personagem de alguma música clássica (como em “Coelho de Sevilha”). E que mal há nisso? Com livros, o mesmo acontece. Você pode ler os Ensaios todos de uma vez, marcar os aforismos mais interessantes, deixá-lo na cabeceira e reler aqueles que marcou. Rabiscar livros não apenas organiza a leitura como presta um favor à releitura. 


Recentemente finalizei a leitura de Ética prática, do Peter Singer (editora Martins Fontes). Até então eu só tinha lido quatro ou cinco capítulos sobre assuntos que me eram caros: o estatuto ético dos animais, aborto, “o que há de errado em matar”. Todos os assuntos do livro, todavia, deveriam ser caros a todos nós: imigrantes, meio ambiente, que responsabilidade os que têm dinheiro (sim, você que está lendo, por exemplo; pare de fingir que é pobre porque isso é uma tremenda falta de respeito com quem é realmente pobre) têm com os que não têm (não, você não é pobre só porque está há dez anos sem trocar de carro; por favor, situe-se em seu ridículo), por que devemos agir moralmente. O livro é ótimo, então valeu cada rabiscada. O que estou fazendo agora que terminei de lê-lo e rabiscá-lo? Estou relendo o que marquei. Por quê? Porque é muito difícil apreender tudo de um livro de uma leitura só. A primeira leitura serviu para meu entendimento amplo de tudo, para que eu tentasse organizar os conhecimentos do livro. Agora posso reler o que está organizado de acordo com o meu gosto de ordem (não marco somente as passagens com as quais concordo, porque minha intenção é entender o texto, não revisá-lo para o autor conforme meu narcísico parecer). Muitas coisas na vida nós primeiro organizamos para depois tomá-las em seu verdadeiro sentido. Não vejo por que com o conhecimento seria diferente. 

Na primeira folha dos livros muitas vezes escrevo frases curtas que expressam muita coisa, e coloco a página onde estão ao final da citação. Em Ética prática há lá três trechos na primeira página, sendo um deles: “O status de igualdade não depende da inteligência. Os racistas que afirmam o contrário correm o risco de ser forçados a se ajoelhar diante do primeiro gênio que encontrarem. (p. 40)”. A importância desse trecho está em sua síntese de tudo que Singer trabalha na obra: o fato de um camundongo não apreciar ópera como você, o fato de um angolano não fazer os cálculos que você faz e o fato de um índio não saber ler não fazem com que você seja superior a eles em merecimento de tratamento compassivo – se se achar superior por essas coisas, precisará virar escravo dos inúmeros sujeitos muito mais inteligentes que você que estão por aí. Em seguida, outro excerto que sintetiza o pensamento ético de Singer: “Se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. (p. 67)”. E ainda: “O princípio da igual consideração de interesses não permite que os interesses maiores sejam sacrificados em função dos interesses menores. (p. 73)”, ou seja, é justificável que um esquimó, impossibilitado de exercer a agricultura, mate um animal para comer, prática que é totalmente imoral quando você, citadino, pensa que é justificável ceifar uma vida com interesses e senciência por mero prazer do paladar, da mesma forma como não se justifica sua insistência em comprar roupas de marcas de fast-fashion reconhecidamente responsáveis por trabalho análogo ao escravo só porque “são muito bonitas e baratas” – seu interesse menor, gastar pouco dinheiro com uma peça bonita, não justifica o sacrifício de um interesse maior, que é o de um trabalhador ser tratado no mínimo conforme o que apregoa a CLT. 

Livros que se transformam em cadernos por
praticidade: aos que não querem isso, que
comprem cadernos, desde que os usem

Agora vejamos alguns dos rabiscos explicativos e ordenados que fiz no decorrer das primeiras páginas do livro, rabiscos que já me auxiliaram, mas vão me auxiliar ainda mais no futuro, quando minha memória começar a apagar boa parte do que li: 

Reação ao livro nos países de língua alemã; 
Ética e Deus;
Kant e o código moral;
Sobre o relativismo;
Aos marxistas: “se toda moralidade é relativa, o que há de tão especial no comunismo?”;
Relativismo ético;
Universalidade da ética;
Kant;
Ética como reflexão sobre todos os interesses envolvidos;
O racismo se tornou “feio”;
Princípio da igual consideração de interesses;
“A raça é irrelevante para a consideração dos interesses, pois o que conta são os interesses em si.”;
Caso hipotético das duas pessoas feridas desigualmente e das duas doses de morfina;
Princípio da diminuição da utilidade marginal;
“Caso da perna e do dedo do pé”;
Uma suposta diferença entre o QI de duas etnias poderia justificar tratamentos desiguais para elas?;
Diferenças entre homens e mulheres, biologia ou cultura;
O papel da mulher no mercado de trabalho;
Diferenças entre os sexos e estar fora do padrão biológico;
É difícil mensurar a igualdade de oportunidades;
Fuga de cérebros;
O problema do “socialismo em um só país”

Isso tudo foi o que escrevi – organizei – em bordas e beiradas até a página 50. Não há como negar que é uma bela catalogação. Se daqui a três anos eu me lembrar de quando Singer comenta sobre o problema do socialismo em um só país – que é um problema que gera as tais fugas de cérebros, quando o governante socialista permite que as pessoas emigrem, pois muitos gênios anseiam ser bem remunerados por sua contribuição à sociedade em vez de receber quase o mesmo que varredores de rua – e quiser reler o que ele diz sobre isso, basta ir às beiradas. Se não houvesse marcações nelas, eu demoraria talvez horas para encontrar o que quero: não há capítulo com esse nome, não há subtítulo chamado “socialismo num só país”, nem índice remissivo no final do livro. Meus rabiscos salvam meu eu futuro de agonia. 

Hostilizado em países de língua alemã por debater
o tema da eutanásia, Singer teve seus óculos
arrancados e jogados ao chão, e eu sei onde
está esse trecho porque o marquei

Livros rabiscados são lindos para seu dono, mas emprestá-los é um erro, geralmente. A marcação feita por outra pessoa influencia nossa leitura, nossa atenção. Além do mais, às vezes pode soar pedante emprestar um livro rabiscado. Se hoje eu já não empresto livros rabiscados (nem os que não estão rabiscados, na verdade, porque sempre tive azar ao emprestar coisas), no passado seria pior ainda, porque houve época, ali nos meus 17 ou 18 anos, em que eu não somente fazia marcações nos livros: eu colocava minhas opiniões nas bordas. Achava o ápice da crítica atilada escrever “estúpido” ao lado de um parágrafo de que não gostara (não cheguei ao ponto-Schopenhauer de desenhar orelhas de burro ao lado de trechos de Hegel ou Fichte). 

O que vivo, agora, é uma situação engraçada: não sou mais uma pessoa sozinha como leitora numa casa. Tenho um namorado com quem compartilho coisas (muitos insistem que devo chamá-lo de marido; não sei por que se importam tanto com terminologias esses abelhudos). Todos os livros que compramos, compramos juntos. Dividimos água, luz, condomínio, feira – e livros. Ocorre que às vezes posso querer ler um livro que André comprou para ele. Não, não consigo não rabiscá-lo. O que faço é tentar ser o mais discreta possível: se um trecho me interessa, faço um leve traçado com grafite ao lado do parágrafo. Fiz isso com Nada a invejar: vidas comuns na Coreia do Norte, da jornalista Barbara Demick (editora Companhia das Letras), que pretendo resenhar em uma postagem em outro momento. Quem leu sobre ele foi o André, quem quis comprá-lo foi o André. Mas eu acabei lendo o livro antes. Se não fizesse um fichamentozinho, uma marcaçãozinha que me ajudasse, posteriormente, a achar o trecho em que Demick fala das pessoas comendo grama e não podendo reclamar do Grande Líder, por exemplo, eu ficaria ansiosa. Em casas de casais, talvez os rabiscos tenham que ser mais moderados. Para maiores marcações, recomendo que se compre um caderno só para se colocar espécies de frases-chave, como aquelas que elenquei acima no livro do Peter Singer, com a página ao lado. Por exemplo: 

Como dividir a Coreia após a II Guerra (p. 36);
Sistema de castas (p. 43);
O sistema filosófico do juche (p. 65);
Vitrines para estrangeiros, frutas falsas (p. 87)

Um caderno de 100 folhas vai durar para muitos livros desse jeito. Para mim essa ideia não dá muito certo porque tenho o hábito de ler deitada em 80% do tempo. Já vou para a cama ou para o sofá com o livro e uma lapiseira, que é para ir marcando e rabiscando o que me interessa (não me importo com a caligrafia, desde que fique legível). Mas é uma boa opção para quem quer manter seus livros limpos e costuma ler sentado (ou lê deitado, mas não faz cerimônia para levantar e escrever coisas no caderno; ou lê deitado e consegue escrever em cadernos mesmo deitado). 

Forma mais sutil de marcar trechos de livros
que poderão ser lidos por outra pessoa

Aos que leem e não marcam, não organizam, não sintetizam: não sei como vocês vivem. Ou leem tão pouco que a memória limitada basta para os pouquinhos livros anuais, ou leem como quem está na aventura do livro para passar o tempo entre as datas festivas, ou ainda não ficaram cientes da real condição de desespero em que deveriam estar por não manterem tão elementares conhecimentos organizados de forma a que estejam com fácil acesso. Não quero incentivar o desespero, a queima de cidades e bibliotecas por causa do pânico (“meu deus, Barbara, todo o conhecimento que li está espalhado por aí e não sei como começar a juntar!”). Mas acho que é hora de rever o modo como se lê, que é quase tão importante quanto aquilo que se lê. Seja o tipo de leitor que você gostaria de ter se fosse um bom autor.

domingo, junho 26, 2016

Quem convidar para a festa e quem expulsar dela


Meu ateísmo não é o melhor dos mundos. Não o adotei por querer, mas por dever cético. É claro que seria muito mais agradável saber que todos os grandes vigaristas do planeta serão julgados no momento da morte, e que toda essa gente hipócrita que nos presenteia à helênica, corriqueiramente, com palestras não requisitadas sobre ela mesma, mas que não faz nada de muito útil ou realmente revolucionário, vai se afogar no Aqueronte num dia de mormaço intenso. Isso se eu acreditasse nessas mitologias, e se a mitologia fosse de fato ao meu gosto: pode ser que um possível Deus fosse antiquado e condenasse quem bebe, tem um humor escrachado e não faz louvor em rituais. Nesse caso – minha danação eterna –, prefiro acreditar que o inferno é o lugar dos malditos em que vou beber no balcão não para tornar os outros mais interessantes (ou me tornar mais imune à chatice alheia), mas para atingir aquele nível de passarinho encantado sibilando valsas, que é como sou ao beber em casa, despreocupada por não ter que fingir tolerar nada. 

Duvidando de qualquer dessas histórias que são apenas isso mesmo – histórias –, considero que a vida é isso que está aí. E ponto. Eu vou acabar, você vai acabar, e tudo o que é nosso e considerávamos tão precioso servirá para fertilizar a terra. Esse entendimento pode gerar duas reações genéricas: uma delas, a de espanto metafísico, um desejo Woody Allen (do tempo dos bons filmes, que não eram como alguns outros dele que vemos numa semana e na outra já esquecemos a trama – indicativo de irrelevância; exemplo: Para Roma, com amor) de ser inoperante, porque existir não faz sentido, e passar a encarnar a Rê Bordosa com seu live fast, die young; a outra, de amor louco a essa efêmera coisinha que podemos aproveitar porque milhares de antepassados – humanos rudes, meio-macacos, seres recém saídos das águas, peixes, agrupamentos celulares – nos deram a oportunidade de participar desse evento que é a vida. Optei pela segunda alternativa. Acho-a justa. Sou diariamente grata à natureza e ao destino por ter pernas, lucidez, um emprego, dedos, visão, vontade de aprender: ou seja, sou grata pela vida – num sentido prático e sério, e não de quem acha que o melhor de todas as culturas são as danças circulares e os chás. Isso não me torna uma “pessoa positiva”: acho que as coisas são o que são, o que podemos e queremos mudar, que mudemos, o que não podemos mudar devemos deixar como está (por exemplo, estressar-se no trânsito é estupidez porque o estresse não vai fazer com que os carros fluam mais rápido). Mas isso me torna muito seletiva a respeito do que vale a pena fazer parte da parte da minha vida que controlo: minha intimidade e meus pensamentos. Assim, não quero ocupar nem minha intimidade, nem meus pensamentos com itens e sujeitos que nada me acrescentam ou que, pior, me diminuem. Venho fazendo uma seleção de tudo isso há anos. No concernente a itens, evito ter que ver, participar, ouvir falar de coisas desinteressantes que só vão ocupar espaço na minha memória limitada: se entrar muito entulho na minha cabeça, terei menos espaço para o que é valioso, ou mesmo as coisas valiosas ficarão pouco concentradas porque precisarão dar lugar a inutilidades. É o tipo de fórmula que pode nos levar a parecer agrestes: já pedi para interlocutores pararem de falar sobre determinados assuntos porque eu não ia conseguir prestar atenção, e, se prestasse, não gravaria a informação nem por cinco minutos. O tempo é muito precioso para que façamos com que nos falem de temas que não nos importam. (A alternativa a essa rusticidade quando encontramos alguém dado à tagarelice contínua – a.k.a. monólogo – é a introspecção: por fora, dizemos “hm”, “uhum” e “ah, é mesmo?”, por dentro estamos fazendo listas de compras, treinando a tabuada, lembrando a discografia do Killing Joke e planejando viagens. Se surpreendentemente o falante voraz parar sua conferência para nos fazer uma pergunta e não tivermos ouvido porque estávamos escolhendo que marca de aveia comprar mais tarde, podemos nos sair com “olha… não sei” ou fingir surdez com “o quê? desculpe, não entendi”.) No concernente a pessoas, evito inúmeros tipos, primeiro porque não gosto deles, segundo porque não tenho tempo para eles. Vejam, se tudo der certo, daqui a muitas décadas vou morrer. Até lá, terei lido tudo que quero ler? Terei aprendido tudo que gostaria de aprender? Terei visto todos os filmes que coloquei na Watchlist do IMDB? Terei ouvido todos os álbuns de black metal, jazz e cold wave que pretendi ouvir? Com certeza não. (Numa remotíssima hipótese de eu já ter esgotado tudo isso, digamos, aos 80 anos – “pronto, não há mais nada que eu precise ler, ver ou aprender” –, aí eu poderia explodir meus miolos, porque seria lamentável ter que passar as tardes vendo televisão por não haver mais nada para fazer enquanto a morte não chega.) 

Muito bem, se uma vida não bastará para fazer tudo que planejo – e já me conformei com isso, não é algo que falo quebrando grilhões na fuga do calabouço –, por que é que vou piorar essa situação colocando pessoas desagradáveis para ocupar minha solidão? Já disse, e repito: quando estou lendo um bom livro, estou lendo a melhor parte do que seu autor tinha para me oferecer. Às vezes o autor por completo é um patife. Um chato. Um pitoresco que jamais daria certo com o meu gênio. E eu não preciso do autor completo quando tenho o melhor dele inserido num livro: o livro dele me basta. Ao assistir a um filme, estou lidando com o melhor que seu roteirista, diretor, argumentador e tantos outros componentes puderam realizar: lido com pessoas, dependo de pessoas para que toda essa nobreza artística chegue a mim, mas trato com o que há de mais interessante nelas. O mesmo não acontece com as inúmeras figuras sem atrativos que tantos insistem em colocar para dentro de suas intimidades. Resultado: espíritos fedorentos estão trocando vapores em salões de festa, “jantar entre amigos da faculdade”, salas de estar, páginas pessoais. Não foi para esse teatrinho fajuto que me tornei a ponta de uma longa cadeia geracional de luta pela existência. Claro, todos atuamos um bocado porque precisamos disso para viver em sociedade e às vezes não atuar é uma tremenda falta de educação: a moça da padaria que te atende, trabalha nos finais de semana e ganha um salário exíguo não merece receber seu olhar de desprezo (trabalhei numa padaria por um mês, sei que mesmo o Zé Pintor é capaz de chegar para uma moça que está atrás de uma cesta de pão e achar que é superior a ela) só porque você, sujeito pelo qual os astros se movem, acordou de mau humor. Também não me lembro de nenhum “sou eu mesmo sempre” ter sido aprovado em entrevistas de emprego que incluem dinâmicas de grupo e farsas do tipo “meu maior defeito é o perfeccionismo”. O problema sucede quando atuamos mesmo onde não precisamos atuar, que é a nossa privacidade. Ninguém está obrigado a levar para casa pessoas que não têm com o que contribuir. Parece um manifesto contra a amizade e a favor do profundo egoísmo de só ficar com aquilo que é magnífico dos que nos cercam, mas não é. Ocorre que há defeitos e defeitos. Nossos amigos não podem nos suprir com utilidades o tempo todo, mas e no tempo em que não nos acrescentam nada, o que oferecem? Indignação com a feliz vida financeira alheia? Opiniões mancas de quem quer falar sobre qualquer assunto, mas tem preguiça de dar uma estudada antes de encerrar o caso? Apenas lembranças de histórias que já foram chafurdadas inúmeras vezes? Competições que só geram ansiedade desnecessária? Posso ajudar com alguns perfis que merecem ser expulsos da festividade única que é a nossa vida. Se você está num dos perfis, recomendo ir tomar um banho, fazer silêncio por três dias e refletir. Se você acha que não sou sequer um mosquito para recomendar o que cada um faz com sua vida, por que está lendo este texto? Jeez

O EXIBIDO – É um visualizador de oportunidades. Gosta de ter amigos de diversas profissões para sempre ter a quem recorrer num momento de necessidade. Gosta de dizer “tenho uma amiga cozinheira” quando a moda da Gastronomia está em alta e “tenho um amigo gay” desde que foi criado esse fetiche obtuso de que é o máximo ter um amigo gay. Gosta de ter amigos que fazem coisas “incríveis”, então você será visado se viaja para lugares exóticos ou se vive expondo trabalhos em feiras de arquitetura. Se você se tornar famoso, vai aproveitar para crescer em popularidade em cima da sua fama. 

O INVEJOSO – Mais comum do que se pensa, o invejoso pode ser o livro aberto da inveja ou ter artimanhas para esconder seus sentimentos pérfidos. Comportamento: não fica muito feliz quando algo bom acontece na sua vida (quando 10% disso ocorre na vida dele, é motivo para simpósio e champagne), se você consegue um emprego melhor já vai perguntando quanto é o salário (para comparar se você o ultrapassou e quantos reais a mais você tem de felicidade por mês), situações que você vê como boas na sua vida recebem um novo olhar do invejoso – você é mulher que trabalha fora e seu marido está alguns meses sem emprego e cuidando da casa: para vocês, ótimo, para o invejoso, “será que não seria bom que o Alberto trabalhasse fora? Não é estranho que você trabalhe e ele fique desempregado cuidando dos filhos em casa?” (é diferente de você achar algo ruim na sua vida e um amigo concordar; ou seu amigo abrir seus olhos sobre algo ruim que você não via) –, parece vibrar quando algo na sua bela vida dá errado e até acha que você tem o direito de ser feliz, desde que não ouse ser mais feliz que ele. 

O UMBIGO TAGARELA – Muitas pessoas assim passaram pela festa da minha vida. Chegaram como se trajassem Azzedine Alaïa, tomaram conta das jarras de ponche, roubaram o microfone dos rapazes da banda e falaram sobre suas vidas as coisas mais insossas que fariam um coala se tornar maratonista. Urinaram na piscina, trocaram a música do Depeche Mode “por outra muito melhor” e depois foram embora dizendo que foi o evento mais sensacional a que já foram e que “devíamos fazer outras vezes”. Não percebem que estão falando sozinhas no que não é uma conversa. Repetem histórias. Perguntam coisas somente quando querem ganchos para contar seus sonhos e experiências – “já foi a Zurique?” “sim, eu...” “pois é, eu adoro Zurique, quero ver se faço doutorado lá, porque na maior universidade deles há uma linha de pesquisa que...”. Voltam de viagens de três dias à Rússia fazendo análises antropológicas e achando que já podem escrever etnografias sobre o povo russo. Narram cada passo de suas rotinas. Você não fala nada nem em um vigésimo do tempo, mas é chamado de pessoa amiga, simpática, querida. O tagarela é um sanguessuga. 

O PROVOCADOR – Esse é comum desde que determinei que todos os comes e bebes seriam veganos. Não costumo começar nenhuma conversa sobre veganismo. Não tento “converter” ninguém, todo mundo acha que o sabor de pedaços e pus de animais é argumento para comê-los e eu acho isso o cúmulo do hedonismo imoral. Só falo que sou vegana para que cessem de me oferecer comidas. Mas o provocador gosta de aparecer com “desafios”. Suas feições são irônicas (tenho horror a quem dorme e acorda com expressão irônica) porque ele acha que ironia é, obrigatoriamente, sinal de inteligência. Ele aparece e diz, peremptório: “hoje li que algumas marcas de pneu levam cartilagem bovina, fiquei me perguntando se você pega ônibus por ser vegana”. Não é uma dúvida de alguém que ignora e quer saber. É uma provocação. O arzinho é outro. Ele não chega e fala o bom português camaradão. Ele insinua, porque acha que é o maioral, o que sabe das coisas. Chato, cansativo e bobo. 

O DAS INDIRETAS – Você tem o cabelo crespo. Ele diz, numa roda de conversa: “tem gente, por exemplo, que tem aquele cabelo crespo seco e deixa ele solto, por que não fazem um corte melhor ou amarram o cabelo?” Seu namorado é mais novo que você. Ele diz, falando sobre uma mulher mais velha que tentou seduzi-lo: “ah, não, é ridículo namorar uma velha, ela que tire o cavalinho da chuva”. Você está com uma barriguinha, mas numa relação amigável. Ele, magro, diz, quando vai comer um pedaço de bolo: “tenho que me cuidar, estou virando um porco”. Você é uma senhora, mas isso não te impede de usar saias curtas e decotes em festas. Você chega à festa e ele diz sobre uma senhora um pouco mais velha que está com trajes parecidos: “meu deus, lá vai ela achando que é Madonna”. Se você acusa o recebimento da indireta, recebe a contemporização falsa: “ah, mas você não é velha como ela; e a roupa dela é diferente”. Você não tem empregada doméstica nem diarista em casa. Depois de te visitar, ele comenta: “nossa, tenho que ligar para a Fátima, porque hoje em dia qualquer casa sem uma diarista vira um antro de ratos”. As indiretas costumam ser sobre assuntos fúteis. Mas quem quer na festinha da própria vida alguém que sente prazer em sentir desprezo pelos “amigos”? Precisamos que nos elevem (mesmo com críticas, desde que bem intencionadas), não que nos menosprezem.

O QUE SE RECUSA A APRENDER – Interessantemente, nunca gosta muito das nossas recomendações. É avesso a admitir que pode aprender coisas incríveis com pessoas normais como você. Aquele disco que você recomendou? Não achou tão bom. Aquele livro? Era “bonzinho”, mas há melhores. Jamais dirá: “esse autor que você me recomendou se tornou um dos meus preferidos, obrigado” ou “não consigo parar de ouvir aquela música que você me mostrou”. Mas ele gosta muito de recomendar as coisas que ele “descobriu por si”. Às vezes é apenas a recomendação de uma outra pessoa, que pessoalmente ele também trata com certo desdém. Odeia admitir que admira os amigos próximos, porque é tão calhorda que acha que ao elogiar alguém “comum” está se rebaixando. Admirável é o jornalista que recomendou ler Gertrude Stein, não vocêzinho que é metido a intelectual e disse que Mary McCarthy é uma escritora portentosa. Por ser um tipo de arrogante, não merece ódio, mas pena. 

O FÚTIL – Gosta de se atolar na vida das pessoas – dos chefes, dos colegas de trabalho, dos colegas de curso, dos vizinhos – para extrair qualquer coisa curiosa. Gosta de comentar sobre o carro que o vizinho comprou, mas não porque é fã de automóveis, e sim porque em cima disso vai se perder nas questões em série: “como comprou? Por que comprou? Mas com o que ganha poderia comprar? Vai se endividar, só pode”. Faz comentários como “Lucinda é bonita demais para Túlio, devia arranjar outro namorado”, por mais que Lucinda e Túlio sejam muito felizes juntos. Repara se as pessoas têm furos ou manchas nas roupas. Não é idoso e diz aberrações como “Joana está saindo com um moreninho que é até bonito” – quando o “moreninho” é um negro, sem dúvida. Acha que velhos precisam se vestir como estereotipados velhos, gordos têm que se vestir como gordos e chama qualquer excêntrico de “esquisito”. Sente vergonha quando está com alguém “mal vestido”. Adora dinheiro e pessoas com dinheiro. Acha que viver é uma eterna ambição financeira. É difícil falar com ele sobre livros, filmes, música, a menos que sejam os do momento. 

Basicamente, essas são as personas das quais me esquivo. Há outras. E também há aquelas coisas que nos deixam boquiabertos, mas que não são de tamanho suficiente para um rompimento de amizade ou afastamento, como quando um amigo nos cobra os dez centavos que gastamos a mais num café ou nos presenteia com algo sem sentido (uma porcaria barata e feia, porque ele não quis gastar tempo nem dinheiro com o presente). E quem convidar para a festa? Acho que, no fundo, todos nós sabemos quais pessoas nos fazem bem e quais nos fazem mal. O motivo de mantermos tanta gente pavorosa transitando na nossa varandinha e dando pitaco no que fazemos é de ordem cultural: fomos ensinados pelo mundo que a solidão é algo ruim, que todo mundo tem amigos e que as redes sociais só funcionam justamente porque temos um círculo de contatos. Você deve ter contatos. Se não tiver, talvez não saiba lidar com isso, e talvez acabe agravando a situação geral da depressão, um dos grandes males do século. Para mim, é algo difícil de entender: “estou aqui, nesse bar, com essa pessoa modorrenta que não para de falar de si mesma, quando poderia estar em casa vendo um filme; e mais tarde, certamente, tiraremos uma foto para mostrar para todo mundo que estamos por aí, que estamos nos mexendo”. Esse teatro íntimo patético pode ser evitado. Se não sobrar ninguém, isso não será novidade: pessoas louváveis e elegíveis como amigas são raríssimas. Não é à toa que os filósofos se debatem há milênios sobre o problema da amizade: ela é tão excepcional na sua forma verdadeira que aquele que encontra um bom amigo pode se dizer afortunado – é o que diz qualquer filósofo que preste algum bocado. Quem não encontra não precisa se entristecer. Ninguém disse que uma festa não pode ocorrer porque há apenas um convidado nela.

quinta-feira, maio 26, 2016

Textos dos outros: A poética da cultura, III - Marshall Sahlins (do livro "Esperando Foucault, ainda", Cosac)


Antes do texto, breves comentários meus. 

Quando estava numa das faculdades que tentei fazer, Ciências Sociais, Foucault era uma sensação, principalmente nas disciplinas ministradas por professores da área de História, que pareciam querer se travestir dele. Fazer um trabalho acadêmico sem citar alguma coisa de Foucault era como ministrar uma palestra sobre frutas e não citar a banana. O micro-poder e o "tudo é poder, escancarado ou simbólico" parecia capaz de explicar qualquer coisa a que quiséssemos nos referir em artigos científicos. Cheguei a ouvir uma professora dizer para um aluno cheio de referências bibliográficas: "sabe o que está faltando e pode melhorar o seu trabalho? Foucault". 

Eu era jovem e influenciável. Por muito tempo achei que Foucault estava trajando roupas nobres e monárquicas que somente eu não enxergava. Depois que passei a ter horror a prolixos desnecessários e teóricos do tudo, comecei a repudiar o que Foucault representava e as pessoas que ele havia influenciado. Procurei por livros que o criticassem de uma maneira acadêmica que eu não seria competente para adotar. Quase nada havia. No meio do quase nada, um livro do Baudrillard que está esgotado há umas duas décadas: Esquecer Foucault (Rocco). Por estar esgotado, mesmo sendo pequenininho custava uma fortuna na Estante Virtual (muitos vendedores de livros antigos supervalorizam livros que não são mais publicados, mesmo que não exista procura), mas comprei, esperando esclarecimentos classudos para as minhas críticas birrentas. Descobri que quem não aprecia o estilo de escrita de Foucault não tem como gostar do estilo de Baudrillard, tão ou mais fresco. Escrito com a caneta do pedantismo francesinho, Esquecer Foucault é difícil de entender, se é que é para ser entendido: nem maçante é a palavra correta para defini-lo. O outro livro do universo do quase nada é o do esquecido erudito carioca José Guilherme Merquior (esquecido, provavelmente, por causa de seus envolvimentos políticos), que estou esperando chegar da Estante Virtual porque também não é mais publicado: Michel Foucault ou o niilismo de cátedra (Nova Fronteira). A obra, que só saberei se é boa depois da leitura, é chamada por Merquior de "antipanegírico". O neologismo é acertado, já que esse francês tem, até hoje, as botas lambidas por universitários e intelectuais preocupados em nomear os bois, mesmo que estejam numa matilha. 



Esperando Foucault, ainda é um livro ao mesmo tempo sério e humorístico do antropólogo americano Marshall Sahlins. Lançado na coleção Portátil da infelizmente finada Cosac Naify, pode ser lido em uma tarde sem filhos. Achei-o por acaso nas promoções dos livros da Cosac que a Amazon tem feito. Nem tudo me interessou nele, mas a parte central, que é a crítica ao delírio pós-modernista do qual Foucault faz parte, é perspicaz e sem rodeios. Num dos curtos textos, Sahlins comenta o modismo dos novos tempos de considerar que tudo pode ser uma cultura, e que qualquer dessas "culturas" merece estudo. Na Universidade de Chicago, um colega de Sahlins ofereceu um curso chamado "blues de Chicago, estudo intensivo de uma cultura". Se o blues de Chicago podia ser chamado de cultura, o futebol americano de Michigan, apreciado por Sahlins, também merecia o mesmo status. Provocador, ele escreveu no quadro de avisos do departamento que ministraria o curso. 

"Devido à impossibilidade da Presença pura, o material do curso consistirá em transmissões de vídeo – consideradas, entretanto, em sua textualidade. Não há pretensão alguma de enunciar uma narrativa-mestra ou totalizada sobre o futebol de Michigan. Quer-se apenas tematizar certas aporias da Power-I formation – ou seja, da subjetividade pós-moderna."

Era uma piada, é claro. O que Sahlins considerou "assustador"? A quantidade de alunos, mesmo pós-graduandos, que solicitaram a inscrição no curso. Qualquer semelhança com o que ocorre no caso que resultou no ótimo Imposturas intelectuais*, de Alan Sokal e Jean Bricmont (Record, esgotado, mas que pode ser baixado AQUI), sobre o qual qualquer hora quero escrever umas palavrinhas, não é apenas coincidência. 
*Aos que têm pouco tempo, mas gostam de livros realmente interessantes que façam alguma diferença num universo de meras árvores mortas processadas, recomendo a leitura, pelo menos, da introdução e do capítulo primeiro, sobre Jacques Lacan. Quem puder ler o livro inteiro, ótimo. Para quem não puder, essas partes já são suficientes para entender a proposta. 

Agora, o texto que tive o prazer de digitar para disponibilizar na internet: A poética da cultura, III

*

A corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzscheana com o poder é a encarnação mais recente do incurável funcionalismo da antropologia. Como seus antecedentes estrutural-funcionalistas e utilitaristas, a hegemonização é homogeneização  a dissolução de formas culturais específicas em efeitos instrumentais genéricos. Tudo o que era preciso saber sobre, digamos, as relações jocosas prescritivas  sua "raison d'être" même  era que contribuíam para a manutenção da ordem social, do mesmo modo que as cerimônias totêmicas ou a magia agrícola organizavam a produção alimentar. Agora, porém, no lugar da "solidariedade social" ou da "vantagem material", o "poder" é o buraco negro intelectual para o qual todo e qualquer conteúdo cultural acaba sendo sugado. Repetidamente fazemos essa barganha idiota com as realidades etnográficas, abrindo mão do que sabemos sobre elas a fim de compreendê-las. Como disse Sartre sobre um certo marxismo vulgar, somos impelidos a tomar o conteúdo real de um pensamento ou ato como mera aparência, e, tendo dissolvido esse particular em um universal (no caso, no interesse econômico), comprazemo-nos em acreditar que reduzimos a aparência à verdade. Max Weber, criticando certas explicações utilitaristas dos fenômenos religiosos, observou que o fato de uma instituição ser relevante para a economia não significa que ela seja economicamente determinada. Mas, se seguirmos Gramsci e Foucault, o atual neofuncionalismo do poder afigura-se ainda mais completo: como se tudo o que pudesse ser relevante para o poder fosse poder.

Assombrosa, então, vem a ser a variedade de coisas que os antropólogos podem agora explicar em termos de poder e resistência, hegemonia e contra-hegemonia. Digo "explicar" porque o argumento consiste inteiramente em categorizar a forma cultural em pauta em termos de dominação, como se isso desse conta dela. Eis aqui alguns exemplos, extraídos dos últimos anos de American Ethnologist e Cultural Anthropology:

1. Apelidos em Nápoles: "prática discursiva empregada para construir uma representação particular do mundo social, [o ato de conferir apelidos] pode tornar-se um mecanismo para reforçar a hegemonia de grupos nacionalmente dominantes sobre grupos locais que ameaçam a reprodução do poder social" [Fora!: não se sabe o que há em um nome, quanto mais em um apelido...].

2. Poesia lírica beduína: esta é contra-hegemônica [Viva!].

3. Moda feminina em La Paz: contra-hegemônica [Viva!].

4. A categorização social de escravos libertos dominicanos como "camponeses": hegemônico [Fora...].

5. O sistema andino de fiestas no período colonial: hegemônico.

6. A "espiritualidade" construída das mulheres bengalesas de classe média, tal como expressa em sua dieta e vestimenta: nacionalismo hegemônico e patriarcado.

7. Certos pronomes vietnamitas: hegemônicos.

8. Lamento funerário dos índios Warao, Venezuela: contra-hegemônico.

9. Construção de casas na base do "faça-você-mesmo" por trabalhadores brasileiros: uma prática aparentemente contra-hegemônica que introduz uma hegemonia ainda pior.

10. O humor físico e escatológico dos homens desempregados da classe trabalhadora mexicano-americana: "uma ruptura opositiva na hegemonia alienante da cultura e da sociedade dominantes".

11. Senso comum: "pensamentos e sentimentos de senso comum não necessariamente tranquilizam uma população inquieta, mas podem incitar à rebelião violenta, ainda que contida".

12. O conceito de cultura como totalidade sem falhas e o de sociedade como entidade de fronteiras bem marcadas: ideias hegemônicas que "mascararam efetivamente a miséria humana e abafaram as vozes dissidentes".

"Uma hiperinflação de significância" seria outra maneira de descrever esse novo funcionalismo que traduz o aparentemente trivial no politicamente retumbante por meio de uma retórica que, tipicamente, lança mão de um dicionário de nomes e conceitos modernosos, muitos deles franceses, uma verdadeira La Ruse* do pós-modernismo. Evidentemente o efeito final, ao invés de amplificar a significância dos apelidos napolitanos ou dos pronomes vietnamitas, trivializa termos como "dominação", "resistência", "colonização", e mesmo "violência" e "poder". Privadas de referência real-política, essas palavras tornam-se puros valores, cheios de som e fúria, que não significam nada... exceto o falante.

* Jogo de palavras entre Larousse, o dicionário, e "la ruse", "a manha" ou "a astúcia". [N. T.]

Em SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 

Há, ainda, uma resenha de Lilia Moritz Schwarcz sobre o livro: AQUI.

terça-feira, setembro 08, 2015

A biblioteca esquecida de Hitler - Timothy W. Ryback

“Ele foi, é claro, um homem mais conhecido por queimar livros do que por colecioná-los. Contudo, na época de sua morte, aos 56 anos, estima-se que possuísse cerca de 16 mil volumes. Em qualquer medida, uma coleção impressionante: primeiras edições das obras de filósofos, historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas”.

Este homem é Adolf Hitler, e é assim que começa o prefácio do interessante A biblioteca esquecida de Hitler: os livros que moldaram a vida do Führer, do historiador Timothy W. Ryback. Comprei esse livro em julho de 2013 (costumo anotar no livro a data de compra), mas o li apenas agora (e pretendo começar a anotar no livro a data de leitura embaixo da data de compra, para que no futuro eu não me perca na minha própria história como leitora), em agosto. O título é chamativo, e talvez alguém possa se perguntar por que não li esse livro antes de saborear a recomendação feita pelo colunista e cientista político português João Pereira Coutinho, na Folha, mas eu tenho em casa tantos livros não lidos (todos aparentemente bons; não cometo mais o erro de comprar livros ruins por puro colecionismo) que ficava difícil uma obra sobre Hitler reaparecer na lista de leituras próximas. Eu sabia que leria esse livro quando voltasse a ler sobre Segunda Guerra Mundial. Na última vez em que procurei me “especializar” nesse assunto, estava no último ano do ensino médio e tomei emprestada uma porção de livros do tipo na biblioteca do colégio, além de ter comprado uma ou outra coisa no sebo. De lá para cá, li algumas coisas sobre Hitler e Segunda Guerra, mas nada tão intensivo. O tema sempre me instigou, mas eu tinha duas pulgas atrás de cada orelha sobre ele: primeiro, há muita gente bronca que não estuda nada de história, mas sente fascínio – um fascínio quase fetichista – sobre a II Guerra, e isso me desestimulava; segundo, conheci um ou outro (por que estou sendo aveludada?, conheci vários) patife que foi cursar História porque “gostava da II Guerra Mundial” e pretendia, já no final da graduação, escrever monografias sobre: e, não, não era vinculando a participação brasileira na II Guerra – era mesmo um pensamento calouro de quem não atenta que pesquisa acadêmica não é trabalho escolar em que você escreve um “estudo” sobre Hitler sem saber inglês, sem saber alemão e sem sair do conforto da sua morada numa cidade do interior. (Também cometi esse erro primário: cheguei à faculdade de Ciências Sociais – que não finalizei – jurando que meu trabalho de conclusão de curso seria provando que Deus era uma farsa. Felizmente, já nos primeiros meses alguns professores realistas, jardineiros da selva de pedra, vieram com suas tesouras de poda e me colocaram no lugar de raminho novo que eu era.) Evitando um pouco a II Guerra, eu estava fugindo do tema que é o pretinho básico da história, o tema que é escolhido como pauta de interrogatório quando você conta a leigos que é formado em História: ninguém quer saber por que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea ou se o estudo de Peter Gay sobre Freud é respeitado entre historiadores renomados – todos querem entender o nazismo. Para parecer um singular historiador entre não-historiadores, basta apostar a maioria das fichas nisso. Mussolini não exerce nem um quinto do encanto de Hitler. Nem Stálin, outra aberração política que mereceria o mesmo espanto.
 
Quando a II Guerra chegava ao fim e Hitler se preparava para a derrota do modo mais eficiente possível – cometendo suicídio –, milhares de livros seus eram deixados para trás. Terrivelmente, a maioria foi queimada ou sumiu. O trabalho de reconstituição de personalidade que historiadores passaram a fazer baseados nas leituras do antigo Führer apresentou inúmeras lacunas, e certamente muitos livros essenciais – livros com “intromissões a lápis”, na ótima expressão de Ryback – ficaram entre os sumidos. Pior: devem ter ficado entre os queimados. Um livro sumido é recuperável, tanto é que muitos livros de Hitler surrupiados por soldados americanos e soviéticos foram devolvidos posteriormente para bibliotecas temáticas e arquivos, mas um livro queimado não pode ser estudado: o fato de o corpo do ditador ter sido queimado após o suicídio impediu que estudiosos o dissecassem (do ponto de vista dos nazistas, foi sábio cremá-lo antes que as forças inimigas pudessem ostentá-lo como troféu e dispor dele como bem entendessem), assim como a ausência desses livros queimados nos impede de entender a plenitude da influência que Hitler, um leitor assíduo, sorveu de cabeças alheias. 



A biblioteca esquecida de Hitler perfaz a história do Führer desde 1915, quando ele era cabo do 16º Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro, então com 26 anos, até sua morte, em 1945. A busca de Hitler por vingança – não somente por causa da humilhação sofrida pela Alemanha após a Primeira Guerra, mas também pela falida vida pessoal –, sua importância dentro do Nacional-Socialismo que surgia, a ascensão ao poder e as decisões militares tomadas no decorrer da Segunda Guerra fazem sentido nessa obra quando vinculadas a leituras, principalmente. Não é uma história genérica sobre o Nazismo, mas uma história de como livros ajudaram a construir um dos capítulos mais negros da história mundial. Ao escrever um capítulo dedicado ao que seria o terceiro livro de Hitler (Mein Kampf teve dois volumes, um sobre vida pessoal e outro sobre política, lançados em tempos diferentes e por isso considerados como dois títulos) – livro que ele, Hitler, ficou aliviado de não ter publicado porque teria atrapalhado sua guinada no governo – Ryback escreve brevemente sobre o momento da ascensão:

“Um ano após completar o que se tornaria o Alvo nº 589, Hitler viu suas possibilidades políticas, tão sombrias no verão de 1928, mudarem drasticamente. Em 3 de outubro de 1929, Gustav Stresemann sofreu um violento ataque cardíaco. Três semanas depois, a Bolsa de Nova York despencou, e com esta a economia alemã. A popularidade de Hitler disparou. Não mais ocioso pela marginalização política, Hitler abandonou a carreira de escritor. Em três breves anos, se tornaria chanceler da Alemanha”.

Esse trecho encerra um capítulo. Quem quiser saber mais detalhes da transição de Hitler das sombras para a cabeça do governo terá que procurar outras bibliografias. Não é, portanto, um livro sobre a II Guerra. É um livro sobre livros, com a II Guerra como pano de fundo da maior parte dos capítulos.

Um autor que acompanha todo o livro é Walter Benjamin e seu ensaio Unpacking my library: a talk about book collecting. Pensei que não fosse encontrá-lo em português, até porque não me lembro de ter ouvido falar de algum texto do Benjamin sobre coleções de livros, mas existe: o ensaio está na compilação Obras escolhidas II: rua de mão única, lançada pela Editora Brasiliense. Já encomendei, e já sei de quase tudo que trata, pois Ryback busca uma porção de excertos desse texto para basear o sentido da existência de bibliotecas particulares, a relação entre o colecionador e seus livros e como tudo isso tem a ver com Hitler. Benjamin era um adorador de livros. Consequentemente, um colecionador. Faz todo sentido (e cria um notável embelezamento) que Ryback vá tomando aquele ensaio para abrir e fechar assuntos, costurando-os:

“Walter Benjamin certa vez disse que dá para saber muita coisa sobre um homem pelos livros que ele mantém: seus gostos, seus interesses, seus hábitos. Os livros que guardamos e os que descartamos, os que lemos bem como os que decidimos não ler, dizem algo sobre quem somos. Como um judeu alemão crítico da cultura nascido numa época em que era possível ser 'alemão' e 'judeu', Benjamin acreditava no poder transcendente da Kultur. Acreditava que a expressão criativa, além de enriquecer e iluminar o mundo que habitamos, também proporciona a argamassa cultural que liga uma geração à próxima, uma interpretação judaico-germânica do antigo ditado ars longa, vita brevis”.

É possível saber muito sobre Hitler analisando a biblioteca que expandiu ao longo dos anos, vendo os livros em que fez questão de se intrometer com seu lápis – marcando trechos, colocando pontos de exclamação ou de interrogação ao lado de parágrafos –, os livros que não apresentam muitas intromissões, mas possuem sinais de manuseio, e os livros que não leu. Os livros que não leu foram inúmeros, até porque muitos deles só se juntaram à coleção como oferenda: além disso, havia um filtro para esses presentes que o Führer deveria receber, e só uma parte do que queriam dar a ele chegava, de fato, ao seu acervo (sem o filtro de assessores, a montanha seria muito maior). Em dado momento, Benjamin é revivido em sua análise para nos lembrar que dificilmente os bibliófilos leem todos os livros de suas coleções – na verdade, segundo estima Benjamin, e de acordo com “fontes confiáveis”, esses colecionadores costumam ler apenas dez por cento das obras que possuem. Ocorre que a análise feita em cima do acervo de Hitler que restou deixa passar inúmeros livros que devem ter sido queimados, mas que foram fundamentais na vida do ditador. Hitler não leu dez por cento dos livros que pesquisadores estudam, já que boa parte dos livros desapareceu, e sim dez por cento de uma biblioteca que só podemos supor. Há uma avaliação de Ryback (avaliação que João Pereira Coutinho faz questão de frisar em sua coluna para mostrar que Hitler, apesar de ávido leitor, lia muitas coisas medíocres e não se aprofundava em filosofia, por exemplo) que considero um pouco receosa: a de que Hitler só usou nomes como Nietzsche e Schopenhauer de forma superficial em seus discursos e elogios, e que associá-lo com eles é um tanto suspeito.

“Embora não haja razão para duvidar que possuía exemplares das obras de Schopenhauer, encontrei um só volume desse filósofo entre os livros remanescentes de Hitler, uma reedição de 1931 de uma tradução feita por ele de A arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, do jesuíta do século XVII Baltasar Gracían. Essa edição em encadernação barata, de 92 páginas, é tão modesta no tamanho que o ex-libris de Hitler preenche toda a contracapa. O indício mais sólido da centralidade de Schopenhauer na vida de Hitler é o busto do filósofo descabelado que Hitler exibia em uma mesa no seu escritório em Berghof”.

O que eu me pergunto é: seria Hitler tão pedante a ponto de colocar, em seu escritório, o busto de um filósofo que ele mal leu? O fato de Hitler ser odioso moralmente não faz com que ele seja automaticamente absurdo em outras searas. Tratando-se de um leitor crônico, também fica difícil suspeitar que ele, como tantos, se aproveitou de uma figura e louvou essa figura até em pequena estátua por pura vaidade fraudulenta. Sendo ele uma pessoa que não lê, eu não duvidaria da empáfia desse oportunismo intelectual. Como era um leitor contumaz, apenas acho que se poucas obras de autores que ele tanto citava, como Schopenhauer e Nietzsche, foram encontradas, pode ser porque elas estavam entre os livros perdidos.

Leni Riefenstahl, atriz e cineasta que dirigiu, em 1934, o tributo ao Partido Nazista Triunfo da vontade, e, pouco depois, Olympia, o documentário em duas partes sobre os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, foi, por muitos anos, estimada por Hitler. Segundo conta, teve uma desavença com ele ao comentar sobre alguns amigos judeus que estavam tendo problemas com o governo, mas desculpou-se por sua intromissão em assuntos políticos presenteando-o com a primeira edição das obras completas de Fichte, encadernadas em couro branco. Foi ela uma das fontes que assegurou o gosto de Hitler por Schopenhauer:

“Riefenstahl proporciona um relato igualmente eloquente, mas contraditório. 'Tenho muita coisa a pôr em dia', Riefenstahl lembra que Hitler contou no conforto guarnecido de livros de seu apartamento na praça Príncipe Regente. 'Na minha juventude, não tive os meios ou a possibilidade de obter uma educação adequada. Toda noite leio um ou dois livros, mesmo quando vou para a cama tarde'. Ele disse que aquelas leituras constituíam sua fonte básica de conhecimentos, a essência de que derivava seus discursos públicos. 'Quando se dá também se precisa tirar, e eu tiro o que preciso dos livros', ele disse. Quando Riefenstahl perguntou a Hitler o que gostava de ler, ele teria respondido: 'Schopenhauer'.
'Nietzsche não?', Riefenstahl perguntou.
'Não, não consigo aproveitar muito Nietzsche', Riefenstahl lembra que Hitler respondeu. 'Ele é mais artista do que filósofo; falta-lhe a compreensão cristalina de Schopenhauer. Claro que valorizo Nietzsche como um gênio. Ele escreve talvez a linguagem mais bonita que a literatura alemã pode oferecer atualmente, mas não é o meu guia'”.

Páginas antes, Ryback coloca uma nota de rodapé comentando que Steven Bach, autor de uma recente biografia de Leni Riefenstahl, sugere a necessidade de cautela com os relatos dela, já que era “uma narradora nada confiável”. Eu inquiro: mas o que ela teria a ganhar mentindo sobre isso? Pessoas mentirosas, desde que não sejam mitômanas, costumam mentir para se livrar de um problema, para criar problemas para outros ou para conseguir alguma coisa. Se fosse para Riefenstahl, narcisista, mentir sobre algo, talvez preferisse mentir sobre seus feitos ou dizendo que chegara a se preocupar com a situação dos judeus na época do nazismo. Mas de que problema ela estaria se livrando ou que coisa ela conseguiria inventando o diálogo que teve com Hitler sobre Nietzsche e Schopenhauer?

Outra razão para Ryback considerar que Hitler não fora um grande leitor de Schopenhauer foi o fato de ter encontrado o nome do filósofo grafado de forma errada em “anotações sobreviventes de discursos manuscritos”, com dois “p”: “Schoppenhauer”. Como é que alguém que admira tanto um teórico não sabe escrever o nome dele? Mas parece que não era privilégio de sobrenomes germânicos complicados receberem má escrita de Hitler, pois mesmo palavras simples eram grafadas de maneira incorreta. O Führer chegou a escrever erros que seriam equivalentes ao nosso “prizão” e “presado”, palavras que eram corriqueiras nos livros que lia. Nem sempre quem lê vorazmente presta atenção no que lê, na formação das palavras e na composição das sentenças. Hitler, leitor, tinha problemas com a ortografia de seu idioma e não dera muito certo como escritor: Mein Kampf teve que passar por severa revisão antes de ser publicado. Por isso, humildemente, não considero que grafar erradamente o nome de Schopenhauer seja forte indício da falta de leitura e que a apropriação de saber foi rasa.

Há, claro, algumas situações estranhas, mas são estranhas como a humanidade. Por exemplo, o fato de Hitler admirar tanto Fichte. Como Hitler poderia admirar Fichte e Schopenhauer se Schopenhauer possui bons e claros textos desprezando completamente a contribuição de Fichte para a filosofia? Seu ódio por Fichte talvez só fosse menor que seu ódio por Hegel, então será que isso não seria um indício de que Hitler não leu Schopenhauer de verdade? Essa questão é minha, não está no livro. Mas Ryback apresenta outra coisa que pode depor contra o Hitler schopenhaueriano: diz-se que ele levara O mundo como vontade e representação para ler no front enquanto era estafeta. Ryback duvida que ele tenha perambulado em meio à guerra com um calhamaço daqueles. Mas eu volto a perguntar: e por que isso desabonaria o possível gosto de Hitler por Schopenhauer? Eu mesma não li essa obra (tenho-a há anos, mas permanece na estante como um livro inescrutável para o qual ainda não me sinto preparada) e me considero no direito de me declarar uma amante de Schopenhauer “somente” porque li e reli todas as belas compilações que a Martins Fontes publicou das ideias dele. Não é preciso ler toda a obra de alguém para se poder declarar, com justiça, admirador desse alguém. Talvez Hitler não gostasse de colóquios muito metafísicos e preferisse o Schopenhauer que fala sobre matérias de ordem prática. Logo, não vejo como mesmo essas situações pontuadas por Ryback podem quase provar que Hitler era uma fraude em suas menções ao filósofo como um de seus mentores intelectuais.

Como apreciadora de Schopenhauer, é claro que eu não acho agradável que eu mesma esteja forçando as pessoas a acreditar que Hitler, um ditador megalomaníaco que estava disposto a matar milhões de pessoas para alcançar seu ideal de povo superior, também apreciava Schopenhauer. Mas história é isso: ela é o que é, e não o que queremos, com nosso moralismo e nossas desculpas, que ela seja. Já reparei em alguns bons livros de escritores mais antigos que costuma haver uma vontade do editor e do tradutor para fazer com que nós, leitores, perdoemos autores que tinham pensamentos antiéticos no passado. Explico: peguemos, por exemplo, um livro de Nietzsche, uma passagem em que ele deixa bem claro, talvez, que considera as mulheres inferiores. Não tardaremos encontrar comentaristas e estudiosos revolvendo outros fatos da vida dele que mascarem essa discriminação. Você lerá ou ouvirá desses aduladores: “apesar desta passagem parecer preconceituosa, na verdade Nietzsche não pode ser chamado de machista, pois em outro momento, ao encontrar uma mulher inteligente, ele disse que mulheres podem ser etc.” Isso é só um exemplo. Meu ponto aqui é mostrar que amamos tanto certos teóricos que queremos sacralizá-los. “Nesta passagem, Schopenhauer parece mostrar asco por índios, chamando-os de primitivos, mas há um outro momento em que ele elogia comunidades indígenas etc”. Tenta-se poupar Schopenhauer de qualquer fiapo que ligue um filósofo que respeitamos a um juízo antiquado que depreciamos. Tenta-se poupar qualquer sujeito canonizado de qualquer maculação muito severa, sendo “desculposo” em nome de um autor antigo que vivia em outra sociedade, numa outra época, com outro espírito social. Como mulher que lê Nietzsche no século XXI, sinto-me mal ao ler as más referências que ele faz ao meu sexo? Concordar, não concordo, mas não passo mal, nem de longe. Eu entendo que ele vivia em outro universo e não tinha obrigação de ser pioneiro em tudo, não era todo o assunto que ele abordava que precisava se transformar em ouro. Passar mal eu passaria se alguém que vive na mesma sociedade que eu levantasse aquelas ideias como se fossem teses perfeitamente aplicáveis a este tempo. Ao tentar, com insistência, poupar Nietzsche e Schopenhauer de terem sido lidos por Hitler, acho (apenas acho) que Ryback está fazendo como tantos estudiosos que temem macular nomes sagrados ligando-os a discípulos pérfidos. Esse mau julgamento social por causa da vinculação entre um e outro não deveria querer dizer nada, pois Schopenhauer não tem culpa daqueles que o leram, e se o leram errado. Ryback mesmo aponta em alguns episódios que Hitler era um leitor estúpido porque procurava nos livros meras ratificações melhor teorizadas para aquilo que ele já pensava. Não era um leitor de mente aberta disposto a mudar suas opiniões caso argumentos fundamentados provassem que ele estava equivocado. Na idade adulta, colhia o que já estava disposto a colher, não demonstrava alterar radicalmente o que reputava: já tinha uma ideia troncal e os livros só permitiram que a partir disso ele desenvolvesse galhos. Assim, se leu Schopenhauer, deve ter passado por diversos pareceres que execrou. Roubou o que queria e moldou sua oratória com isso. Não cabe a ninguém querer sofrer com essa ligação tortuosa, posto que em nenhum lugar de sua obra Schopenhauer, por mais misantropo que fosse, defendeu genocídio (pelo menos até onde li). Se fosse o caso, talvez pudéssemos nos alarmar. Mas se fosse mesmo o caso, provavelmente Schopenhauer nem teria adquirido a grandeza que adquiriu.

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Max Osborn era um crítico de arte alemão aclamado no começo do século XX. Em 1915, ocioso em sua posição de soldado-mensageiro por causa de forte chuva, Hitler adquiriu o livro Berlim, de Osborn, que tratava da história arquitetônica da cidade. Em vez de comprar cigarros, aguardente ou gastar com mulheres, preferiu usar quatro marcos para comprar um livro, escolha de lazer atípica para um cabo da linha de frente. Efetuada a compra, marcou timidamente seu nome, local e data no canto superior direito da contracapa: “A. Hitler, Fournes 22/novembro, 1915”. A personalidade de Osborn é pitoresca, logo, instigante. Irreverente, escreveu uma história cultural de Satã, em que chamava os anjos de “as mais enfadonhas das criaturas de Deus”. Em sua época, já criticava certa frivolidade dos populares:

“Em 1908, quando a editora Seeman Verlag solicitou a Osborn que escrevesse um guia de Berlim, ele concordou mas sob o pressuposto de que era um crítico de arte, não um guia turístico. Desse modo, recebeu o leitor em seu Berlim com a advertência maldosa: por que seu editor incluiria essa cidade entre as 'capitais culturais' da Europa quando 'o que o mundo do século XX acha mais fascinante na capital do Reich alemão não é exatamente a beleza de seus monumentos históricos ou de sua rica herança cultural'?”

Crítico de arte, passou a temporariamente ser crítico de guerra. Ao ver um mensageiro galopando num cavalo pelo campo aberto, comparou a cena em que homem e animal usavam máscaras contra gás a uma tela de Hieronymus Bosch. Ficou horrorizado ao ver tantos corpos humanos em decomposição, com ratazanas se alimentando deles. Lugares antes encantadores tinham se transformado em imagens de horror: “simplesmente incompreensível”, escrevera.

O exemplar de Hitler de Berlim está completamente desgastado, sinal de que foi lido com entusiasmo por aquele soldado que tinha tantas ambições artísticas. Muito do ideal estético nazista faz menções indiretas aos gostos de Osborn: se Hitler realmente começou a pensar que a Alemanha deveria ser “depurada” de “elementos estrangeiros” nas artes a partir da leitura do crítico – também adepto de expressões mordazes para se referir a essas contaminações, como “selvageria do gosto” ou “profusão de pragas artísticas” –, não está claro no livro de Ryback, mas a ideia de ambos nesse âmbito parece casada, já que Osborn também louvava a Grécia revivida em território prussiano, como ele considerava o caso do Portão de Brandemburgo. (Para entender rapidamente o apreço estético consagrado na ditadura nazista, recomendo o conhecido documentário Arquitetura da destruição.)

No mesmo livro, Osborn utiliza um capítulo de trinta páginas “sobre Frederico, o Grande, o lendário rei-guerreiro do século XVIII que consolidou a primazia da Prússia como potência militar” (palavras de Ryback). Frederico se tornaria o futuro ídolo de Hitler, mas Osborn se põe a criticá-lo: chama o monarca de intrometido, avarento, “filho total da mediocridade artística de sua época”, mais preocupado com a beleza das próprias perucas que com as construções públicas. O desmoronamento da igreja do Gendarmenmarkt é narrado com prazer especial: o rei obrigou os construtores a encerrarem a obra em metade do tempo previsto e com orçamento reduzido; quando os operários estavam terminando o telhado, as paredes da igreja desabaram, matando quarenta deles. Osborn comenta sobre o jocoso livreto Sinto muito escrito pelos cidadãos berlinenses, defendendo a irônica teoria de que as paredes haviam sido construídas com pão de mel em vez de pedras. Esse capítulo tem claros sinais de manuseio e exame cuidadoso da parte de Hitler. Nem por isso o futuro ditador alemão deixou de louvar e tomar Frederico como referência de liderança. Assim, esse caso ajuda a responder a pergunta que fiz lá em cima sobre se o fato de Hitler adorar Fichte e Schopenhauer – sendo que Schopenhauer desprezava Fichte com convicção – poderia ser um sinal de que alguém não foi realmente lido desses dois. Hitler parece ter adotado diversas ideias de Osborn, mas não a desse capítulo em particular que pretendia inspirar menosprezo por Frederico. Com certeza admirou muitos homens responsáveis pelos livros que lia, mas de maneira seletiva.

O capítulo sobre Osborn (capítulo chamado de Livro 1: Leituras da linha de frente, 1915), encerra com alguns parágrafos interessantes, deixados providencialmente para o final. Ryback frisa que o exemplar de Berlim pertencente a Hitler seria guardado com ele para o resto da vida e:

“Na segurança protetora da coleção de Hitler, esse volume sobreviveu à queima de livros de maio de 1933 – como judeu, Osborn constava da lista dos autores proibidos e acabou emigrando para os Estados Unidos – e aos bombardeios subsequentes dos Aliados na década de 1940”.

Esse é aquele momento da leitura em que você para, pousa o livro no colo e digere tudo que veio antes de forma diferente por causa da inserção de uma informação essencial que dá um novo tom ao capítulo a ser findado. É aquele momento em que você tem vontade de largar o livro para dar um passeio reflexivo. Ryback poderia nos ter dito que Osborn era judeu lá nos primeiros parágrafos. Ciente de como mostrar ao leitor o que ele deve sentir e em qual instante da leitura é preciso demonstrar esse sentimento, deixou o impacto para o final. Não vale somente para a literatura: um livro é valioso não somente pelo que informa, mas como informa.

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A biblioteca esquecida de Hitler certamente abriga inúmeras histórias valiosas sobre os autores que Hitler leu, as pessoas com quem fez amizade – e que acabaram influenciando suas leituras com recomendações –, sua atitude diante do desenrolar da guerra. Não me cabe aqui resumir todos esses causos, até porque não quero que ninguém perca a vontade de ler o livro por ele já estar todo revelado em estrutura nesta postagem, então vou me ater a apenas mais um capítulo escolhido ao acaso (já que todos me interessaram muito – exceto aquele sobre misticismo, e percebi que não me interessara por ele porque páginas e páginas se passaram e não senti vontade de acentuar nada com minha lapiseira). É o capítulo 3º, A trilogia de Hitler, sobre a escritura do Mein Kampf.

Na noite de 8 de novembro de 1923, Hitler surgiu numa cervejaria de Munique dando um tiro de pistola no teto, anunciou uma revolução nacional e sob a mira de armas obrigou a liderança política da cidade ali reunida a jurar fidelidade. Na manhã seguinte, marchou com 2 mil radicais de direita para o centro de Munique, pretendendo reproduzir a marcha de Mussolini sobre Roma que possibilitou a ascensão do governo fascista. Na praça Odeon, foram recebidos a tiros por um cordão militar. Dezesseis morreram. Hitler foi preso três dias depois.

“Quase imediatamente, Kahr, Seisser e Lussow [os membros da liderança política local] se afastaram do empreendimento fracassado. Alegaram ter tentado dissuadir Hitler de realizar o golpe, o que era verdade, e que ele os coagira a cooperar sob a mira de armas, o que também era. Hitler alternou-se entre a perplexidade e a raiva pela 'traição' deles. Primeiro cogitou suicidar-se, depois realizou uma breve greve de fome, e enfim decidiu 'ajustar contas'”.

O ajuste de contas começou com um texto de sessenta páginas que serviu para sua defesa perante o tribunal. Encerrou dizendo que seria absolvido pela história (pelo visto, uma expressão recorrente entre ditadores que esperam justificar atrocidades). Depois, recebendo a regalia de ter luz acesa durante a noite na prisão, começou a fazer leituras que embasariam a obra pela qual é conhecido, obra que inicialmente se chamaria Uma batalha de quatro anos e meio contra mentiras, estupidez e covardia, mas que mudara de nome graças à sugestão de Max Amann, empregado na editora do Partido Nazista. Essas leituras seriam chamadas por ele de “formação superior às custas do Estado”, já que, de certo modo, parecia nutrir ressentimento por não ter podido prosseguir seus estudos formais. Além de escrever o livro por motivação vingativa, Hitler também o fez para se livrar de dívidas financeiras, principalmente aquelas que contraíra com o assessor jurídico que o ajudara a preparar a defesa em seu julgamento. Assim, contava com um alto número de vendas quando seu trabalho fosse publicado.

Henry Ford foi uma das maiores inspirações de Hitler no combate aos judeus:

“Além do perfil racial do povo alemão, de Günther, outra influência importante sobre o conteúdo intelectual de Mein Kampf foi uma tradução alemã de O judeu internacional, de Henry Ford. Embora não disponhamos mais do exemplar pessoal de Hitler da tradução em dois volumes do execrável tratado racista, sabemos que Hitler possuía uma, assim como um retrato do autor, ao menos um ano antes de começar a redigir Mein Kampf. 'A parede junto à escrivaninha no escritório particular de Hitler está decorada com um retrato grande de Henry Ford', informou o New York Times em dezembro de 1922. 'Na antecâmara, uma mesa grande está coberta de livros, quase todos sendo uma tradução de um livro escrito e publicado por Henry Ford'.
O livro de Ford havia sido publicado naquele ano em alemão sob o título Der internationale Jude: Ein Weltproblem, e foi uma sensação imediata. 'Li-o e me tornei antissemita', recordou Baldur von Schirach, o futuro líder da Juventude Nazista, que era adolescente quando surgiu o livro de Ford. 'Naquela época aquele livro causou uma impressão tão profunda nos meus amigos e em mim porque víamos em Henry Ford a imagem do sucesso, bem como o expoente de uma política social progressista'”.

A adoração a Ford também se mostraria na frequente menção a ele nos discursos de Hitler e sua declaração a um repórter: “considero Ford minha inspiração”. Eu, que já abomino Ford desde minhas leituras sobre o nazismo na adolescência, questiono: Hitler teria sido menos nefasto caso o empresário de carros não tivesse existido? É claro que naquele tempo havia muito material anunciando, às escâncaras, o ódio pelos judeus e a superioridade racial de alguns povos, mas Ford pareceu muito “didático” e prático em seu livro. Além disso, muitas pessoas o tiveram em grande crédito e por meio dele passaram a externar com orgulho um antissemitismo antes retraído. Não duvido que um sujeito perverso e megalomaníaco como Hitler pudesse se tornar ainda pior por causa das leituras que levava em consideração e das quais tirava aprimoramentos de suas ideias. Nada estava tão ruim que não pudesse piorar no turbulento começo do século XX.

Houve uma série de adiamentos até que o trabalho de Hitler pudesse ser publicado. Uma das preocupações de Max Amann era com o fraco mercado de livros da época: com Hitler ainda proibido de falar em público por causa de sua condenação, não seria possível fazer comício nas cervejarias, e com isso se perdia uma grande fonte de venda de livros. Mas o principal motivo para o adiamento foi o processo de edição da obra: até sete companheiros de Hitler afirmaram ter trabalhado no texto antes de seu lançamento. A “formação superior às custas do Estado” da qual Hitler se vangloriara, pensando-se um exemplar autodidata, parece não ter surtido efeito na erradicação de seus constantes erros gramaticais e fragmentos intelectualmente vazios, cheios de vícios que podiam passar despercebidos na fala, mas que num livro ficavam gritantes.

“Hanfstaengl recorda que batalhou com Hitler em torno das setenta primeiras páginas dos originais, afirmando ter eliminado os 'piores adjetivos' e seu 'emprego excessivo de superlativos', discordando sobre várias nuances. Quando Hitler escreveu sobre seu 'talento' como pintor, Hanfstaengl teria censurado: 'Você não pode dizer isso. Outros podem dizer, mas você mesmo não pode'. Hanfstaengl também observou 'pequenas desonestidades', como o fato de Hitler usar o termo 'funcionário público graduado' para seu pai. Hanfstaengl também reclamou da natureza provinciana do intelecto de Hitler, que o fez aplicar um termo como história do mundo – Weltgeschichte – a 'conflitos europeus pouco importantes'. Após essa sessão de revisão inicial, Hanfstaengl afirma, Hitler nunca mais lhe mostrou nenhuma parte do manuscrito”.

Rudolf Hess e Ilse, sua esposa, também recordaram a “batalha” que viveram com Hitler e seu original por meses. Só aos poucos Hitler dera razão às modificações que se mostravam necessárias em seu manuscrito.

Se Hitler esperava aclamação pública quando do lançamento do livro, deve ter ficado decepcionado com o que recebeu. Jornais descreveram sua obra como ato de suicídio político num artigo intitulado “O fim de Hitler”, duvidaram da “estabilidade mental do autor” e um crítico observou que faltou ao recente escritor ajustar contas consigo próprio. Mesmo pessoas de extrema direita teceram comentários negativos sobre a obra, ofendendo-se com o antissemitismo exacerbado que advogava. Um jornal brincou com seu nome e disse que deveria se chamar “Sein Krampf” (Sua cãibra). O livro, ilegível (no sentido de que não valia a pena ser lido) para muitos, se tornou motivo de piada em certos círculos. Mesmo assim, Hitler não se deixou capitular: presenteou muitas pessoas com sua obra e passou a trabalhar no segundo volume dela. Em pouco tempo terminara a proposta.

“(...) enquanto o volume I foi recebido com sarcasmo e desprezo pelos resenhistas, o volume 2 foi simplesmente ignorado – não apenas pelos críticos, mas pelos leitores também. Vendeu menos de setecentos exemplares após um ano no mercado”.

Pouco tempo depois, já estava escrevendo seu terceiro livro, que nunca seria publicado: um livro sobre suas memórias de guerra, inspirado nos relatos de Ernst Jünger (um dos livros dele sobre o tema, Tempestade de aço, foi publicado pela Cosac). O livro era mais comedido e analítico que os anteriormente escritos, tentando ser filosófico de maneira eclética. As ideias são apresentadas sem referências às fontes, mas é possível perceber uma colcha de pensamentos de um leitor que lia tudo. Ryback aposta em dois motivos para o livro não ter sido finalizado: primeiro, porque Hitler voltou à atividade política intensa – e seus momentos de escrita só apareciam quando ele estava em situação de privação, como quando estava preso ou sem forças políticas –, segundo, porque o mercado de livros estava fraco e as publicações anteriores do futuro ditador já tinham sido um fracasso no mercado.

“O próprio Hitler pode também ter reconhecido as falhas intrínsecas na estrutura eclética e irregular do livro ou possivelmente suas limitações como escritor. 'Que belo italiano Mussolini fala a escreve', Hitler comentou com seu advogado pessoal e futuro Gauleiter, Hans Frank. 'Não sou capaz de fazer isso em alemão. Simplesmente não consigo organizar meus pensamentos quando estou escrevendo'. Em comparação com a obra de Mussolini, Hitler observou, Mein Kampf parecia um exercício de fantasia 'atrás das grades', pouco mais que uma 'série de artigos para o Völkischer Beobachter'. 'Ich bin kein Schriftsteller', Hitler disse para Frank. 'Não sou um escritor'”.

Com o chamado das obrigações políticas que o levaram a governar a Alemanha, Hitler nunca mais teve tempo e viço para escrever. Continuou, todavia, lendo livros até o dia de sua morte.

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Foi muito proveitoso voltar a ler sobre a II Guerra com A biblioteca esquecida de Hitler. O livro é sério e bem escrito (há livros sérios, fidedignos, mas escritos de maneira plástica; ou, pior e surrealisticamente, há livros cujo estilo nos remete à palavra “alumínio”, se entendem o que digo), passa por uma fatia de assunto meio marginal a respeito do nazismo. Não é o único a escrever sobre os livros de Hitler – Ryback menciona autores de estudos com o mesmo objetivo –, mas é o que temos à mão facilmente aqui no Brasil, na bela publicação da Companhia das Letras. A partir dele, algumas breves e esparsas ponderações:

Há uma foto de Hitler no Arquivo de Nietzsche, em Weimar. Muitos tentam ligar Nietzsche ao antissemitismo, quando, como bem assinala Ryback, antissemita declarada era a irmã de Nietzsche, cuidadora daqueles arquivos. É claro que o filósofo alemão inspira algo de sensacional – Hitler apropriou-se de alguns de seus termos fortes como “vontade de poder” –, mas não deve ser responsabilizado pelo Nazismo. Sua irmã, sim, era visivelmente desequilibrada em plena sanidade. Nietzsche, que não era antissemita mas que defendia uma filosofia que podia ser usada para fins perversos, ainda possui a desculpa de sua doença para justificar ideias extravagantes.
(Já visitei esse arquivo em Weimar. É estranhamente inóspito a visitantes. Há duas salas. Na primeira, objetos de Nietzsche, inúmeros recortes de jornais em vidros e nas paredes – inclusive da época do Nazismo, ligando o filósofo ao Führer –, mas tudo em alemão. Pensei em fotografar para que depois, no dia em que aprendesse alemão, pudesse traduzir, mas no primeiro click a recepcionista, ranzinza não sei se por si ou se por obrigação da função, veio informar que eu não podia tirar fotos e que deveria apagar a que tirara. Na segunda sala, estátuas de Nietzsche, alguns livros e uma cadeira numa janela, cadeira onde ele passou muitos de seus dias mórbidos, quando mental e fisicamente incapaz. Nessa sala, a recepcionista não apareceu para nos sondar. Então tomamos a libertinagem de tirar algumas fotos. Na saída ela perguntou de onde éramos – só conseguimos nos comunicar com ela por intermédio de um casal de amigos que moram na Alemanha, já que ela não falava inglês – e disse que na semana anterior um brasileiro estivera lá fazendo pesquisas. Quem me dera saber alemão e poder ir lá fazer pesquisas!)


Muito se comenta sobre o vegetarianismo de Hitler. As falácias argumentativas dos carniceiros crescem como o pé-de-feijão do João e saem pela cidade espalhando jatos de fogo e cólera. Não me lembro de em nenhum momento ter cogitado que “comer carne é algo maligno porque, veja, não há histórico de psicopata que tenha sido vegetariano e a grande maioria dos ditadores comia carne”, porque posso falhar nas minhas análises, mas acho que não falho de forma tão absurdamente ignorante e débil. Mas já ouvi e li muitos doutores de fórum virtual essa fusão entre Hitler e vegetarianismo como prova de que... Pois é, prova de quê? Acho que carniceiros se sentem imorais comendo carne e querem tentar provar que imorais são os vegetarianos, pois Hitler era vegetariano. Mas em que biografia, documento, discurso, relato médico está escrito que Hitler era vegetariano por compaixão aos animais? Li certa vez que era mesmo vegetariano, mas que às vezes burlava a dieta (não lembro onde li, então não sei se é uma informação honesta). O filósofo Michel Onfray, em O ventre dos filósofos: crítica da razão dietética, encerra um capítulo com a informação solta sobre o vegetarianismo de Hitler, de certo modo insinuando que um ditador notoriamente cruel era vegetariano. Não sei qual é a necessidade dessa vinculação (e Onfray parece muito tomado de ódio para ser levado tão a sério, vide suas críticas de lamaçal a Freud) e, mesmo que seu vegetarianismo fosse por amor aos animais, não entendo o que pretende provar. Mas temos certeza que não era por amor, pois Ryback bem cita as palavras de Hitler: “As vacas foram criadas para dar leite; os bois, para conduzir cargas”. Quem nesse mundo que se preocupe com os animais pensará que eles têm a função de nos prover com leite e labor? Hitler, ególatra pensando que o planeta deveria se render a ele e a seu ideal de raça perfeita, só era vegetariano pelo bem de si mesmo e de sua saúde debilitada. Não deveria jamais ser citado em discussões sobre veganismo.

Por último, nosso conhecimento de Hitler como leitor só nos faz refletir o quanto era miserável. Interessante – se não fosse interessante, eu não me preocuparia em ler livros sobre ele –, mas miserável. Lia livros todas as noites, lia quase tudo que lhe caía nas mãos, desde tratados militares e catálogos sobre armas até estudos astrológicos e autoajuda popularesca. Schopenhauer o teria desprezado nessas leituras em série, diria que não era capaz de lidar com a própria solidão e de ter pensamentos próprios. Demonstra não ter lido ou não ter prestado atenção a esses textos que o fariam tão bem para crescer como indivíduo. Optou por adotar apenas a antissociabilidade de Schopenhauer e deixou que o monstro que havia dentro de si se estendesse para o mundo. Quis ser lembrado de maneira poderosa, mas a posteridade o vê como alguém que alcançou poder absoluto de maneira muito difícil de entender (a pergunta é: “como é que a sociedade pôde conceber alguém como Hitler?” – não me lembro onde li isso, acho que foi no Conversas com Albert Speer, do Joachim Fest, que estou terminando) e depois fracassou. Merece, enfim, ser lembrado como um mau leitor. Fico feliz, ao encerrar A biblioteca esquecida de Hitler, em saber que um dos piores ditadores da história era, no fim das contas, um leitor muito fraco que não sabia escolher tão bem o que lia e confundia quantidade com qualidade. Se fosse um bom leitor, eu ficaria tentada a admirá-lo um bocado, pelo menos nesse aspecto dos livros. Não aconteceu. Prossigo nas leituras sobre ele porque realmente é de se questionar como no século XX uma pessoa com tamanha degeneração moral pôde adquirir poder. Como leitor, é possível entender Hitler, mas jamais louvá-lo. Acho que sei separar as coisas e mesmo reconhecer as possíveis qualidades de alguém que socialmente recebe puro menosprezo. Com pontuais exceções, não precisei separar Hitler de seus livros: sua biblioteca o define.