quinta-feira, maio 26, 2016

Textos dos outros: A poética da cultura, III - Marshall Sahlins (do livro "Esperando Foucault, ainda", Cosac)


Antes do texto, breves comentários meus. 

Quando estava numa das faculdades que tentei fazer, Ciências Sociais, Foucault era uma sensação, principalmente nas disciplinas ministradas por professores da área de História, que pareciam querer se travestir dele. Fazer um trabalho acadêmico sem citar alguma coisa de Foucault era como ministrar uma palestra sobre frutas e não citar a banana. O micro-poder e o "tudo é poder, escancarado ou simbólico" parecia capaz de explicar qualquer coisa a que quiséssemos nos referir em artigos científicos. Cheguei a ouvir uma professora dizer para um aluno cheio de referências bibliográficas: "sabe o que está faltando e pode melhorar o seu trabalho? Foucault". 

Eu era jovem e influenciável. Por muito tempo achei que Foucault estava trajando roupas nobres e monárquicas que somente eu não enxergava. Depois que passei a ter horror a prolixos desnecessários e teóricos do tudo, comecei a repudiar o que Foucault representava e as pessoas que ele havia influenciado. Procurei por livros que o criticassem de uma maneira acadêmica que eu não seria competente para adotar. Quase nada havia. No meio do quase nada, um livro do Baudrillard que está esgotado há umas duas décadas: Esquecer Foucault (Rocco). Por estar esgotado, mesmo sendo pequenininho custava uma fortuna na Estante Virtual (muitos vendedores de livros antigos supervalorizam livros que não são mais publicados, mesmo que não exista procura), mas comprei, esperando esclarecimentos classudos para as minhas críticas birrentas. Descobri que quem não aprecia o estilo de escrita de Foucault não tem como gostar do estilo de Baudrillard, tão ou mais fresco. Escrito com a caneta do pedantismo francesinho, Esquecer Foucault é difícil de entender, se é que é para ser entendido: nem maçante é a palavra correta para defini-lo. O outro livro do universo do quase nada é o do esquecido erudito carioca José Guilherme Merquior (esquecido, provavelmente, por causa de seus envolvimentos políticos), que estou esperando chegar da Estante Virtual porque também não é mais publicado: Michel Foucault ou o niilismo de cátedra (Nova Fronteira). A obra, que só saberei se é boa depois da leitura, é chamada por Merquior de "antipanegírico". O neologismo é acertado, já que esse francês tem, até hoje, as botas lambidas por universitários e intelectuais preocupados em nomear os bois, mesmo que estejam numa matilha. 



Esperando Foucault, ainda é um livro ao mesmo tempo sério e humorístico do antropólogo americano Marshall Sahlins. Lançado na coleção Portátil da infelizmente finada Cosac Naify, pode ser lido em uma tarde sem filhos. Achei-o por acaso nas promoções dos livros da Cosac que a Amazon tem feito. Nem tudo me interessou nele, mas a parte central, que é a crítica ao delírio pós-modernista do qual Foucault faz parte, é perspicaz e sem rodeios. Num dos curtos textos, Sahlins comenta o modismo dos novos tempos de considerar que tudo pode ser uma cultura, e que qualquer dessas "culturas" merece estudo. Na Universidade de Chicago, um colega de Sahlins ofereceu um curso chamado "blues de Chicago, estudo intensivo de uma cultura". Se o blues de Chicago podia ser chamado de cultura, o futebol americano de Michigan, apreciado por Sahlins, também merecia o mesmo status. Provocador, ele escreveu no quadro de avisos do departamento que ministraria o curso. 

"Devido à impossibilidade da Presença pura, o material do curso consistirá em transmissões de vídeo – consideradas, entretanto, em sua textualidade. Não há pretensão alguma de enunciar uma narrativa-mestra ou totalizada sobre o futebol de Michigan. Quer-se apenas tematizar certas aporias da Power-I formation – ou seja, da subjetividade pós-moderna."

Era uma piada, é claro. O que Sahlins considerou "assustador"? A quantidade de alunos, mesmo pós-graduandos, que solicitaram a inscrição no curso. Qualquer semelhança com o que ocorre no caso que resultou no ótimo Imposturas intelectuais*, de Alan Sokal e Jean Bricmont (Record, esgotado, mas que pode ser baixado AQUI), sobre o qual qualquer hora quero escrever umas palavrinhas, não é apenas coincidência. 
*Aos que têm pouco tempo, mas gostam de livros realmente interessantes que façam alguma diferença num universo de meras árvores mortas processadas, recomendo a leitura, pelo menos, da introdução e do capítulo primeiro, sobre Jacques Lacan. Quem puder ler o livro inteiro, ótimo. Para quem não puder, essas partes já são suficientes para entender a proposta. 

Agora, o texto que tive o prazer de digitar para disponibilizar na internet: A poética da cultura, III

*

A corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzscheana com o poder é a encarnação mais recente do incurável funcionalismo da antropologia. Como seus antecedentes estrutural-funcionalistas e utilitaristas, a hegemonização é homogeneização  a dissolução de formas culturais específicas em efeitos instrumentais genéricos. Tudo o que era preciso saber sobre, digamos, as relações jocosas prescritivas  sua "raison d'être" même  era que contribuíam para a manutenção da ordem social, do mesmo modo que as cerimônias totêmicas ou a magia agrícola organizavam a produção alimentar. Agora, porém, no lugar da "solidariedade social" ou da "vantagem material", o "poder" é o buraco negro intelectual para o qual todo e qualquer conteúdo cultural acaba sendo sugado. Repetidamente fazemos essa barganha idiota com as realidades etnográficas, abrindo mão do que sabemos sobre elas a fim de compreendê-las. Como disse Sartre sobre um certo marxismo vulgar, somos impelidos a tomar o conteúdo real de um pensamento ou ato como mera aparência, e, tendo dissolvido esse particular em um universal (no caso, no interesse econômico), comprazemo-nos em acreditar que reduzimos a aparência à verdade. Max Weber, criticando certas explicações utilitaristas dos fenômenos religiosos, observou que o fato de uma instituição ser relevante para a economia não significa que ela seja economicamente determinada. Mas, se seguirmos Gramsci e Foucault, o atual neofuncionalismo do poder afigura-se ainda mais completo: como se tudo o que pudesse ser relevante para o poder fosse poder.

Assombrosa, então, vem a ser a variedade de coisas que os antropólogos podem agora explicar em termos de poder e resistência, hegemonia e contra-hegemonia. Digo "explicar" porque o argumento consiste inteiramente em categorizar a forma cultural em pauta em termos de dominação, como se isso desse conta dela. Eis aqui alguns exemplos, extraídos dos últimos anos de American Ethnologist e Cultural Anthropology:

1. Apelidos em Nápoles: "prática discursiva empregada para construir uma representação particular do mundo social, [o ato de conferir apelidos] pode tornar-se um mecanismo para reforçar a hegemonia de grupos nacionalmente dominantes sobre grupos locais que ameaçam a reprodução do poder social" [Fora!: não se sabe o que há em um nome, quanto mais em um apelido...].

2. Poesia lírica beduína: esta é contra-hegemônica [Viva!].

3. Moda feminina em La Paz: contra-hegemônica [Viva!].

4. A categorização social de escravos libertos dominicanos como "camponeses": hegemônico [Fora...].

5. O sistema andino de fiestas no período colonial: hegemônico.

6. A "espiritualidade" construída das mulheres bengalesas de classe média, tal como expressa em sua dieta e vestimenta: nacionalismo hegemônico e patriarcado.

7. Certos pronomes vietnamitas: hegemônicos.

8. Lamento funerário dos índios Warao, Venezuela: contra-hegemônico.

9. Construção de casas na base do "faça-você-mesmo" por trabalhadores brasileiros: uma prática aparentemente contra-hegemônica que introduz uma hegemonia ainda pior.

10. O humor físico e escatológico dos homens desempregados da classe trabalhadora mexicano-americana: "uma ruptura opositiva na hegemonia alienante da cultura e da sociedade dominantes".

11. Senso comum: "pensamentos e sentimentos de senso comum não necessariamente tranquilizam uma população inquieta, mas podem incitar à rebelião violenta, ainda que contida".

12. O conceito de cultura como totalidade sem falhas e o de sociedade como entidade de fronteiras bem marcadas: ideias hegemônicas que "mascararam efetivamente a miséria humana e abafaram as vozes dissidentes".

"Uma hiperinflação de significância" seria outra maneira de descrever esse novo funcionalismo que traduz o aparentemente trivial no politicamente retumbante por meio de uma retórica que, tipicamente, lança mão de um dicionário de nomes e conceitos modernosos, muitos deles franceses, uma verdadeira La Ruse* do pós-modernismo. Evidentemente o efeito final, ao invés de amplificar a significância dos apelidos napolitanos ou dos pronomes vietnamitas, trivializa termos como "dominação", "resistência", "colonização", e mesmo "violência" e "poder". Privadas de referência real-política, essas palavras tornam-se puros valores, cheios de som e fúria, que não significam nada... exceto o falante.

* Jogo de palavras entre Larousse, o dicionário, e "la ruse", "a manha" ou "a astúcia". [N. T.]

Em SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 

Há, ainda, uma resenha de Lilia Moritz Schwarcz sobre o livro: AQUI.