“Ele foi, é claro, um
homem mais conhecido por queimar livros do que por colecioná-los.
Contudo, na época de sua morte, aos 56 anos, estima-se que possuísse
cerca de 16 mil volumes. Em qualquer medida, uma coleção
impressionante: primeiras edições das obras de filósofos,
historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas”.
Este homem é Adolf
Hitler, e é assim que começa o prefácio do interessante A
biblioteca esquecida de Hitler: os livros que moldaram a vida do
Führer, do historiador Timothy W. Ryback. Comprei esse livro em
julho de 2013 (costumo anotar no livro a data de compra), mas o li
apenas agora (e pretendo começar a anotar no livro a data de leitura
embaixo da data de compra, para que no futuro eu não me perca na
minha própria história como leitora), em agosto. O título é
chamativo, e talvez alguém possa se perguntar por que não li esse
livro antes de saborear a recomendação feita pelo colunista e
cientista político português João Pereira Coutinho, na Folha,
mas eu tenho em casa tantos livros não lidos (todos aparentemente
bons; não cometo mais o erro de comprar livros ruins por puro
colecionismo) que ficava difícil uma obra sobre Hitler reaparecer na
lista de leituras próximas. Eu sabia que leria esse livro quando
voltasse a ler sobre Segunda Guerra Mundial. Na última vez em que
procurei me “especializar” nesse assunto, estava no último ano
do ensino médio e tomei emprestada uma porção de livros do tipo na
biblioteca do colégio, além de ter comprado uma ou outra coisa no
sebo. De lá para cá, li algumas coisas sobre Hitler e Segunda
Guerra, mas nada tão intensivo. O tema sempre me instigou, mas eu
tinha duas pulgas atrás de cada orelha sobre ele: primeiro, há
muita gente bronca que não estuda nada de história, mas sente
fascínio – um fascínio quase fetichista – sobre a II Guerra, e
isso me desestimulava; segundo, conheci um ou outro (por que estou
sendo aveludada?, conheci vários) patife que foi cursar História
porque “gostava da II Guerra Mundial” e pretendia, já no final
da graduação, escrever monografias sobre: e, não, não era
vinculando a participação brasileira na II Guerra – era mesmo um
pensamento calouro de quem não atenta que pesquisa acadêmica não é
trabalho escolar em que você escreve um “estudo” sobre Hitler
sem saber inglês, sem saber alemão e sem sair do conforto da sua
morada numa cidade do interior. (Também cometi esse erro primário:
cheguei à faculdade de Ciências Sociais – que não finalizei –
jurando que meu trabalho de conclusão de curso seria provando que
Deus era uma farsa. Felizmente, já nos primeiros meses alguns
professores realistas, jardineiros da selva de pedra, vieram com suas
tesouras de poda e me colocaram no lugar de raminho novo que eu era.)
Evitando um pouco a II Guerra, eu estava fugindo do tema que é o
pretinho básico da história, o tema que é escolhido como pauta de
interrogatório quando você conta a leigos que é formado em
História: ninguém quer saber por que a Princesa Isabel assinou a
Lei Áurea ou se o estudo de Peter Gay sobre Freud é respeitado
entre historiadores renomados – todos querem entender o nazismo.
Para parecer um singular historiador entre não-historiadores, basta
apostar a maioria das fichas nisso. Mussolini não exerce nem um
quinto do encanto de Hitler. Nem Stálin, outra aberração política
que mereceria o mesmo espanto.
Quando a II Guerra
chegava ao fim e Hitler se preparava para a derrota do modo mais
eficiente possível – cometendo suicídio –, milhares de livros
seus eram deixados para trás. Terrivelmente, a maioria foi queimada
ou sumiu. O trabalho de reconstituição de personalidade que
historiadores passaram a fazer baseados nas leituras do antigo Führer
apresentou inúmeras lacunas, e certamente muitos livros essenciais –
livros com “intromissões a lápis”, na ótima expressão de
Ryback – ficaram entre os sumidos. Pior: devem ter ficado entre os
queimados. Um livro sumido é recuperável, tanto é que muitos
livros de Hitler surrupiados por soldados americanos e soviéticos
foram devolvidos posteriormente para bibliotecas temáticas e
arquivos, mas um livro queimado não pode ser estudado: o fato de o
corpo do ditador ter sido queimado após o suicídio impediu que
estudiosos o dissecassem (do ponto de vista dos nazistas, foi sábio
cremá-lo antes que as forças inimigas pudessem ostentá-lo como
troféu e dispor dele como bem entendessem), assim como a ausência
desses livros queimados nos impede de entender a plenitude da
influência que Hitler, um leitor assíduo, sorveu de cabeças
alheias.
A biblioteca esquecida
de Hitler perfaz a história do Führer desde 1915, quando ele
era cabo do 16º Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro, então
com 26 anos, até sua morte, em 1945. A busca de Hitler por vingança
– não somente por causa da humilhação sofrida pela Alemanha após
a Primeira Guerra, mas também pela falida vida pessoal –, sua
importância dentro do Nacional-Socialismo que surgia, a ascensão ao
poder e as decisões militares tomadas no decorrer da Segunda Guerra
fazem sentido nessa obra quando vinculadas a leituras,
principalmente. Não é uma história genérica sobre o Nazismo, mas
uma história de como livros ajudaram a construir um dos
capítulos mais negros da história mundial. Ao escrever um capítulo
dedicado ao que seria o terceiro livro de Hitler (Mein Kampf
teve dois volumes, um sobre vida pessoal e outro sobre política,
lançados em tempos diferentes e por isso considerados como dois
títulos) – livro que ele, Hitler, ficou aliviado de não ter
publicado porque teria atrapalhado sua guinada no governo – Ryback
escreve brevemente sobre o momento da ascensão:
“Um ano após completar
o que se tornaria o Alvo nº 589, Hitler viu suas possibilidades
políticas, tão sombrias no verão de 1928, mudarem drasticamente.
Em 3 de outubro de 1929, Gustav Stresemann sofreu um violento ataque
cardíaco. Três semanas depois, a Bolsa de Nova York despencou, e
com esta a economia alemã. A popularidade de Hitler disparou. Não
mais ocioso pela marginalização política, Hitler abandonou a
carreira de escritor. Em três breves anos, se tornaria chanceler da
Alemanha”.
Esse trecho encerra um
capítulo. Quem quiser saber mais detalhes da transição de Hitler
das sombras para a cabeça do governo terá que procurar outras
bibliografias. Não é, portanto, um livro sobre a II Guerra. É um
livro sobre livros, com a II Guerra como pano de fundo da maior parte
dos capítulos.
Um autor que acompanha
todo o livro é Walter Benjamin e seu ensaio Unpacking my library:
a talk about book collecting. Pensei que não fosse encontrá-lo
em português, até porque não me lembro de ter ouvido falar de
algum texto do Benjamin sobre coleções de livros, mas existe: o
ensaio está na compilação Obras escolhidas II: rua de mão
única, lançada pela Editora Brasiliense. Já encomendei, e já
sei de quase tudo que trata, pois Ryback busca uma porção de
excertos desse texto para basear o sentido da existência de
bibliotecas particulares, a relação entre o colecionador e seus
livros e como tudo isso tem a ver com Hitler. Benjamin era um
adorador de livros. Consequentemente, um colecionador. Faz todo
sentido (e cria um notável embelezamento) que Ryback vá tomando
aquele ensaio para abrir e fechar assuntos, costurando-os:
“Walter Benjamin certa
vez disse que dá para saber muita coisa sobre um homem pelos livros
que ele mantém: seus gostos, seus interesses, seus hábitos. Os
livros que guardamos e os que descartamos, os que lemos bem como os
que decidimos não ler, dizem algo sobre quem somos. Como um judeu
alemão crítico da cultura nascido numa época em que era possível
ser 'alemão' e 'judeu', Benjamin acreditava no poder transcendente
da Kultur. Acreditava que a expressão criativa, além de
enriquecer e iluminar o mundo que habitamos, também proporciona a
argamassa cultural que liga uma geração à próxima, uma
interpretação judaico-germânica do antigo ditado ars longa,
vita brevis”.
É possível saber muito
sobre Hitler analisando a biblioteca que expandiu ao longo dos anos,
vendo os livros em que fez questão de se intrometer com seu lápis –
marcando trechos, colocando pontos de exclamação ou de interrogação
ao lado de parágrafos –, os livros que não apresentam muitas
intromissões, mas possuem sinais de manuseio, e os livros que não
leu. Os livros que não leu foram inúmeros, até porque muitos deles
só se juntaram à coleção como oferenda: além disso, havia um
filtro para esses presentes que o Führer deveria receber, e só uma
parte do que queriam dar a ele chegava, de fato, ao seu acervo (sem o
filtro de assessores, a montanha seria muito maior). Em dado momento,
Benjamin é revivido em sua análise para nos lembrar que
dificilmente os bibliófilos leem todos os livros de suas coleções
– na verdade, segundo estima Benjamin, e de acordo com “fontes
confiáveis”, esses colecionadores costumam ler apenas dez por
cento das obras que possuem. Ocorre que a análise feita em cima do
acervo de Hitler que restou deixa passar inúmeros livros que devem
ter sido queimados, mas que foram fundamentais na vida do ditador.
Hitler não leu dez por cento dos livros que pesquisadores estudam,
já que boa parte dos livros desapareceu, e sim dez por cento de uma
biblioteca que só podemos supor. Há uma avaliação de Ryback
(avaliação que João Pereira Coutinho faz questão de frisar em sua
coluna para mostrar que Hitler, apesar de ávido leitor, lia muitas
coisas medíocres e não se aprofundava em filosofia, por exemplo)
que considero um pouco receosa: a de que Hitler só usou nomes como
Nietzsche e Schopenhauer de forma superficial em seus discursos e
elogios, e que associá-lo com eles é um tanto suspeito.
“Embora não haja razão
para duvidar que possuía exemplares das obras de Schopenhauer,
encontrei um só volume desse filósofo entre os livros remanescentes
de Hitler, uma reedição de 1931 de uma tradução feita por ele de
A arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, do jesuíta
do século XVII Baltasar Gracían. Essa edição em encadernação
barata, de 92 páginas, é tão modesta no tamanho que o ex-libris de
Hitler preenche toda a contracapa. O indício mais sólido da
centralidade de Schopenhauer na vida de Hitler é o busto do filósofo
descabelado que Hitler exibia em uma mesa no seu escritório em
Berghof”.
O que eu me pergunto é:
seria Hitler tão pedante a ponto de colocar, em seu escritório, o
busto de um filósofo que ele mal leu? O fato de Hitler ser odioso
moralmente não faz com que ele seja automaticamente absurdo em
outras searas. Tratando-se de um leitor crônico, também fica
difícil suspeitar que ele, como tantos, se aproveitou de uma figura
e louvou essa figura até em pequena estátua por pura vaidade
fraudulenta. Sendo ele uma pessoa que não lê, eu não duvidaria da
empáfia desse oportunismo intelectual. Como era um leitor contumaz,
apenas acho que se poucas obras de autores que ele tanto citava, como
Schopenhauer e Nietzsche, foram encontradas, pode ser porque elas
estavam entre os livros perdidos.
Leni Riefenstahl, atriz e
cineasta que dirigiu, em 1934, o tributo ao Partido Nazista Triunfo
da vontade, e, pouco
depois, Olympia, o documentário em duas partes sobre os Jogos
Olímpicos de Berlim de 1936, foi, por muitos anos, estimada por
Hitler. Segundo conta, teve uma desavença com ele ao comentar sobre
alguns amigos judeus que estavam tendo problemas com o governo, mas
desculpou-se por sua intromissão em assuntos políticos
presenteando-o com a primeira edição das obras completas de Fichte,
encadernadas em couro branco. Foi ela uma das fontes que assegurou o
gosto de Hitler por Schopenhauer:
“Riefenstahl
proporciona um relato igualmente eloquente, mas contraditório.
'Tenho muita coisa a pôr em dia', Riefenstahl lembra que Hitler
contou no conforto guarnecido de livros de seu apartamento na praça
Príncipe Regente. 'Na minha juventude, não tive os meios ou a
possibilidade de obter uma educação adequada. Toda noite leio um ou
dois livros, mesmo quando vou para a cama tarde'. Ele disse que
aquelas leituras constituíam sua fonte básica de conhecimentos, a
essência de que derivava seus discursos públicos. 'Quando se dá
também se precisa tirar, e eu tiro o que preciso dos livros', ele
disse. Quando Riefenstahl perguntou a Hitler o que gostava de ler,
ele teria respondido: 'Schopenhauer'.
'Nietzsche não?',
Riefenstahl perguntou.
'Não, não consigo
aproveitar muito Nietzsche', Riefenstahl lembra que Hitler respondeu.
'Ele é mais artista do que filósofo; falta-lhe a compreensão
cristalina de Schopenhauer. Claro que valorizo Nietzsche como um
gênio. Ele escreve talvez a linguagem mais bonita que a literatura
alemã pode oferecer atualmente, mas não é o meu guia'”.
Páginas antes, Ryback
coloca uma nota de rodapé comentando que Steven Bach, autor de uma
recente biografia de Leni Riefenstahl, sugere a necessidade de
cautela com os relatos dela, já que era “uma narradora nada
confiável”. Eu inquiro: mas o que ela teria a ganhar mentindo
sobre isso? Pessoas mentirosas, desde que não sejam mitômanas,
costumam mentir para se livrar de um problema, para criar problemas
para outros ou para conseguir alguma coisa. Se fosse para
Riefenstahl, narcisista, mentir sobre algo, talvez preferisse mentir
sobre seus feitos ou dizendo que chegara a se preocupar com a
situação dos judeus na época do nazismo. Mas de que problema ela
estaria se livrando ou que coisa ela conseguiria inventando o diálogo
que teve com Hitler sobre Nietzsche e Schopenhauer?
Outra razão para Ryback
considerar que Hitler não fora um grande leitor de Schopenhauer foi
o fato de ter encontrado o nome do filósofo grafado de forma errada
em “anotações sobreviventes de discursos manuscritos”, com dois
“p”: “Schoppenhauer”. Como é que alguém que admira tanto um
teórico não sabe escrever o nome dele? Mas parece que não era
privilégio de sobrenomes germânicos complicados receberem má
escrita de Hitler, pois mesmo palavras simples eram grafadas de
maneira incorreta. O Führer chegou a escrever erros que seriam
equivalentes ao nosso “prizão” e “presado”, palavras que
eram corriqueiras nos livros que lia. Nem sempre quem lê vorazmente
presta atenção no que lê, na formação das palavras e na
composição das sentenças. Hitler, leitor, tinha problemas com a
ortografia de seu idioma e não dera muito certo como escritor: Mein
Kampf teve que passar por severa revisão antes de ser publicado.
Por isso, humildemente, não considero que grafar erradamente o nome
de Schopenhauer seja forte indício da falta de leitura e que a
apropriação de saber foi rasa.
Há, claro, algumas
situações estranhas, mas são estranhas como a humanidade. Por
exemplo, o fato de Hitler admirar tanto Fichte. Como Hitler poderia
admirar Fichte e Schopenhauer se Schopenhauer possui bons e
claros textos desprezando completamente a contribuição de Fichte
para a filosofia? Seu ódio por Fichte talvez só fosse menor que seu
ódio por Hegel, então será que isso não seria um indício de que
Hitler não leu Schopenhauer de verdade? Essa questão é minha, não
está no livro. Mas Ryback apresenta outra coisa que pode depor
contra o Hitler schopenhaueriano: diz-se que ele levara O mundo
como vontade e representação para ler no front enquanto
era estafeta. Ryback duvida que ele tenha perambulado em meio à
guerra com um calhamaço daqueles. Mas eu volto a perguntar: e por
que isso desabonaria o possível gosto de Hitler por Schopenhauer? Eu
mesma não li essa obra (tenho-a há anos, mas permanece na estante
como um livro inescrutável para o qual ainda não me sinto
preparada) e me considero no direito de me declarar uma amante de
Schopenhauer “somente” porque li e reli todas as belas
compilações que a Martins Fontes publicou das ideias dele. Não é
preciso ler toda a obra de alguém para se poder declarar, com
justiça, admirador desse alguém. Talvez Hitler não gostasse de
colóquios muito metafísicos e preferisse o Schopenhauer que fala
sobre matérias de ordem prática. Logo, não vejo como mesmo essas
situações pontuadas por Ryback podem quase provar que Hitler
era uma fraude em suas menções ao filósofo como um de seus
mentores intelectuais.
Como apreciadora de
Schopenhauer, é claro que eu não acho agradável que eu mesma
esteja forçando as pessoas a acreditar que Hitler, um ditador
megalomaníaco que estava disposto a matar milhões de pessoas para
alcançar seu ideal de povo superior, também apreciava Schopenhauer.
Mas história é isso: ela é o que é, e não o que queremos, com
nosso moralismo e nossas desculpas, que ela seja. Já reparei em
alguns bons livros de escritores mais antigos que costuma haver uma
vontade do editor e do tradutor para fazer com que nós, leitores,
perdoemos autores que tinham pensamentos antiéticos no passado.
Explico: peguemos, por exemplo, um livro de Nietzsche, uma passagem
em que ele deixa bem claro, talvez, que considera as mulheres
inferiores. Não tardaremos encontrar comentaristas e estudiosos
revolvendo outros fatos da vida dele que mascarem essa discriminação.
Você lerá ou ouvirá desses aduladores: “apesar desta passagem
parecer preconceituosa, na verdade Nietzsche não pode ser chamado de
machista, pois em outro momento, ao encontrar uma mulher inteligente,
ele disse que mulheres podem ser etc.” Isso é só um exemplo. Meu
ponto aqui é mostrar que amamos tanto certos teóricos que queremos
sacralizá-los. “Nesta passagem, Schopenhauer parece mostrar asco
por índios, chamando-os de primitivos, mas há um outro momento em
que ele elogia comunidades indígenas etc”. Tenta-se poupar
Schopenhauer de qualquer fiapo que ligue um filósofo que respeitamos
a um juízo antiquado que depreciamos. Tenta-se poupar qualquer
sujeito canonizado de qualquer maculação muito severa, sendo
“desculposo” em nome de um autor antigo que vivia em outra
sociedade, numa outra época, com outro espírito social. Como mulher
que lê Nietzsche no século XXI, sinto-me mal ao ler as más
referências que ele faz ao meu sexo? Concordar, não concordo, mas
não passo mal, nem de longe. Eu entendo que ele vivia em outro
universo e não tinha obrigação de ser pioneiro em tudo, não era
todo o assunto que ele abordava que precisava se transformar em ouro.
Passar mal eu passaria se alguém que vive na mesma sociedade que eu
levantasse aquelas ideias como se fossem teses perfeitamente
aplicáveis a este tempo. Ao tentar, com insistência, poupar
Nietzsche e Schopenhauer de terem sido lidos por Hitler, acho (apenas
acho) que Ryback está fazendo como tantos estudiosos que
temem macular nomes sagrados ligando-os a discípulos pérfidos. Esse
mau julgamento social por causa da vinculação entre um e outro não
deveria querer dizer nada, pois Schopenhauer não tem culpa daqueles
que o leram, e se o leram errado. Ryback mesmo aponta em alguns
episódios que Hitler era um leitor estúpido porque procurava nos
livros meras ratificações melhor teorizadas para aquilo que ele já
pensava. Não era um leitor de mente aberta disposto a mudar suas
opiniões caso argumentos fundamentados provassem que ele estava
equivocado. Na idade adulta, colhia o que já estava disposto a
colher, não demonstrava alterar radicalmente o que reputava: já
tinha uma ideia troncal e os livros só permitiram que a partir disso
ele desenvolvesse galhos. Assim, se leu Schopenhauer, deve ter
passado por diversos pareceres que execrou. Roubou o que queria e
moldou sua oratória com isso. Não cabe a ninguém querer sofrer com
essa ligação tortuosa, posto que em nenhum lugar de sua obra
Schopenhauer, por mais misantropo que fosse, defendeu genocídio
(pelo menos até onde li). Se fosse o caso, talvez pudéssemos nos
alarmar. Mas se fosse mesmo o caso, provavelmente Schopenhauer
nem teria adquirido a grandeza que adquiriu.
***
Max Osborn era um crítico
de arte alemão aclamado no começo do século XX. Em 1915, ocioso em
sua posição de soldado-mensageiro por causa de forte chuva, Hitler
adquiriu o livro Berlim, de Osborn, que tratava da história
arquitetônica da cidade. Em vez de comprar cigarros, aguardente ou
gastar com mulheres, preferiu usar quatro marcos para comprar um
livro, escolha de lazer atípica para um cabo da linha de frente.
Efetuada a compra, marcou timidamente seu nome, local e data no canto
superior direito da contracapa: “A. Hitler, Fournes 22/novembro,
1915”. A personalidade de Osborn é pitoresca, logo, instigante.
Irreverente, escreveu uma história cultural de Satã, em que chamava
os anjos de “as mais enfadonhas das criaturas de Deus”. Em sua
época, já criticava certa frivolidade dos populares:
“Em 1908, quando a
editora Seeman Verlag solicitou a Osborn que escrevesse um guia de
Berlim, ele concordou mas sob o pressuposto de que era um crítico de
arte, não um guia turístico. Desse modo, recebeu o leitor em seu
Berlim com a advertência maldosa: por que seu editor
incluiria essa cidade entre as 'capitais culturais' da Europa quando
'o que o mundo do século XX acha mais fascinante na capital do Reich
alemão não é exatamente a beleza de seus monumentos históricos ou
de sua rica herança cultural'?”
Crítico de arte, passou
a temporariamente ser crítico de guerra. Ao ver um mensageiro
galopando num cavalo pelo campo aberto, comparou a cena em que homem
e animal usavam máscaras contra gás a uma tela de Hieronymus Bosch.
Ficou horrorizado ao ver tantos corpos humanos em decomposição, com
ratazanas se alimentando deles. Lugares antes encantadores tinham se
transformado em imagens de horror: “simplesmente incompreensível”,
escrevera.
O exemplar de Hitler de
Berlim está completamente desgastado, sinal de que foi lido
com entusiasmo por aquele soldado que tinha tantas ambições
artísticas. Muito do ideal estético nazista faz menções indiretas
aos gostos de Osborn: se Hitler realmente começou a pensar que a
Alemanha deveria ser “depurada” de “elementos estrangeiros”
nas artes a partir da leitura do crítico – também adepto de
expressões mordazes para se referir a essas contaminações, como
“selvageria do gosto” ou “profusão de pragas artísticas” –,
não está claro no livro de Ryback, mas a ideia de ambos nesse
âmbito parece casada, já que Osborn também louvava a Grécia
revivida em território prussiano, como ele considerava o caso do
Portão de Brandemburgo. (Para entender rapidamente o apreço
estético consagrado na ditadura nazista, recomendo o conhecido
documentário Arquitetura da destruição.)
No mesmo livro, Osborn
utiliza um capítulo de trinta páginas “sobre Frederico, o Grande,
o lendário rei-guerreiro do século XVIII que consolidou a primazia
da Prússia como potência militar” (palavras de Ryback). Frederico
se tornaria o futuro ídolo de Hitler, mas Osborn se põe a
criticá-lo: chama o monarca de intrometido, avarento, “filho total
da mediocridade artística de sua época”, mais preocupado com a
beleza das próprias perucas que com as construções públicas. O
desmoronamento da igreja do Gendarmenmarkt é narrado com prazer
especial: o rei obrigou os construtores a encerrarem a obra em metade
do tempo previsto e com orçamento reduzido; quando os operários
estavam terminando o telhado, as paredes da igreja desabaram, matando
quarenta deles. Osborn comenta sobre o jocoso livreto Sinto muito
escrito pelos cidadãos berlinenses, defendendo a irônica teoria de
que as paredes haviam sido construídas com pão de mel em vez de
pedras. Esse capítulo tem claros sinais de manuseio e exame
cuidadoso da parte de Hitler. Nem por isso o futuro ditador alemão
deixou de louvar e tomar Frederico como referência de liderança.
Assim, esse caso ajuda a responder a pergunta que fiz lá em cima
sobre se o fato de Hitler adorar Fichte e Schopenhauer – sendo que
Schopenhauer desprezava Fichte com convicção – poderia ser um
sinal de que alguém não foi realmente lido desses dois. Hitler
parece ter adotado diversas ideias de Osborn, mas não a desse
capítulo em particular que pretendia inspirar menosprezo por
Frederico. Com certeza admirou muitos homens responsáveis pelos
livros que lia, mas de maneira seletiva.
O capítulo sobre Osborn
(capítulo chamado de Livro 1: Leituras da linha de frente,
1915), encerra com alguns parágrafos interessantes, deixados
providencialmente para o final. Ryback frisa que o exemplar de Berlim
pertencente a Hitler seria guardado com ele para o resto da vida e:
“Na segurança
protetora da coleção de Hitler, esse volume sobreviveu à queima de
livros de maio de 1933 – como judeu, Osborn constava da lista dos
autores proibidos e acabou emigrando para os Estados Unidos – e aos
bombardeios subsequentes dos Aliados na década de 1940”.
Esse é aquele momento da
leitura em que você para, pousa o livro no colo e digere tudo que
veio antes de forma diferente por causa da inserção de uma
informação essencial que dá um novo tom ao capítulo a ser
findado. É aquele momento em que você tem vontade de largar o livro
para dar um passeio reflexivo. Ryback poderia nos ter dito que Osborn
era judeu lá nos primeiros parágrafos. Ciente de como mostrar ao
leitor o que ele deve sentir e em qual instante da leitura é preciso
demonstrar esse sentimento, deixou o impacto para o final. Não vale
somente para a literatura: um livro é valioso não somente pelo que
informa, mas como informa.
***
A biblioteca esquecida
de Hitler certamente abriga inúmeras histórias valiosas sobre
os autores que Hitler leu, as pessoas com quem fez amizade – e que
acabaram influenciando suas leituras com recomendações –, sua
atitude diante do desenrolar da guerra. Não me cabe aqui resumir
todos esses causos, até porque não quero que ninguém perca a
vontade de ler o livro por ele já estar todo revelado em estrutura
nesta postagem, então vou me ater a apenas mais um capítulo
escolhido ao acaso (já que todos me interessaram muito – exceto
aquele sobre misticismo, e percebi que não me interessara por ele
porque páginas e páginas se passaram e não senti vontade de
acentuar nada com minha lapiseira). É o capítulo 3º, A trilogia
de Hitler, sobre a escritura do Mein Kampf.
Na noite de 8 de novembro
de 1923, Hitler surgiu numa cervejaria de Munique dando um tiro de
pistola no teto, anunciou uma revolução nacional e sob a mira de
armas obrigou a liderança política da cidade ali reunida a jurar
fidelidade. Na manhã seguinte, marchou com 2 mil radicais de direita
para o centro de Munique, pretendendo reproduzir a marcha de
Mussolini sobre Roma que possibilitou a ascensão do governo
fascista. Na praça Odeon, foram recebidos a tiros por um cordão
militar. Dezesseis morreram. Hitler foi preso três dias depois.
“Quase imediatamente,
Kahr, Seisser e Lussow [os membros da liderança política local]
se afastaram do empreendimento fracassado. Alegaram ter tentado
dissuadir Hitler de realizar o golpe, o que era verdade, e que ele os
coagira a cooperar sob a mira de armas, o que também era. Hitler
alternou-se entre a perplexidade e a raiva pela 'traição' deles.
Primeiro cogitou suicidar-se, depois realizou uma breve greve de
fome, e enfim decidiu 'ajustar contas'”.
O ajuste de contas
começou com um texto de sessenta páginas que serviu para sua defesa
perante o tribunal. Encerrou dizendo que seria absolvido pela
história (pelo visto, uma expressão recorrente entre ditadores que
esperam justificar atrocidades). Depois, recebendo a regalia de ter
luz acesa durante a noite na prisão, começou a fazer leituras que
embasariam a obra pela qual é conhecido, obra que inicialmente se
chamaria Uma batalha de quatro anos e meio contra mentiras,
estupidez e covardia, mas que mudara de nome graças à sugestão
de Max Amann, empregado na editora do Partido Nazista. Essas leituras
seriam chamadas por ele de “formação superior às custas do
Estado”, já que, de certo modo, parecia nutrir ressentimento por
não ter podido prosseguir seus estudos formais. Além de escrever o
livro por motivação vingativa, Hitler também o fez para se livrar
de dívidas financeiras, principalmente aquelas que contraíra com o
assessor jurídico que o ajudara a preparar a defesa em seu
julgamento. Assim, contava com um alto número de vendas quando seu
trabalho fosse publicado.
Henry Ford foi uma das
maiores inspirações de Hitler no combate aos judeus:
“Além do perfil racial
do povo alemão, de Günther, outra influência importante sobre o
conteúdo intelectual de Mein Kampf foi uma tradução alemã
de O judeu internacional, de Henry Ford. Embora não
disponhamos mais do exemplar pessoal de Hitler da tradução em dois
volumes do execrável tratado racista, sabemos que Hitler possuía
uma, assim como um retrato do autor, ao menos um ano antes de começar
a redigir Mein Kampf. 'A parede junto à escrivaninha no
escritório particular de Hitler está decorada com um retrato grande
de Henry Ford', informou o New York Times em dezembro de 1922. 'Na
antecâmara, uma mesa grande está coberta de livros, quase todos
sendo uma tradução de um livro escrito e publicado por Henry Ford'.
O livro de Ford havia
sido publicado naquele ano em alemão sob o título Der
internationale Jude: Ein Weltproblem, e foi uma sensação
imediata. 'Li-o e me tornei antissemita', recordou Baldur von
Schirach, o futuro líder da Juventude Nazista, que era adolescente
quando surgiu o livro de Ford. 'Naquela época aquele livro causou
uma impressão tão profunda nos meus amigos e em mim porque víamos
em Henry Ford a imagem do sucesso, bem como o expoente de uma
política social progressista'”.
A adoração a Ford
também se mostraria na frequente menção a ele nos discursos de
Hitler e sua declaração a um repórter: “considero Ford minha
inspiração”. Eu, que já abomino Ford desde minhas leituras sobre
o nazismo na adolescência, questiono: Hitler teria sido menos
nefasto caso o empresário de carros não tivesse existido? É claro
que naquele tempo havia muito material anunciando, às escâncaras, o
ódio pelos judeus e a superioridade racial de alguns povos, mas Ford
pareceu muito “didático” e prático em seu livro. Além disso,
muitas pessoas o tiveram em grande crédito e por meio dele passaram
a externar com orgulho um antissemitismo antes retraído. Não duvido
que um sujeito perverso e megalomaníaco como Hitler pudesse se
tornar ainda pior por causa das leituras que levava em consideração
e das quais tirava aprimoramentos de suas ideias. Nada estava tão ruim
que não pudesse piorar no turbulento começo do século XX.
Houve uma série de
adiamentos até que o trabalho de Hitler pudesse ser publicado. Uma
das preocupações de Max Amann era com o fraco mercado de livros da
época: com Hitler ainda proibido de falar em público por causa de
sua condenação, não seria possível fazer comício nas
cervejarias, e com isso se perdia uma grande fonte de venda de
livros. Mas o principal motivo para o adiamento foi o processo de
edição da obra: até sete companheiros de Hitler afirmaram ter
trabalhado no texto antes de seu lançamento. A “formação
superior às custas do Estado” da qual Hitler se vangloriara,
pensando-se um exemplar autodidata, parece não ter surtido efeito na
erradicação de seus constantes erros gramaticais e fragmentos
intelectualmente vazios, cheios de vícios que podiam passar
despercebidos na fala, mas que num livro ficavam gritantes.
“Hanfstaengl recorda
que batalhou com Hitler em torno das setenta primeiras páginas dos
originais, afirmando ter eliminado os 'piores adjetivos' e seu
'emprego excessivo de superlativos', discordando sobre várias
nuances. Quando Hitler escreveu sobre seu 'talento' como pintor,
Hanfstaengl teria censurado: 'Você não pode dizer isso. Outros
podem dizer, mas você mesmo não pode'. Hanfstaengl também observou
'pequenas desonestidades', como o fato de Hitler usar o termo
'funcionário público graduado' para seu pai. Hanfstaengl também
reclamou da natureza provinciana do intelecto de Hitler, que o fez
aplicar um termo como história do mundo – Weltgeschichte – a
'conflitos europeus pouco importantes'. Após essa sessão de revisão
inicial, Hanfstaengl afirma, Hitler nunca mais lhe mostrou nenhuma
parte do manuscrito”.
Rudolf Hess e Ilse, sua
esposa, também recordaram a “batalha” que viveram com Hitler e
seu original por meses. Só aos poucos Hitler dera razão às
modificações que se mostravam necessárias em seu manuscrito.
Se Hitler esperava
aclamação pública quando do lançamento do livro, deve ter ficado
decepcionado com o que recebeu. Jornais descreveram sua obra como ato
de suicídio político num artigo intitulado “O fim de Hitler”,
duvidaram da “estabilidade mental do autor” e um crítico
observou que faltou ao recente escritor ajustar contas consigo
próprio. Mesmo pessoas de extrema direita teceram comentários
negativos sobre a obra, ofendendo-se com o antissemitismo exacerbado
que advogava. Um jornal brincou com seu nome e disse que deveria se
chamar “Sein Krampf” (Sua cãibra). O livro, ilegível (no
sentido de que não valia a pena ser lido) para muitos, se tornou
motivo de piada em certos círculos. Mesmo assim, Hitler não se
deixou capitular: presenteou muitas pessoas com sua obra e passou a
trabalhar no segundo volume dela. Em pouco tempo terminara a
proposta.
“(...) enquanto o
volume I foi recebido com sarcasmo e desprezo pelos resenhistas, o
volume 2 foi simplesmente ignorado – não apenas pelos críticos,
mas pelos leitores também. Vendeu menos de setecentos exemplares
após um ano no mercado”.
Pouco tempo depois, já
estava escrevendo seu terceiro livro, que nunca seria publicado: um
livro sobre suas memórias de guerra, inspirado nos relatos de Ernst
Jünger (um dos livros dele sobre o tema, Tempestade de aço,
foi publicado pela Cosac). O livro era mais comedido e analítico que
os anteriormente escritos, tentando ser filosófico de maneira
eclética. As ideias são apresentadas sem referências às fontes,
mas é possível perceber uma colcha de pensamentos de um leitor que
lia tudo. Ryback aposta em dois motivos para o livro não ter sido
finalizado: primeiro, porque Hitler voltou à atividade política
intensa – e seus momentos de escrita só apareciam quando ele
estava em situação de privação, como quando estava preso ou sem
forças políticas –, segundo, porque o mercado de livros estava
fraco e as publicações anteriores do futuro ditador já tinham sido
um fracasso no mercado.
“O próprio Hitler pode
também ter reconhecido as falhas intrínsecas na estrutura eclética
e irregular do livro ou possivelmente suas limitações como
escritor. 'Que belo italiano Mussolini fala a escreve', Hitler
comentou com seu advogado pessoal e futuro Gauleiter, Hans Frank.
'Não sou capaz de fazer isso em alemão. Simplesmente não consigo
organizar meus pensamentos quando estou escrevendo'. Em comparação
com a obra de Mussolini, Hitler observou, Mein Kampf parecia
um exercício de fantasia 'atrás das grades', pouco mais que uma
'série de artigos para o Völkischer Beobachter'. 'Ich bin
kein Schriftsteller', Hitler disse para Frank. 'Não sou um
escritor'”.
Com o chamado das
obrigações políticas que o levaram a governar a Alemanha, Hitler
nunca mais teve tempo e viço para escrever. Continuou, todavia,
lendo livros até o dia de sua morte.
***
Foi muito proveitoso
voltar a ler sobre a II Guerra com A biblioteca esquecida de
Hitler. O livro é sério e bem escrito (há livros sérios,
fidedignos, mas escritos de maneira plástica; ou, pior e
surrealisticamente, há livros cujo estilo nos remete à palavra
“alumínio”, se entendem o que digo), passa por uma fatia de
assunto meio marginal a respeito do nazismo. Não é o único a
escrever sobre os livros de Hitler – Ryback menciona autores de
estudos com o mesmo objetivo –, mas é o que temos à mão
facilmente aqui no Brasil, na bela publicação da Companhia das
Letras. A partir dele, algumas breves e esparsas ponderações:
Há uma foto de Hitler no
Arquivo de Nietzsche, em Weimar. Muitos tentam ligar Nietzsche ao
antissemitismo, quando, como bem assinala Ryback, antissemita
declarada era a irmã de Nietzsche, cuidadora daqueles arquivos. É
claro que o filósofo alemão inspira algo de sensacional – Hitler
apropriou-se de alguns de seus termos fortes como “vontade de
poder” –, mas não deve ser responsabilizado pelo Nazismo. Sua
irmã, sim, era visivelmente desequilibrada em plena sanidade.
Nietzsche, que não era antissemita mas que defendia uma filosofia
que podia ser usada para fins perversos, ainda possui a desculpa de
sua doença para justificar ideias extravagantes.
(Já visitei esse arquivo
em Weimar. É estranhamente inóspito a visitantes. Há duas salas.
Na primeira, objetos de Nietzsche, inúmeros recortes de jornais em
vidros e nas paredes – inclusive da época do Nazismo, ligando o
filósofo ao Führer –, mas tudo em alemão. Pensei em fotografar
para que depois, no dia em que aprendesse alemão, pudesse traduzir,
mas no primeiro click a recepcionista, ranzinza não sei se
por si ou se por obrigação da função, veio informar que eu não
podia tirar fotos e que deveria apagar a que tirara. Na segunda sala,
estátuas de Nietzsche, alguns livros e uma cadeira numa janela,
cadeira onde ele passou muitos de seus dias mórbidos, quando mental
e fisicamente incapaz. Nessa sala, a recepcionista não apareceu para
nos sondar. Então tomamos a libertinagem de tirar algumas fotos. Na
saída ela perguntou de onde éramos – só conseguimos nos
comunicar com ela por intermédio de um casal de amigos que moram na
Alemanha, já que ela não falava inglês – e disse que na semana
anterior um brasileiro estivera lá fazendo pesquisas. Quem me dera
saber alemão e poder ir lá fazer pesquisas!)
Muito se comenta sobre o vegetarianismo de Hitler. As falácias argumentativas dos carniceiros crescem como o pé-de-feijão do João e saem pela cidade espalhando jatos de fogo e cólera. Não me lembro de em nenhum momento ter cogitado que “comer carne é algo maligno porque, veja, não há histórico de psicopata que tenha sido vegetariano e a grande maioria dos ditadores comia carne”, porque posso falhar nas minhas análises, mas acho que não falho de forma tão absurdamente ignorante e débil. Mas já ouvi e li muitos doutores de fórum virtual essa fusão entre Hitler e vegetarianismo como prova de que... Pois é, prova de quê? Acho que carniceiros se sentem imorais comendo carne e querem tentar provar que imorais são os vegetarianos, pois Hitler era vegetariano. Mas em que biografia, documento, discurso, relato médico está escrito que Hitler era vegetariano por compaixão aos animais? Li certa vez que era mesmo vegetariano, mas que às vezes burlava a dieta (não lembro onde li, então não sei se é uma informação honesta). O filósofo Michel Onfray, em O ventre dos filósofos: crítica da razão dietética, encerra um capítulo com a informação solta sobre o vegetarianismo de Hitler, de certo modo insinuando que um ditador notoriamente cruel era vegetariano. Não sei qual é a necessidade dessa vinculação (e Onfray parece muito tomado de ódio para ser levado tão a sério, vide suas críticas de lamaçal a Freud) e, mesmo que seu vegetarianismo fosse por amor aos animais, não entendo o que pretende provar. Mas temos certeza que não era por amor, pois Ryback bem cita as palavras de Hitler: “As vacas foram criadas para dar leite; os bois, para conduzir cargas”. Quem nesse mundo que se preocupe com os animais pensará que eles têm a função de nos prover com leite e labor? Hitler, ególatra pensando que o planeta deveria se render a ele e a seu ideal de raça perfeita, só era vegetariano pelo bem de si mesmo e de sua saúde debilitada. Não deveria jamais ser citado em discussões sobre veganismo.
Por último, nosso
conhecimento de Hitler como leitor só nos faz refletir o quanto era
miserável. Interessante – se não fosse interessante, eu não me
preocuparia em ler livros sobre ele –, mas miserável. Lia livros
todas as noites, lia quase tudo que lhe caía nas mãos, desde
tratados militares e catálogos sobre armas até estudos astrológicos
e autoajuda popularesca. Schopenhauer o teria desprezado nessas
leituras em série, diria que não era capaz de lidar com a própria
solidão e de ter pensamentos próprios. Demonstra não ter lido ou
não ter prestado atenção a esses textos que o fariam tão bem para
crescer como indivíduo. Optou por adotar apenas a antissociabilidade
de Schopenhauer e deixou que o monstro que havia dentro de si se
estendesse para o mundo. Quis ser lembrado de maneira poderosa, mas a
posteridade o vê como alguém que alcançou poder absoluto de
maneira muito difícil de entender (a pergunta é: “como é que a sociedade
pôde conceber alguém como Hitler?” – não me lembro onde li
isso, acho que foi no Conversas com Albert Speer, do Joachim
Fest, que estou terminando) e depois fracassou. Merece, enfim, ser
lembrado como um mau leitor. Fico feliz, ao encerrar A biblioteca
esquecida de Hitler, em saber que um dos piores ditadores da
história era, no fim das contas, um leitor muito fraco que não
sabia escolher tão bem o que lia e confundia quantidade com
qualidade. Se fosse um bom leitor, eu ficaria tentada a admirá-lo um
bocado, pelo menos nesse aspecto dos livros. Não aconteceu. Prossigo
nas leituras sobre ele porque realmente é de se questionar como no
século XX uma pessoa com tamanha degeneração moral pôde adquirir
poder. Como leitor, é possível entender Hitler, mas jamais
louvá-lo. Acho que sei separar as coisas e mesmo reconhecer as
possíveis qualidades de alguém que socialmente recebe puro
menosprezo. Com pontuais exceções, não precisei separar Hitler de seus livros: sua
biblioteca o define.