terça-feira, setembro 16, 2014

Editoras


Sou maníaca por editoras. Tenho as minhas preferidas. Às vezes elas me decepcionam. Por exemplo, fico chateada (de verdade) quando uma editora realmente excelente publica o livro de um autor péssimo ou "das massas". Como trabalho em uma biblioteca pública e entendo de livros de algumas áreas (para outras sou uma anulação: até hoje não me familiarizei com os livros do setor 658, que é o da Administração, e sempre me pergunto como é que essa área pode ter tantos livros se tudo parece tão igual... e entediante), participo dos pedidos de livros. Pesquiso os dados do livro em sites de livrarias virtuais - geralmente na Saraiva, que é uma das mais completas no Brasil - e coloco na planilha de compras. Também peço livros que não me agradam em nada, mas são populares. Foi assim, pesquisando alguns livros que estavam na caixa de sugestões da biblioteca (porque também temos que atender aos pedidos dos alunos), que encontrei uma "obra" desse manipulador barato chamado João Verde publicada pela Martins Fontes. Martins Fontes publicando João Verde. Foi revoltante. Eu achei que a Editora Intrínseca é que tinha detido todo o poder sobre as páginas desse cabeça-de-vento. 

A Martins Fontes é uma dessas editoras que me agradam. O material é bom, as traduções costumam ser feitas por gente competente e costumam ser elogiadas por quem entende de traduções (não eu, infelizmente, que fico apenas bebendo do conhecimento alheio). No meu site (blog) favoritado "Não gosto de plágio", da Denise Bottmann, não há menções negativas sobre a Martins Fontes quanto a cópias ou erros de tradução. Muitos dos livros sérios que eu compro são da Martins Fontes e não me lembro de ter visto qualquer erro gramatical neles. Prezo muito esse compromisso com a norma culta. Mas é um pouco desanimador saber que mesmo uma editora tão singular tenha que se prostituir para conseguir se manter no mercado. É claro: se publicar os livros do João Verde fizer com que a Martins fique segura enquanto empresa e fizer com que consiga manter a sua coleção de livros bons, não me oporei tanto a isso. Só que não consigo ficar menos chateada. Talvez ela já tinha essa linha anteriormente e eu não sabia. Nem quero pesquisar muito sobre isso agora. 

Coleção de textos de Schopenhauer
lançada pela Martins Fontes

Quando alguém me diz que comprou um livro (muito raro; todo mundo acha que livros são caros), logo pergunto qual é a editora. É um filtro de extrema importância. Você consegue respeitar alguém que é adulto e compra livros da Martin Claret? Estamos falando de alguém que está atrasado quanto a informações essenciais sobre editoras; ou de alguém que não presta atenção no que lê (num livreto da Claret é possível achar dezenas de erros de ortografia - quem é que continua lendo um livro com erros ortográficos?); ou de um muquirana. Não entendo como um indivíduo que se considera inteligente pode querer encher suas prateleiras com material de quinta categoria que manda a gramática às favas e traduz textos alemães da versão espanhola da versão inglesa. Deve ser o mesmo indivíduo que só sai para comprar livros quando o cofrinho se encheu de moedas. Isso, claro, porque nem cheguei na questão do plágio. Não é só a Denise Bottmann que faz inúmeras postagens sobre a falta de vergonha da Claret em copiar traduções alheias. Esse é um assunto fácil em corredores de universidades. Se essa editora publica algum livro "bem traduzido", tenha certeza: é plágio. Mais algum defeito? Claro. Sou uma amante da estética dos livros. Livro bom é livro com conteúdo responsável. Livro ótimo é livro com conteúdo responsável e uma adequação estética bem pensada. A fonte em que a Claret edita é horrível, o papel que ela usa nas páginas nem fanzines anarcopunks usam, as capas são antiquadas (as imagens sempre me remetem a romance espírita, astrologia, feng shui ou lendas de cavaleiros). Será possível elencar mais defeitos para influenciar as pessoas a pararem de dar dinheiro para essa porcaria? Deve ser, mas não quero pensar sobre isso agora. 

Há as editoras que já foram boas e se perderam um pouco, como a Rocco e a Círculo do Livro. Os livros da boa fase delas podem ser encontrados em sebos; um ou outro de qualidade da Rocco é que foram publicados há poucos anos. (Na verdade, a Círculo nem existe mais.) Não são editoras perfeitas, é preciso dizer. Até hoje sinto muito desgosto ao ter que recomendar para colegas um livro excelente com uma capa desabonadora. É o caso de Memórias de uma menina católica, da Mary McCarthy pela Círculo do Livro. A introdução é um sonho de qualidade, a narrativa faz você parecer o anjo invisível da autora (o livro é uma autobiografia com doses de ficção): você está ali sentado no sofá vendo a Mary criança ser maltratada pelo padrasto que era o mestre das torturas psicológicas, você está ali no carro quando a Mary adolescente tem sua primeira relação sexual, você se emociona com o amor que ela tinha por escritores antigos no tempo do colégio. E então a capa do livro mostra três daminhas de honra, sendo que a do meio faz uma cara "sapeca". Se eu não conhecesse a autora de antemão, acharia que aquele livro era sobre as travessuras de uma garotinha no colégio interno. Eu jamais compraria esse livro se antes não tivesse lido O grupo. Tenho que adivinhar que há gente insensível projetando o design de bons livros dentro de uma editora? Como vou me arriscar na compra de um livro em que a capa manda a mensagem subliminar "lixo mainstream"? 

Um livro que grita: "essa capa
não me representa"

Algumas editoras publicam livros bons e livros ruins quase na mesma medida. Acho que essa é a realidade da Record. Tenho livros boníssimos feitos por ela, como livros do Stephen Jay Gould e do Matt Ridley, mas sei que ela não está nem aí para a publicação de material fácil. Por muito tempo a Record era responsável pela publicação dos livros do Sidney Sheldon, por exemplo. Hoje, ela é um grupo editorial onde encontramos nomes de outras editoras boas, como José Olympio e Civilização Brasileira, e de editoras fracas. Mas (alguma editora que não mereça um mas?) é outro nome envolvido em fraudes de traduções, como mostra uma postagem da Denise Bottmann AQUI. Por muito tempo, a Record publicou livros de diversos autores em que se lia na capa "tradução de Nelson Rodrigues". Era mentira. Nelson não sabia inglês e Ruy Castro escreveu, em O anjo pornográfico, que o biografado era "o mais acabado monoglota da língua portuguesa" (isso tudo li lá no nãogostodeplágio; recomendo esse blog com direito a puxada de braço e ranger de dentes na orelha). Por que a farsa? Porque muita gente compraria um livro traduzido por Nelson Rodrigues, o polêmico interessante da época. E é muito engraçado ter lido hoje sobre a fraude, porque esses dias eu peguei na mão um livro "traduzido" por Nelson Rodrigues. Infelizmente não me recordo se foi aqui, se foi na biblioteca, se foi na casa do meu namorado ou se foi numa livraria. Só posso dizer que esses livros ainda circulam por aí. 

A Companhia das Letras também é mista. Mesmo assim, merece quase todo o meu respeito. Seus livros sobre ciência, literatura e filosofia estão muitas vezes entre os mais recomendados para leitura (se não for possível ler os originais). A nova tradução da coleção de obras do Freud, primeira tradução do alemão (a tradução da Imago usava muito a versão inglesa como referência), feita pelo Paulo César de Souza, é de chorar de encantamento. O texto foi bem trabalhado - você está lendo psicanálise mas se sente lendo uma deliciosa literatura (Freud escrevia lindamente e Souza traduziu com cuidado para não perder os instantes de poesia) - e os livros são esteticamente maravilhosos. O papel é perfeito, a fonte e o tamanho dela são perfeitos, as imagens das peças arqueológicas da coleção de Freud são uma sublime ideia. 
Os livros de história publicados pela Companhia das Letras também costumam ser muito bons. É uma editora que não me faz sentir arrependimento por ter comprado material cuidado por ela. Para estar mais perto da perfeição, bastaria que também não se rendesse ao mercado extremamente popular. Mas o que é que se vai fazer se é esse tipo de livro que gera mais lucros? 

Quinto e último volume da ótima coleção História da
vida privada
, pela Cia das Letras

Não lembro de ter ouvido ou lido reclamações sobre a qualidade das traduções da Cosac & Naify. Espero que seja isso mesmo. Apesar de manter uma linha editorial bem pitoresca, a Cosac consegue publicar excelentes livros. De vez em quando, no meio de dúzias de novidades sobre moda e arte, surge um bom livro de antropologia. Preciso falar da beleza dos livros? Preciso. Cada livro tem uma produção artística única que diferencia a Cosac de outras editoras. Nunca vi livros tão lindos. Alguns reclamam que essa beleza custa caro. Eu, particularmente, não me importo de pagar por ela e não acho que seja cara. Se eu quisesse ler material visualmente feio, baixaria esses arquivos que são cópias de livros, só que sem formatação. Leria no computador. Não me importaria em ver um texto em prosa digitado em formato de verso; texto que foi tirado de um livro mas que eu sequer posso citar porque não está digitado conforme a paginação do livro. Tiraria fotocópia dos livros que me interessam. Não ficaria escandalizada com o papel vagabundo que certas editoras de quintal usam para publicar seus materiais. Entendo que alguns leitores não façam muita questão de agrado visual. Eu faço. Um livro bom com uma capa feia me dá coceira. Um livro bom publicado numa fonte medonha me faz perguntar para que um funcionário é pago para escolher a fonte de uma obra se ele não tem a mínima noção de bonito e feio, pertinente e impertinente, agradável à leitura ou desagradável. 

Conversas com Scorsese, da Cosac & Naify

Por ser assim maníaca por editoras e gostar de ponderar cada coisinha que elas fazem, há livros que ainda não li porque não foram publicados por uma renomada editora. A origem das espécies, por exemplo, foi publicada pela Hemus, pela Ediouro, pela Martin Claret e pela Escala (Fahrenheit 451 seria viver num mundo onde só pudéssemos ler livros dessas editoras bizarras). Todas as traduções têm problemas. Ou espero que a Companhia das Letras nos dê a graça de publicar essa obra após tê-la colocado nas mãos de um bom e ético tradutor, ou terei que ler a obra no original. Não gostaria de ter que fazer isso ainda. Não tenho preparo para ler um livro em inglês cheio de termos técnicos. Só estou paciente porque o que mais me interessa na evolução é o caminho que ela está traçando nas últimas décadas (digo, o que evolucionistas têm dito sobre ela nas últimas décadas), e não tanto especificidades incompletas do livro de Darwin. Não sei se me entendem. Darwin foi magnífico. Seu trabalho é uma das maiores revoluções da ciência. Mas há diversos pontos de suas ideias que estão defasados. Eu quero primeiro conhecer a evolução tal como ela está na modernidade, para depois ler sua obra-catapulta. Minha escolha me permite ficar tranquila em relação a ainda não termos uma boa tradução dessa obra lançada por uma editora de renome (apesar de isso parecer um absurdo, pensando e pesando bem as coisas...). Não me importo muito em esperar. Tenho dezenas de livros sobre evolução na minha fila de leitura, e muitos desses livros estão sempre fazendo referência a trechos de A origem das espécies

Eu poderia falar de mais algumas editoras, mas acho que o que expus acima deixa bem clara a mensagem que estou tentando passar. Se você não compra comida de qualquer marca baratinha desconhecida, também não compre livros de editoras baratinhas. Há um motivo para livros bons serem mais caros. Não é só por causa do papel bonito que os livros do Dostoiévski da Editora34 são mais caros que os livros dele publicados pela Martin Claret. É melhor ter poucos e bons livros do que ter quatro paredes repletas de porcarias. 

Sobre os sovinas que vivem reclamando do valor dos livros, falarei em alguma outra postagem. 

P.S.: uma editora que é uma exceção porque consegue fazer muitos livros baratos e bons é a L&PM Pocket.