tag:blogger.com,1999:blog-70654902576447052012024-03-12T20:27:30.684-04:00Barbara Maidel PageBarbara Maidel PageBarbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comBlogger9125tag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-29191694593410212072017-02-06T01:22:00.002-03:002017-02-06T01:22:41.441-03:00Migrei<br />
Criei um novo blog. Começarei a postar textos somente lá. Todavia, não fecharei este Barbara Maidel Page, pois gosto bastante de muitas coisas que estão aqui.<br />
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O novo blog: <a href="http://barbmaidel.blogspot.com.br/" target="_blank">http://barbmaidel.blogspot.com.br/ </a><br />
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Um abraço aos leitores,<br />
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Aquela que barbariza.Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-35383478567698927982016-09-07T18:04:00.000-04:002016-09-07T18:57:24.394-04:00Da utilidade de rabiscar livros<div style="text-align: justify;">
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Não-leitores muitas vezes se entregam de bandeja. Há duas oportunidades de destaque para reconhecer, com alguma garantia, um não-leitor. Primeiro, ele vai à sua casa, vê estantes abarrotadas de livros e pergunta se você já leu todos. Você, que é de certa forma um bibliófilo – conforme finanças e espaço permitem –, mas não vive de ler livros porque precisa trabalhar, cozinhar, sair para pesquisar se ainda existe alguma loja vendendo blusas de lã sintética que não provenham da China (conclui que não existe, aliás). Você, que dorme, e dorme todas as preciosas oito horas porque leitor com sono é leitor que não presta atenção direito, que lê mecanicamente, que boceja diante do verso mais bonito de Goethe. Você, que não consegue se dedicar à leitura enquanto termina uma garrafa de vinho e duvida da apreensão de conteúdo dos <i>beatniks</i> que dizem beber e fumar enquanto leem (os mais peculiares talvez aleguem tocar piano e fazer a barba também). Isso porque o não-leitor não sabe quanto tempo leva para se ler um livro. Porque ele não sabe que a maioria de nós não é nem Sérgio Buarque de Holanda nem José Guilherme Merquior para se trancar no escritório e engatar uma leitura na outra, em extrema glutonice. O não-leitor, que não lê nem quatro livros por ano, não resiste: vê a estante cheia de alguém e já quer saber se tudo foi lido. A outra oportunidade de reconhecimento do não-leitor é sua exaltada repulsa sobre livros riscados. É verdade, esse sinal é um pouco menos certeiro, porque há mesmo leitores, metódicos e hospitalares, que consideram sacrilégio apertar o bumbunzinho de uma lapiseira ao se estar na presença de um livro aberto. Mas se o leitor “pode ser” que se horrorize ao ver um parágrafo sublinhado, o não-leitor não pode ser, ele “é”. Acha “feio”. Um desperdício. “Como outra pessoa vai ler o livro desse jeito?” O não-leitor não entende, na cabecinha de prego dele, que a função de um bom livro não é permitir o refúgio do tédio de quem não sabe como proceder com tanta liberdade e enxerga na leitura um jogo de canastra cuja função é fazer o tempo passar para que logo se esteja reclamando que o Natal vem cada vez mais rápido. Não entende que um bom leitor jamais vai passar um livro adiante só porque já foi lido: um livro maravilhoso terminado acaba de dar mais uma razão para ficar. Ninguém, em sã consciência emocional, vai tratar Kafka como leitores da Agatha Christie a tratam (e com razão): como algo a ser enfiado numa lista e marcado ao lado com “lido” e nada mais, o que significa que não há sentido nenhum em reler, em buscar “aquele trecho”, porque é como um item colocado num papelete sobre o que precisa ser enfiado no carrinho do supermercado. Ninguém “relê” Agatha Christie, porque seus livros são descartáveis, são livros de férias na praia, livros para presentear o adolescente que os pais permitiram “ter seu próprio temperamento” e agora, tarde, descobriram que era apenas falta de educação deixar uma criança tonta ficar à própria sorte com estudos e leituras – Hercule Poirot vem para tentar salvá-lo da estupidez à qual se encaminha toda vez que é colocado diante da TV. Assim, ninguém rabisca livros que poderiam muito bem ser publicados pela Coquetel. Mas como não rabiscar <i>A idade do serrote</i>, de Murilo Mendes, que é um primor do cabo ao rabo? Como não rabiscar os <i>Ensaios</i>, de Montaigne? Quem é a pedra disfarçada de leitor que vai ler os <i>Ensaios</i>, considerar que o serviço está feito e passar o livro adiante sem manter uma cópia? Quem é o obsessivo-compulsivo que vai ler <i>Apologia da história</i>, não sentir necessidade de marcar nada, assumir que é excelente e mesmo assim doar para alguém? Existe uma abismal diferença entre olhar um livro pensando “ensine-me” e “entretenha-me”. Rabiscar um bom livro é quase um dever. Um não-leitor não entende isso porque para ele livros são como atrações de circo (adoro circos, desde que não haja animais sendo escravizados neles), e um livro lido é um serviço cumprido. </div>
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Nem todas as minhas experiências com rabiscos de livros são boas. Há alguns anos, comecei a ler <i>Introdução à sociologia</i>, do Adorno (editora Unesp). Rabisquei o livro logo que veio: coloquei meu nome e a data nele, com caneta. Conforme prossegui a leitura, rabiscava uma coisa ou outra. Até perceber, já depois de algum estrago, que eu não estava gostando do livro. Não era péssimo, mas, com tanto material bom para ler, jamais seria um livro que eu salvaria de um incêndio na minha casa. Se não tivesse rabiscado o livro – se tivesse sido mais ponderada e esperasse pelo menos até a página 40 para ver se valia a pena mantê-lo comigo –, poderia vendê-lo. Inutilizei-o com sublinhados. Ocorreu o mesmo com <i>O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais</i>, de Lucien Febvre (editora Companhia das Letras). Comprei porque o tema me interessava: incredulidade, Rabelais, Idade Moderna. Febvre também sempre teve ótima fama. Recebi o livro, marquei-o como propriedade, comecei a rabiscar o pouco que achava que devia. Insisti. O estilo de Febvre é horroroso, com floreios poéticos piegas e muito uso de frases reticentes. Li mais um pouco, tentei marcar algumas outras coisas. Mas não consigo ler textos compridos em estilo ruim. Dão-me agonia da mesma forma como sofro para ler textos mal pontuados. Ali estava outro livro que eu não deveria ter marcado desde o início, porque me permitiria revendê-lo, passar para alguém que apreciasse historiografia nas nuvens. Errei ao maculá-lo. Mas aprendi, finalmente, como agir com livros desconhecidos que caem nas minhas mãos sem muito conhecimento de teor e forma. A imensa maioria dos livros que adquiri nos últimos anos vieram de lojas virtuais. (Apoio apego a livrarias pequenas prestes a serem engolidas por gigantes como Amazon e Saraiva, mas em São Paulo não tenho intimidade com nenhuma que satisfaça esse requisito; e mesmo que apareça alguma hipotética <i>Livraria do Seu Pedro, desde 1952</i>, não tenho a missão de salvar pequenas empresas quando a diferença de valor pelo mesmo produto é muito alta. Se a diferença for pouca, opto sempre pelo pequeno empresário.) E existe um probleminha com alguns livros comprados na internet cujos trechos não estão disponíveis para leitura prévia, que é o de você não saber exatamente o que vai receber em casa. Hoje, portanto, recebo minha caixa de livros e nem marco meu nome neles. Espero. Leio algumas páginas. Vou lendo, lendo, e em poucas dezenas de folhas já consigo perceber se é algo para manter, consumir de rabiscos, ou passar para outros. </div>
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“Consumir de rabiscos”. É isso o que eu penso que as pessoas deveriam considerar a respeito de livros: material de consumo. Não é um quadro, não é a nega de cerâmica que o branquelo trouxe da Bahia para tornar sua casa mais “exótica”. É para ser estraçalhado, no bom sentido. É para ser lido, relido, marcado, repensado, consultado. Está ali para servir, mas sem ser subalterno. Não me entra nas dobras cerebrais que alguém leia um livro excelente e passe adiante. Como esse sujeito não sente falta do livro? Como não sente falta de viver outra vez aquela passagem, aquela descrição? Precisamos ver nossos bons calhamaços como dicionários, dos quais ninguém se desfaz porque são constante fonte de consulta. Imagine se vou passar os livros de Jacques Le Goff para frente como se fossem moedas. Minha cabeça é limitadíssima, como a de todo mundo, e vai chegar um momento – sempre chega para quem gosta de saber as coisas de fato – em que me perguntarei “mas como era mesmo aquela história que ele contava em <i>A bolsa e a vida</i>?”, levantarei do sofá, abrirei o armário, puxarei seu livrinho e terei, instantaneamente, a resposta para minha dúvida, além de uma ressurreição. Em minutos eu revivo Le Goff, não somente graças ao fato de possuir seu livro como ao fato de tê-lo rabiscado. </div>
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Falemos, agora, entre leitores habituais. Leio em média três livros por mês, o que é considerável para quem não trabalha com pesquisa. Digamos que ano passado eu tenha mantido essa média, portanto eu teria lido 36 livros. E digamos que no ano anterior eu também tenha lido 36 livros. São 72 livros em apenas dois anos. Desses, suponhamos que 32 não eram “eternos”: eram livros não tão bons, livros não tão marcantes, livros que não me fariam falta se sumissem. Sobram 40 bons livros lidos em dois anos. Eu inquiro: alguém que tenha a mesma quantidade/qualidade de leituras que a minha e tenha preservado uns 40 livros de dois anos de leituras, alguém que mantenha esses livros, mas não os rabisque – em que estado de angústia ficará quando tentar lembrar de uma passagem recordada vagamente e que está num dos dez livros sobre evolução das espécies, por exemplo? Porque se o livro na estante não for tratado como um mero troféu – “vejam, ali está e eu o li” –, será buscado. Será fácil buscá-lo sem marcações? Não será. </div>
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Há dois livros realmente bons que li este ano sobre evolução, e acabei fazendo uma leitura seguida da outra: <i>As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade</i>, do zoólogo Matt Ridley (editora Record), e <i>A história do corpo humano: história, saúde e doença</i>, do professor de biologia evolutiva humana de Harvard Daniel E. Lieberman (editora Zahar) (também conhecido como “professor descalço” por defender que deveríamos correr de pés nus, quando possível, por causa do modo como a evolução moldou nossos pés). Precisei escrever um artigo de conclusão de curso para a especialização que fiz em Direito Penal. Poderia escrever sem muita pretensão sobre qualquer assunto jurídico que a nota viria, e com ela a fácil aprovação (gostaria de ver quais os critérios usados pelo MEC para manter certas instituições funcionando), mas preferi me dedicar a algo que me interessasse e acabasse como um bom artigo para mim mesma. Escrevi sobre o aborto, trabalhei temas como fetos anencéfalos e morte cerebral. Lá pelas tantas lembrei de ter lido que o feto compete com a mãe por recursos dentro dela, gerando desajustes e funcionando como parasita. Quis a citação indireta desse trecho, mas não lembrava em que livro estava. Sabia que estava num dos dois que tinha lido no começo do ano. Vistoriei minhas marcações nas bordas e não achei nada no livro do Lieberman. Só podia estar no do Ridley. Estava. Na parte superior da página 32 eu havia escrito “a luta na gravidez” e “o feto como parasita” para fichar o que havia naquela página. Meus rabiscos facilitaram minha busca para o artigo, o que foi ótimo, mas eu não fico escrevendo artigos o tempo todo – só que esses rabiscos salvam minha tranquilidade mental e minha vontade de saber sempre. Ali estou eu, tomando sol na varanda enquanto leio uma National Geographic. Uma matéria sobre agrotóxicos me faz lembrar algo que li num livro. Vou para dentro, procuro o livro, começo a ler o que escrevi em suas beiradas ou o que sublinhei com “cobrinhas” – meu sinal para mim mesma para “trecho muitíssimo interessante” – e logo acho o que quero. Leio. Fico satisfeita. Reaprendi aquela coisinha. Volto para meu sol e minha revista. As conexões estão perfeitas e não preciso forçar meu cérebro a lembrar de todas as passagens importantes dos 40 livros bons que li nos últimos dois anos. Lido com a realidade e não passarei ansiedade por não conseguir achar onde li isso ou aquilo há alguns meses ou anos. Dentro de cada livro de minha biblioteca há uma pequena biblioteca, com capítulos e páginas catalogados conforme os assuntos. </div>
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Não consegui convencer sobre a utilidade de um bom rabiscar? Logo ali darei um exemplo ainda mais prático, mas permitam-me falar de mais uma dádiva que a organização oferece ao rabiscador de livros. Há alguns anos li um livro que comprei no sebo, <i>O comunismo</i>, do historiador Richard Pipes (editora Objetiva). Um bom livro com uma visão mais liberal das revoluções socialistas, já que Pipes parece considerar o comunismo, tanto praticado (visão muito justa) quanto idealizado (visão talvez muito dura, já que há, sim, uns poucos sonhadores comunistas de boa vontade), uma catástrofe. Esses dias peguei o livro para “relê-lo”. Não o estou lendo por inteiro: estou lendo somente os trechos que pontuei no fichamento no próprio livro que fiz na primeira leitura. Quando um trecho marcado instigante é seguido por um não marcado, leio também o não marcado. Assim, consigo reler livros sem que precise tratá-los como se fosse a primeira vez. Há livros, claro, que lemos por completo algumas vezes durante a vida (no meu caso, principalmente literatura), mas há outros que bastam ser revividos pelas marcações. Marca-se o que é mais relevante e essencial: quando se tem pouco tempo – ou muito tempo, só que voltado para tantas outras coisas –, um livro rabiscado facilita muito a vida. Quem gosta de seriados muitas vezes não vê várias vezes certos episódios? Acredito que já assisti a quase todos os desenhos do Pernalonga, mas se estiver cansada e com vontade de rever algum, verei qualquer um dos episódios em que ele é maestro ou personagem de alguma música clássica (como em “Coelho de Sevilha”). E que mal há nisso? Com livros, o mesmo acontece. Você pode ler os <i>Ensaios</i> todos de uma vez, marcar os aforismos mais interessantes, deixá-lo na cabeceira e reler aqueles que marcou. Rabiscar livros não apenas organiza a leitura como presta um favor à releitura. </div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgC_7AQRXW8Sh8FqryCr_KUVfskzDQH-SgkLrBl-HiK_-p9hr7gp4c-aKvwjx3uZfvoD7GN-Qz2APOkGndA5nIzB-1Gdc4tZbUdxptTHJo83QonHUbLbkzSTt886VRR5tHQS9qjTZdGgpm1/s1600/IMG_5766a.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgC_7AQRXW8Sh8FqryCr_KUVfskzDQH-SgkLrBl-HiK_-p9hr7gp4c-aKvwjx3uZfvoD7GN-Qz2APOkGndA5nIzB-1Gdc4tZbUdxptTHJo83QonHUbLbkzSTt886VRR5tHQS9qjTZdGgpm1/s320/IMG_5766a.JPG" width="213" /></a></div>
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Recentemente finalizei a leitura de <i>Ética prática</i>, do Peter Singer (editora Martins Fontes). Até então eu só tinha lido quatro ou cinco capítulos sobre assuntos que me eram caros: o estatuto ético dos animais, aborto, “o que há de errado em matar”. Todos os assuntos do livro, todavia, deveriam ser caros a todos nós: imigrantes, meio ambiente, que responsabilidade os que têm dinheiro (sim, você que está lendo, por exemplo; pare de fingir que é pobre porque isso é uma tremenda falta de respeito com quem é realmente pobre) têm com os que não têm (não, você não é pobre só porque está há dez anos sem trocar de carro; por favor, situe-se em seu ridículo), por que devemos agir moralmente. O livro é ótimo, então valeu cada rabiscada. O que estou fazendo agora que terminei de lê-lo e rabiscá-lo? Estou relendo o que marquei. Por quê? Porque é muito difícil apreender tudo de um livro de uma leitura só. A primeira leitura serviu para meu entendimento amplo de tudo, para que eu tentasse organizar os conhecimentos do livro. Agora posso reler o que está organizado de acordo com o meu gosto de ordem (não marco somente as passagens com as quais concordo, porque minha intenção é entender o texto, não revisá-lo para o autor conforme meu narcísico parecer). Muitas coisas na vida nós primeiro organizamos para depois tomá-las em seu verdadeiro sentido. Não vejo por que com o conhecimento seria diferente. </div>
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<br /></div>
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Na primeira folha dos livros muitas vezes escrevo frases curtas que expressam muita coisa, e coloco a página onde estão ao final da citação. Em <i>Ética prática</i> há lá três trechos na primeira página, sendo um deles: “O status de igualdade não depende da inteligência. Os racistas que afirmam o contrário correm o risco de ser forçados a se ajoelhar diante do primeiro gênio que encontrarem. (p. 40)”. A importância desse trecho está em sua síntese de tudo que Singer trabalha na obra: o fato de um camundongo não apreciar ópera como você, o fato de um angolano não fazer os cálculos que você faz e o fato de um índio não saber ler não fazem com que você seja superior a eles em merecimento de tratamento compassivo – se se achar superior por essas coisas, precisará virar escravo dos inúmeros sujeitos muito mais inteligentes que você que estão por aí. Em seguida, outro excerto que sintetiza o pensamento ético de Singer: “Se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. (p. 67)”. E ainda: “O princípio da igual consideração de interesses não permite que os interesses maiores sejam sacrificados em função dos interesses menores. (p. 73)”, ou seja, é justificável que um esquimó, impossibilitado de exercer a agricultura, mate um animal para comer, prática que é totalmente imoral quando você, citadino, pensa que é justificável ceifar uma vida com interesses e senciência por mero prazer do paladar, da mesma forma como não se justifica sua insistência em comprar roupas de marcas de <i>fast-fashion</i> reconhecidamente responsáveis por trabalho análogo ao escravo só porque “são muito bonitas e baratas” – seu interesse menor, gastar pouco dinheiro com uma peça bonita, não justifica o sacrifício de um interesse maior, que é o de um trabalhador ser tratado no mínimo conforme o que apregoa a CLT. </div>
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<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7BUOkRIGQSlzb2gayOE-sSjML75Ld-NR_AsE1U6U-g5A5qgiEFl1-d6lVTX1XfQMOKH5x7HZI13DBvLw-8ExR1kwnWUxLroe6e58Llm5WzFpGMjO5HqOdNHyHNx1N7ldOXOt7iH7NoW-g/s1600/IMG_5767a.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7BUOkRIGQSlzb2gayOE-sSjML75Ld-NR_AsE1U6U-g5A5qgiEFl1-d6lVTX1XfQMOKH5x7HZI13DBvLw-8ExR1kwnWUxLroe6e58Llm5WzFpGMjO5HqOdNHyHNx1N7ldOXOt7iH7NoW-g/s320/IMG_5767a.JPG" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Livros que se transformam em cadernos por<br />
praticidade: aos que não querem isso, que<br />
comprem cadernos, desde que os usem</td></tr>
</tbody></table>
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<br /></div>
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Agora vejamos alguns dos rabiscos explicativos e ordenados que fiz no decorrer das primeiras páginas do livro, rabiscos que já me auxiliaram, mas vão me auxiliar ainda mais no futuro, quando minha memória começar a apagar boa parte do que li: </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Reação ao livro nos países de língua alemã; </div>
<div style="text-align: justify;">
Ética e Deus;</div>
<div style="text-align: justify;">
Kant e o código moral;</div>
<div style="text-align: justify;">
Sobre o relativismo;</div>
<div style="text-align: justify;">
Aos marxistas: “se toda moralidade é relativa, o que há de tão especial no comunismo?”;</div>
<div style="text-align: justify;">
Relativismo ético;</div>
<div style="text-align: justify;">
Universalidade da ética;</div>
<div style="text-align: justify;">
Kant;</div>
<div style="text-align: justify;">
Ética como reflexão sobre todos os interesses envolvidos;</div>
<div style="text-align: justify;">
O racismo se tornou “feio”;</div>
<div style="text-align: justify;">
Princípio da igual consideração de interesses;</div>
<div style="text-align: justify;">
“A raça é irrelevante para a consideração dos interesses, pois o que conta são os interesses em si.”;</div>
<div style="text-align: justify;">
Caso hipotético das duas pessoas feridas desigualmente e das duas doses de morfina;</div>
<div style="text-align: justify;">
Princípio da diminuição da utilidade marginal;</div>
<div style="text-align: justify;">
“Caso da perna e do dedo do pé”;</div>
<div style="text-align: justify;">
Uma suposta diferença entre o QI de duas etnias poderia justificar tratamentos desiguais para elas?;</div>
<div style="text-align: justify;">
Diferenças entre homens e mulheres, biologia ou cultura;</div>
<div style="text-align: justify;">
O papel da mulher no mercado de trabalho;</div>
<div style="text-align: justify;">
Diferenças entre os sexos e estar fora do padrão biológico;</div>
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É difícil mensurar a igualdade de oportunidades;</div>
<div style="text-align: justify;">
Fuga de cérebros;</div>
<div style="text-align: justify;">
O problema do “socialismo em um só país”</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Isso tudo foi o que escrevi – organizei – em bordas e beiradas até a página 50. Não há como negar que é uma bela catalogação. Se daqui a três anos eu me lembrar de quando Singer comenta sobre o problema do socialismo em um só país – que é um problema que gera as tais fugas de cérebros, quando o governante socialista permite que as pessoas emigrem, pois muitos gênios anseiam ser bem remunerados por sua contribuição à sociedade em vez de receber quase o mesmo que varredores de rua – e quiser reler o que ele diz sobre isso, basta ir às beiradas. Se não houvesse marcações nelas, eu demoraria talvez horas para encontrar o que quero: não há capítulo com esse nome, não há subtítulo chamado “socialismo num só país”, nem índice remissivo no final do livro. Meus rabiscos salvam meu eu futuro de agonia. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7Vrgh908ir5NB6nYi4QGdlC1pau7puBLwKyscn4_Jw1H74JG4q0fV9OSl-xWPVhtGRjZ7VKatSqKc2zf8BP0W8DzLC3Zl71XTITtE3fo2dLMrM9YRee5Mu4VVnpmDvH-WmjqtRKXv7Yse/s1600/IMG_5773a.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7Vrgh908ir5NB6nYi4QGdlC1pau7puBLwKyscn4_Jw1H74JG4q0fV9OSl-xWPVhtGRjZ7VKatSqKc2zf8BP0W8DzLC3Zl71XTITtE3fo2dLMrM9YRee5Mu4VVnpmDvH-WmjqtRKXv7Yse/s320/IMG_5773a.JPG" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Hostilizado em países de língua alemã por debater<br />
o tema da eutanásia, Singer teve seus óculos<br />
arrancados e jogados ao chão, e eu sei onde<br />
está esse trecho porque o marquei</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Livros rabiscados são lindos para seu dono, mas emprestá-los é um erro, geralmente. A marcação feita por outra pessoa influencia nossa leitura, nossa atenção. Além do mais, às vezes pode soar pedante emprestar um livro rabiscado. Se hoje eu já não empresto livros rabiscados (nem os que não estão rabiscados, na verdade, porque sempre tive azar ao emprestar coisas), no passado seria pior ainda, porque houve época, ali nos meus 17 ou 18 anos, em que eu não somente fazia marcações nos livros: eu colocava minhas opiniões nas bordas. Achava o ápice da crítica atilada escrever “estúpido” ao lado de um parágrafo de que não gostara (não cheguei ao ponto-Schopenhauer de desenhar orelhas de burro ao lado de trechos de Hegel ou Fichte). </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O que vivo, agora, é uma situação engraçada: não sou mais uma pessoa sozinha como leitora numa casa. Tenho um namorado com quem compartilho coisas (muitos insistem que devo chamá-lo de marido; não sei por que se importam tanto com terminologias esses abelhudos). Todos os livros que compramos, compramos juntos. Dividimos água, luz, condomínio, feira – e livros. Ocorre que às vezes posso querer ler um livro que André comprou para ele. Não, não consigo não rabiscá-lo. O que faço é tentar ser o mais discreta possível: se um trecho me interessa, faço um leve traçado com grafite ao lado do parágrafo. Fiz isso com <i>Nada a invejar: vidas comuns na Coreia do Norte</i>, da jornalista Barbara Demick (editora Companhia das Letras), que pretendo resenhar em uma postagem em outro momento. Quem leu sobre ele foi o André, quem quis comprá-lo foi o André. Mas eu acabei lendo o livro antes. Se não fizesse um fichamentozinho, uma marcaçãozinha que me ajudasse, posteriormente, a achar o trecho em que Demick fala das pessoas comendo grama e não podendo reclamar do Grande Líder, por exemplo, eu ficaria ansiosa. Em casas de casais, talvez os rabiscos tenham que ser mais moderados. Para maiores marcações, recomendo que se compre um caderno só para se colocar espécies de frases-chave, como aquelas que elenquei acima no livro do Peter Singer, com a página ao lado. Por exemplo: </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como dividir a Coreia após a II Guerra (p. 36);</div>
<div style="text-align: justify;">
Sistema de castas (p. 43);</div>
<div style="text-align: justify;">
O sistema filosófico do <i>juche</i> (p. 65);</div>
<div style="text-align: justify;">
Vitrines para estrangeiros, frutas falsas (p. 87)</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um caderno de 100 folhas vai durar para muitos livros desse jeito. Para mim essa ideia não dá muito certo porque tenho o hábito de ler deitada em 80% do tempo. Já vou para a cama ou para o sofá com o livro e uma lapiseira, que é para ir marcando e rabiscando o que me interessa (não me importo com a caligrafia, desde que fique legível). Mas é uma boa opção para quem quer manter seus livros limpos e costuma ler sentado (ou lê deitado, mas não faz cerimônia para levantar e escrever coisas no caderno; ou lê deitado e consegue escrever em cadernos mesmo deitado). </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEji0J7os_iQHAYdlEzFpE_VLeHU0xUIS5Q4mDCAN-uJpPtK8l8uFrl40PvLZDtbzsYLx8f5dQOuU4_OPaue9vG4_l_qB31rrI9Iztl_-CCHjvGtdLrB9pKzqgYncdZ0cz10l-Dgakyx-Bpu/s1600/IMG_5780a.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEji0J7os_iQHAYdlEzFpE_VLeHU0xUIS5Q4mDCAN-uJpPtK8l8uFrl40PvLZDtbzsYLx8f5dQOuU4_OPaue9vG4_l_qB31rrI9Iztl_-CCHjvGtdLrB9pKzqgYncdZ0cz10l-Dgakyx-Bpu/s320/IMG_5780a.JPG" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Forma mais sutil de marcar trechos de livros<br />
que poderão ser lidos por outra pessoa</td></tr>
</tbody></table>
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Aos que leem e não marcam, não organizam, não sintetizam: não sei como vocês vivem. Ou leem tão pouco que a memória limitada basta para os pouquinhos livros anuais, ou leem como quem está na aventura do livro para passar o tempo entre as datas festivas, ou ainda não ficaram cientes da real condição de desespero em que deveriam estar por não manterem tão elementares conhecimentos organizados de forma a que estejam com fácil acesso. Não quero incentivar o desespero, a queima de cidades e bibliotecas por causa do pânico (“meu deus, Barbara, todo o conhecimento que li está espalhado por aí e não sei como começar a juntar!”). Mas acho que é hora de rever o modo como se lê, que é quase tão importante quanto aquilo que se lê. Seja o tipo de leitor que você gostaria de ter se fosse um bom autor.</div>
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Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-89269112723172263012016-06-26T01:11:00.000-04:002016-06-26T22:07:53.426-04:00Quem convidar para a festa e quem expulsar dela<div style="text-align: justify;">
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Meu ateísmo não é o melhor dos mundos. Não o adotei por querer, mas por dever cético. É claro que seria muito mais agradável saber que todos os grandes vigaristas do planeta serão julgados no momento da morte, e que toda essa gente hipócrita que nos presenteia à helênica, corriqueiramente, com palestras não requisitadas sobre ela mesma, mas que não faz nada de muito útil ou realmente revolucionário, vai se afogar no Aqueronte num dia de mormaço intenso. Isso se eu acreditasse nessas mitologias, e se a mitologia fosse de fato ao meu gosto: pode ser que um possível Deus fosse antiquado e condenasse quem bebe, tem um humor escrachado e não faz louvor em rituais. Nesse caso – minha danação eterna –, prefiro acreditar que o inferno é o lugar dos malditos em que vou beber no balcão não para tornar os outros mais interessantes (ou me tornar mais imune à chatice alheia), mas para atingir aquele nível de passarinho encantado sibilando valsas, que é como sou ao beber em casa, despreocupada por não ter que fingir tolerar nada. </div>
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Duvidando de qualquer dessas histórias que são apenas isso mesmo – histórias –, considero que a vida é isso que está aí. E ponto. Eu vou acabar, você vai acabar, e tudo o que é nosso e considerávamos tão precioso servirá para fertilizar a terra. Esse entendimento pode gerar duas reações genéricas: uma delas, a de espanto metafísico, um desejo Woody Allen (do tempo dos bons filmes, que não eram como alguns outros dele que vemos numa semana e na outra já esquecemos a trama – indicativo de irrelevância; exemplo: <i>Para Roma, com amor</i>) de ser inoperante, porque existir não faz sentido, e passar a encarnar a Rê Bordosa com seu <i>live fast, die young</i>; a outra, de amor louco a essa efêmera coisinha que podemos aproveitar porque milhares de antepassados – humanos rudes, meio-macacos, seres recém saídos das águas, peixes, agrupamentos celulares – nos deram a oportunidade de participar desse evento que é a vida. Optei pela segunda alternativa. Acho-a justa. Sou diariamente grata à natureza e ao destino por ter pernas, lucidez, um emprego, dedos, visão, vontade de aprender: ou seja, sou grata pela vida – num sentido prático e sério, e não de quem acha que o melhor de todas as culturas são as danças circulares e os chás. Isso não me torna uma “pessoa positiva”: acho que as coisas são o que são, o que podemos e queremos mudar, que mudemos, o que não podemos mudar devemos deixar como está (por exemplo, estressar-se no trânsito é estupidez porque o estresse não vai fazer com que os carros fluam mais rápido). Mas isso me torna muito seletiva a respeito do que vale a pena fazer parte da parte da minha vida que controlo: minha intimidade e meus pensamentos. Assim, não quero ocupar nem minha intimidade, nem meus pensamentos com itens e sujeitos que nada me acrescentam ou que, pior, me diminuem. Venho fazendo uma seleção de tudo isso há anos. No concernente a itens, evito ter que ver, participar, ouvir falar de coisas desinteressantes que só vão ocupar espaço na minha memória limitada: se entrar muito entulho na minha cabeça, terei menos espaço para o que é valioso, ou mesmo as coisas valiosas ficarão pouco concentradas porque precisarão dar lugar a inutilidades. É o tipo de fórmula que pode nos levar a parecer agrestes: já pedi para interlocutores pararem de falar sobre determinados assuntos porque eu não ia conseguir prestar atenção, e, se prestasse, não gravaria a informação nem por cinco minutos. O tempo é muito precioso para que façamos com que nos falem de temas que não nos importam. (A alternativa a essa rusticidade quando encontramos alguém dado à tagarelice contínua – a.k.a. monólogo – é a introspecção: por fora, dizemos “hm”, “uhum” e “ah, é mesmo?”, por dentro estamos fazendo listas de compras, treinando a tabuada, lembrando a discografia do Killing Joke e planejando viagens. Se surpreendentemente o falante voraz parar sua conferência para nos fazer uma pergunta e não tivermos ouvido porque estávamos escolhendo que marca de aveia comprar mais tarde, podemos nos sair com “olha… não sei” ou fingir surdez com “o quê? desculpe, não entendi”.) No concernente a pessoas, evito inúmeros tipos, primeiro porque não gosto deles, segundo porque não tenho tempo para eles. Vejam, se tudo der certo, daqui a muitas décadas vou morrer. Até lá, terei lido tudo que quero ler? Terei aprendido tudo que gostaria de aprender? Terei visto todos os filmes que coloquei na <i>Watchlist</i> do IMDB? Terei ouvido todos os álbuns de black metal, jazz e cold wave que pretendi ouvir? Com certeza não. (Numa remotíssima hipótese de eu já ter esgotado tudo isso, digamos, aos 80 anos – “pronto, não há mais nada que eu precise ler, ver ou aprender” –, aí eu poderia explodir meus miolos, porque seria lamentável ter que passar as tardes vendo televisão por não haver mais nada para fazer enquanto a morte não chega.) </div>
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Muito bem, se uma vida não bastará para fazer tudo que planejo – e já me conformei com isso, não é algo que falo quebrando grilhões na fuga do calabouço –, por que é que vou piorar essa situação colocando pessoas desagradáveis para ocupar minha solidão? Já disse, e repito: quando estou lendo um bom livro, estou lendo a melhor parte do que seu autor tinha para me oferecer. Às vezes o autor por completo é um patife. Um chato. Um pitoresco que jamais daria certo com o meu gênio. E eu não preciso do autor completo quando tenho o melhor dele inserido num livro: o livro dele me basta. Ao assistir a um filme, estou lidando com o melhor que seu roteirista, diretor, argumentador e tantos outros componentes puderam realizar: <i>lido</i> com pessoas, <i>dependo</i> de pessoas para que toda essa nobreza artística chegue a mim, mas trato com o que há de mais interessante nelas. O mesmo não acontece com as inúmeras figuras sem atrativos que tantos insistem em colocar para dentro de suas intimidades. Resultado: espíritos fedorentos estão trocando vapores em salões de festa, “jantar entre amigos da faculdade”, salas de estar, páginas pessoais. Não foi para esse teatrinho fajuto que me tornei a ponta de uma longa cadeia geracional de luta pela existência. Claro, todos atuamos um bocado porque precisamos disso para viver em sociedade e às vezes não atuar é uma tremenda falta de educação: a moça da padaria que te atende, trabalha nos finais de semana e ganha um salário exíguo não merece receber seu olhar de desprezo (trabalhei numa padaria por um mês, sei que mesmo o Zé Pintor é capaz de chegar para uma moça que está atrás de uma cesta de pão e achar que é superior a ela) só porque você, sujeito pelo qual os astros se movem, acordou de mau humor. Também não me lembro de nenhum “sou eu mesmo sempre” ter sido aprovado em entrevistas de emprego que incluem dinâmicas de grupo e farsas do tipo “meu maior defeito é o perfeccionismo”. O problema sucede quando atuamos mesmo onde não precisamos atuar, que é a nossa privacidade. Ninguém está obrigado a levar para casa pessoas que não têm com o que contribuir. Parece um manifesto contra a amizade e a favor do profundo egoísmo de só ficar com aquilo que é magnífico dos que nos cercam, mas não é. Ocorre que há defeitos e <i>defeitos</i>. Nossos amigos não podem nos suprir com utilidades o tempo todo, mas e no tempo em que não nos acrescentam nada, o que oferecem? Indignação com a feliz vida financeira alheia? Opiniões mancas de quem quer falar sobre qualquer assunto, mas tem preguiça de dar uma estudada antes de encerrar o caso? Apenas lembranças de histórias que já foram chafurdadas inúmeras vezes? Competições que só geram ansiedade desnecessária? Posso ajudar com alguns perfis que merecem ser expulsos da festividade única que é a nossa vida. Se você está num dos perfis, recomendo ir tomar um banho, fazer silêncio por três dias e refletir. Se você acha que não sou sequer um mosquito para recomendar o que cada um faz com sua vida, por que está lendo este texto? <i>Jeez</i>. </div>
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O EXIBIDO – É um visualizador de oportunidades. Gosta de ter amigos de diversas profissões para sempre ter a quem recorrer num momento de necessidade. Gosta de dizer “tenho uma amiga cozinheira” quando a moda da Gastronomia está em alta e “tenho um amigo gay” desde que foi criado esse fetiche obtuso de que é o máximo ter um amigo gay. Gosta de ter amigos que fazem coisas “incríveis”, então você será visado se viaja para lugares exóticos ou se vive expondo trabalhos em feiras de arquitetura. Se você se tornar famoso, vai aproveitar para crescer em popularidade em cima da sua fama. </div>
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O INVEJOSO – Mais comum do que se pensa, o invejoso pode ser o livro aberto da inveja ou ter artimanhas para esconder seus sentimentos pérfidos. Comportamento: não fica muito feliz quando algo bom acontece na sua vida (quando 10% disso ocorre na vida dele, é motivo para simpósio e <i>champagne</i>), se você consegue um emprego melhor já vai perguntando quanto é o salário (para comparar se você o ultrapassou e quantos reais a mais você tem de felicidade por mês), situações que você vê como boas na sua vida recebem um novo olhar do invejoso – você é mulher que trabalha fora e seu marido está alguns meses sem emprego e cuidando da casa: para vocês, ótimo, para o invejoso, “será que não seria bom que o Alberto trabalhasse fora? Não é estranho que você trabalhe e ele fique desempregado cuidando dos filhos em casa?” (é diferente de você achar algo ruim na sua vida e um amigo concordar; ou seu amigo abrir seus olhos sobre algo ruim que você não via) –, parece vibrar quando algo na sua bela vida dá errado e até acha que você tem o direito de ser feliz, desde que não ouse ser mais feliz que ele. </div>
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O UMBIGO TAGARELA – Muitas pessoas assim passaram pela festa da minha vida. Chegaram como se trajassem Azzedine Alaïa, tomaram conta das jarras de ponche, roubaram o microfone dos rapazes da banda e falaram sobre suas vidas as coisas mais insossas que fariam um coala se tornar maratonista. Urinaram na piscina, trocaram a música do Depeche Mode “por outra muito melhor” e depois foram embora dizendo que foi o evento mais sensacional a que já foram e que “devíamos fazer outras vezes”. Não percebem que estão falando sozinhas no que não é uma conversa. Repetem histórias. Perguntam coisas somente quando querem ganchos para contar seus sonhos e experiências – “já foi a Zurique?” “sim, eu...” “pois é, <i>eu adoro</i> Zurique, quero ver se faço doutorado lá, porque na maior universidade deles há uma linha de pesquisa que...”. Voltam de viagens de três dias à Rússia fazendo análises antropológicas e achando que já podem escrever etnografias sobre o povo russo. Narram cada passo de suas rotinas. Você não fala nada nem em um vigésimo do tempo, mas é chamado de pessoa amiga, simpática, querida. O tagarela é um sanguessuga. </div>
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O PROVOCADOR – Esse é comum desde que determinei que todos os comes e bebes seriam veganos. Não costumo começar nenhuma conversa sobre veganismo. Não tento “converter” ninguém, todo mundo acha que o sabor de pedaços e pus de animais é argumento para comê-los e eu acho isso o cúmulo do hedonismo imoral. Só falo que sou vegana para que cessem de me oferecer comidas. Mas o provocador gosta de aparecer com “desafios”. Suas feições são irônicas (tenho horror a quem dorme e acorda com expressão irônica) porque ele acha que ironia é, obrigatoriamente, sinal de inteligência. Ele aparece e diz, peremptório: “hoje li que algumas marcas de pneu levam cartilagem bovina, fiquei me perguntando se você pega ônibus por ser <i>vegana</i>”. Não é uma dúvida de alguém que ignora e quer saber. É uma provocação. O arzinho é outro. Ele não chega e fala o bom português camaradão. Ele insinua, porque acha que é o maioral, o que sabe das coisas. Chato, cansativo e bobo. </div>
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O DAS INDIRETAS – Você tem o cabelo crespo. Ele diz, numa roda de conversa: “tem gente, por exemplo, que tem aquele cabelo crespo seco e deixa ele solto, por que não fazem um corte melhor ou amarram o cabelo?” Seu namorado é mais novo que você. Ele diz, falando sobre uma mulher mais velha que tentou seduzi-lo: “ah, não, é ridículo namorar uma velha, ela que tire o cavalinho da chuva”. Você está com uma barriguinha, mas numa relação amigável. Ele, magro, diz, quando vai comer um pedaço de bolo: “tenho que me cuidar, estou virando um porco”. Você é uma senhora, mas isso não te impede de usar saias curtas e decotes em festas. Você chega à festa e ele diz sobre uma senhora um pouco mais velha que está com trajes parecidos: “meu deus, lá vai ela achando que é Madonna”. Se você acusa o recebimento da indireta, recebe a contemporização falsa: “ah, mas você não é velha como ela; e a roupa dela é diferente”. Você não tem empregada doméstica nem diarista em casa. Depois de te visitar, ele comenta: “nossa, tenho que ligar para a Fátima, porque hoje em dia qualquer casa sem uma diarista vira um antro de ratos”. As indiretas costumam ser sobre assuntos fúteis. Mas quem quer na festinha da própria vida alguém que sente prazer em sentir desprezo pelos “amigos”? Precisamos que nos elevem (mesmo com críticas, desde que bem intencionadas), não que nos menosprezem.</div>
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O QUE SE RECUSA A APRENDER – Interessantemente, nunca gosta muito das nossas recomendações. É avesso a admitir que pode aprender coisas incríveis com pessoas normais como você. Aquele disco que você recomendou? Não achou tão bom. Aquele livro? Era “bonzinho”, mas há melhores. Jamais dirá: “esse autor que você me recomendou se tornou um dos meus preferidos, obrigado” ou “não consigo parar de ouvir aquela música que você me mostrou”. Mas ele gosta muito de recomendar as coisas que ele “descobriu por si”. Às vezes é apenas a recomendação de uma outra pessoa, que pessoalmente ele também trata com certo desdém. Odeia admitir que admira os amigos próximos, porque é tão calhorda que acha que ao elogiar alguém “comum” está se rebaixando. Admirável é o jornalista que recomendou ler Gertrude Stein, não <i>vocêzinho</i> que é metido a intelectual e disse que Mary McCarthy é uma escritora portentosa. Por ser um tipo de arrogante, não merece ódio, mas pena. </div>
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O FÚTIL – Gosta de se atolar na vida das pessoas – dos chefes, dos colegas de trabalho, dos colegas de curso, dos vizinhos – para extrair qualquer coisa curiosa. Gosta de comentar sobre o carro que o vizinho comprou, mas não porque é fã de automóveis, e sim porque em cima disso vai se perder nas questões em série: “como comprou? Por que comprou? Mas com o que ganha poderia comprar? Vai se endividar, só pode”. Faz comentários como “Lucinda é bonita demais para Túlio, devia arranjar outro namorado”, por mais que Lucinda e Túlio sejam muito felizes juntos. Repara se as pessoas têm furos ou manchas nas roupas. Não é idoso e diz aberrações como “Joana está saindo com um moreninho que é até bonito” – quando o “moreninho” é um negro, sem dúvida. Acha que velhos precisam se vestir como estereotipados velhos, gordos têm que se vestir como gordos e chama qualquer excêntrico de “esquisito”. Sente vergonha quando está com alguém “mal vestido”. Adora dinheiro e pessoas com dinheiro. Acha que viver é uma eterna ambição financeira. É difícil falar com ele sobre livros, filmes, música, a menos que sejam os do momento. </div>
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Basicamente, essas são as personas das quais me esquivo. Há outras. E também há aquelas coisas que nos deixam boquiabertos, mas que não são de tamanho suficiente para um rompimento de amizade ou afastamento, como quando um amigo nos cobra os dez centavos que gastamos a mais num café ou nos presenteia com algo sem sentido (uma porcaria barata e feia, porque ele não quis gastar tempo nem dinheiro com o presente). E quem <i>convidar</i> para a festa? Acho que, no fundo, todos nós sabemos quais pessoas nos fazem bem e quais nos fazem mal. O motivo de mantermos tanta gente pavorosa transitando na nossa varandinha e dando pitaco no que fazemos é de ordem cultural: fomos ensinados pelo mundo que a solidão é algo ruim, que todo mundo tem amigos e que as redes sociais só funcionam justamente porque temos um círculo de contatos. Você deve ter contatos. Se não tiver, talvez não saiba lidar com isso, e talvez acabe agravando a situação geral da depressão, um dos grandes males do século. Para mim, é algo difícil de entender: “estou aqui, nesse bar, com essa pessoa modorrenta que não para de falar de si mesma, quando poderia estar em casa vendo um filme; e mais tarde, certamente, tiraremos uma foto para mostrar para todo mundo que estamos por aí, que estamos nos mexendo”. Esse teatro íntimo patético pode ser evitado. Se não sobrar ninguém, isso não será novidade: pessoas louváveis e elegíveis como amigas são raríssimas. Não é à toa que os filósofos se debatem há milênios sobre o problema da amizade: ela é tão excepcional na sua forma verdadeira que aquele que encontra um bom amigo pode se dizer afortunado – é o que diz qualquer filósofo que preste algum bocado. Quem não encontra não precisa se entristecer. Ninguém disse que uma festa não pode ocorrer porque há apenas um convidado nela.</div>
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Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-36185154111935931212016-05-26T17:27:00.001-04:002016-05-26T17:37:50.262-04:00Textos dos outros: A poética da cultura, III - Marshall Sahlins (do livro "Esperando Foucault, ainda", Cosac)<div style="text-align: justify;">
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Antes do texto, breves comentários meus. </div>
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Quando estava numa das faculdades que tentei fazer, Ciências Sociais, Foucault era uma sensação, principalmente nas disciplinas ministradas por professores da área de História, que pareciam querer se travestir dele. Fazer um trabalho acadêmico sem citar alguma coisa de Foucault era como ministrar uma palestra sobre frutas e não citar a banana. O micro-poder e o "tudo é poder, escancarado ou simbólico" parecia capaz de explicar qualquer coisa a que quiséssemos nos referir em artigos científicos. Cheguei a ouvir uma professora dizer para um aluno cheio de referências bibliográficas: "sabe o que está faltando e pode melhorar o seu trabalho? Foucault". </div>
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Eu era jovem e influenciável. Por muito tempo achei que Foucault estava trajando roupas nobres e monárquicas que somente eu não enxergava. Depois que passei a ter horror a prolixos desnecessários e teóricos do tudo, comecei a repudiar o que Foucault representava e as pessoas que ele havia influenciado. Procurei por livros que o criticassem de uma maneira acadêmica que eu não seria competente para adotar. Quase nada havia. No meio do quase nada, um livro do Baudrillard que está esgotado há umas duas décadas: <i>Esquecer Foucault</i> (Rocco). Por estar esgotado, mesmo sendo pequenininho custava uma fortuna na Estante Virtual (muitos vendedores de livros antigos supervalorizam livros que não são mais publicados, mesmo que não exista procura), mas comprei, esperando esclarecimentos classudos para as minhas críticas birrentas. Descobri que quem não aprecia o estilo de escrita de Foucault não tem como gostar do estilo de Baudrillard, tão ou mais fresco. Escrito com a caneta do pedantismo francesinho, <i>Esquecer Foucault</i> é difícil de entender, se é que é para ser entendido: nem <i>maçante</i> é a palavra correta para defini-lo. O outro livro do universo do quase nada é o do esquecido erudito carioca José Guilherme Merquior (esquecido, provavelmente, por causa de seus envolvimentos políticos), que estou esperando chegar da Estante Virtual porque também não é mais publicado: <i>Michel Foucault ou o niilismo de cátedra</i> (Nova Fronteira). A obra, que só saberei se é boa depois da leitura, é chamada por Merquior de "antipanegírico". O neologismo é acertado, já que esse francês tem, até hoje, as botas lambidas por universitários e intelectuais preocupados em nomear os bois, mesmo que estejam numa matilha. </div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjK52D_YpjAKzxBlVa1z3MJn-2hfAJJ0I6Ywog3JzkQ42Y53OIARfwzDR0LhEoqHHarZdQgV_CkoQG9P6YUv2lzndM4z4ON5ODClKW6aIfhxeqSPXa6xI6kmoh4jJX7Kg3kHVEMHyPRfd1a/s1600/esperando_foucault_ainda.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjK52D_YpjAKzxBlVa1z3MJn-2hfAJJ0I6Ywog3JzkQ42Y53OIARfwzDR0LhEoqHHarZdQgV_CkoQG9P6YUv2lzndM4z4ON5ODClKW6aIfhxeqSPXa6xI6kmoh4jJX7Kg3kHVEMHyPRfd1a/s320/esperando_foucault_ainda.jpg" width="223" /></a></div>
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<i>Esperando Foucault, ainda</i> é um livro ao mesmo tempo sério e humorístico do antropólogo americano Marshall Sahlins. Lançado na coleção <i>Portátil</i> da infelizmente finada Cosac Naify, pode ser lido em uma tarde sem filhos. Achei-o por acaso nas promoções dos livros da Cosac que a Amazon tem feito. Nem tudo me interessou nele, mas a parte central, que é a crítica ao delírio pós-modernista do qual Foucault faz parte, é perspicaz e sem rodeios. Num dos curtos textos, Sahlins comenta o modismo dos novos tempos de considerar que tudo pode ser uma cultura, e que qualquer dessas "culturas" merece estudo. Na Universidade de Chicago, um colega de Sahlins ofereceu um curso chamado "<i>blues</i> de Chicago, estudo intensivo de uma cultura". Se o <i>blues</i> de Chicago podia ser chamado de cultura, o futebol americano de Michigan, apreciado por Sahlins, também merecia o mesmo status. Provocador, ele escreveu no quadro de avisos do departamento que ministraria o curso. </div>
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"Devido à impossibilidade da Presença pura, o material do curso consistirá em transmissões de vídeo – consideradas, entretanto, em sua textualidade. Não há pretensão alguma de enunciar uma narrativa-mestra ou totalizada sobre o futebol de Michigan. Quer-se apenas tematizar certas aporias da <i>Power-I formation</i> – ou seja, da subjetividade pós-moderna."</div>
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Era uma piada, é claro. O que Sahlins considerou "assustador"? A quantidade de alunos, mesmo pós-graduandos, que solicitaram a inscrição no curso. Qualquer semelhança com o que ocorre no caso que resultou no ótimo <i>Imposturas intelectuais</i>*, de Alan Sokal e Jean Bricmont (Record, esgotado, mas que pode ser baixado <a href="http://lelivros.online/book/baixar-livro-imposturas-intelectuais-alan-sokal-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/" target="_blank">AQUI</a>), sobre o qual qualquer hora quero escrever umas palavrinhas, não é apenas coincidência. </div>
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*Aos que têm pouco tempo, mas gostam de livros realmente interessantes que façam alguma diferença num universo de meras árvores mortas processadas, recomendo a leitura, pelo menos, da introdução e do capítulo primeiro, sobre Jacques Lacan. Quem puder ler o livro inteiro, ótimo. Para quem não puder, essas partes já são suficientes para entender a proposta. </div>
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Agora, o texto que tive o prazer de digitar para disponibilizar na internet: <i>A poética da cultura, III</i>. </div>
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A corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzscheana com o poder é a encarnação mais recente do incurável funcionalismo da antropologia. Como seus antecedentes estrutural-funcionalistas e utilitaristas, a hegemonização é homogeneização <span style="line-height: 100%;">–</span> a dissolução de formas culturais específicas em efeitos instrumentais genéricos. Tudo o que era preciso saber sobre, digamos, as relações jocosas prescritivas <span style="line-height: 100%;">–</span> sua "<i>raison d'être</i>" <i>même</i> <span style="line-height: 100%;">–</span> era que contribuíam para a manutenção da ordem social, do mesmo modo que as cerimônias totêmicas ou a magia agrícola organizavam a produção alimentar. Agora, porém, no lugar da "solidariedade social" ou da "vantagem material", o "poder" é o buraco negro intelectual para o qual todo e qualquer conteúdo cultural acaba sendo sugado. Repetidamente fazemos essa barganha idiota com as realidades etnográficas, abrindo mão do que sabemos sobre elas a fim de compreendê-las. Como disse Sartre sobre um certo marxismo vulgar, somos impelidos a tomar o conteúdo real de um pensamento ou ato como mera aparência, e, tendo dissolvido esse particular em um universal (no caso, no interesse econômico), comprazemo-nos em acreditar que reduzimos a aparência à verdade. Max Weber, criticando certas explicações utilitaristas dos fenômenos religiosos, observou que o fato de uma instituição ser relevante para a economia não significa que ela seja economicamente determinada. Mas, se seguirmos Gramsci e Foucault, o atual neofuncionalismo do poder afigura-se ainda mais completo: como se tudo o que pudesse ser relevante para o poder fosse poder.</div>
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Assombrosa, então, vem a ser a variedade de coisas que os antropólogos podem agora explicar em termos de poder e resistência, hegemonia e contra-hegemonia. Digo "explicar" porque o argumento consiste inteiramente em categorizar a forma cultural em pauta em termos de dominação, como se isso desse conta dela. Eis aqui alguns exemplos, extraídos dos últimos anos de <i>American Ethnologist</i> e <i>Cultural Anthropology</i>:</div>
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1. Apelidos em Nápoles: "prática discursiva empregada para construir uma representação particular do mundo social, [o ato de conferir apelidos] pode tornar-se um mecanismo para reforçar a hegemonia de grupos nacionalmente dominantes sobre grupos locais que ameaçam a reprodução do poder social" [Fora!: não se sabe o que há em um nome, quanto mais em um apelido...].</div>
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2. Poesia lírica beduína: esta é contra-hegemônica [Viva!].</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
3. Moda feminina em La Paz: contra-hegemônica [Viva!].</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
4. A categorização social de escravos libertos dominicanos como "camponeses": hegemônico [Fora...].</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
5. O sistema andino de <i>fiestas</i> no período colonial: hegemônico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
6. A "espiritualidade" construída das mulheres bengalesas de classe média, tal como expressa em sua dieta e vestimenta: nacionalismo hegemônico e patriarcado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
7. Certos pronomes vietnamitas: hegemônicos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
8. Lamento funerário dos índios Warao, Venezuela: contra-hegemônico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
9. Construção de casas na base do "faça-você-mesmo" por trabalhadores brasileiros: uma prática aparentemente contra-hegemônica que introduz uma hegemonia ainda pior.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
10. O humor físico e escatológico dos homens desempregados da classe trabalhadora mexicano-americana: "uma ruptura opositiva na hegemonia alienante da cultura e da sociedade dominantes".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
11. Senso comum: "pensamentos e sentimentos de senso comum não necessariamente tranquilizam uma população inquieta, mas podem incitar à rebelião violenta, ainda que contida".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
12. O conceito de cultura como totalidade sem falhas e o de sociedade como entidade de fronteiras bem marcadas: ideias hegemônicas que "mascararam efetivamente a miséria humana e abafaram as vozes dissidentes".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
"Uma hiperinflação de significância" seria outra maneira de descrever esse novo funcionalismo que traduz o aparentemente trivial no politicamente retumbante por meio de uma retórica que, tipicamente, lança mão de um dicionário de nomes e conceitos modernosos, muitos deles franceses, uma verdadeira <i>La Ruse</i>* do pós-modernismo. Evidentemente o efeito final, ao invés de amplificar a significância dos apelidos napolitanos ou dos pronomes vietnamitas, trivializa termos como "dominação", "resistência", "colonização", e mesmo "violência" e "poder". Privadas de referência real-política, essas palavras tornam-se puros valores, cheios de som e fúria, que não significam nada... exceto o falante.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
* Jogo de palavras entre <i>Larousse</i>, o dicionário, e "<i>la ruse</i>", "a manha" ou "a astúcia". [N. T.]</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em SAHLINS, Marshall. <b>Esperando Foucault, ainda</b>. São Paulo: Cosac Naify, 2013. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Há, ainda, uma resenha de Lilia Moritz Schwarcz sobre o livro: <a href="http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/a31v1123.pdf" target="_blank">AQUI</a>.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-66559665614093134472015-09-08T08:28:00.003-04:002015-09-10T06:45:09.574-04:00A biblioteca esquecida de Hitler - Timothy W. Ryback<div style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="color: #666666;">“Ele foi, é claro, um
homem mais conhecido por queimar livros do que por colecioná-los.
Contudo, na época de sua morte, aos 56 anos, estima-se que possuísse
cerca de 16 mil volumes. Em qualquer medida, uma coleção
impressionante: primeiras edições das obras de filósofos,
historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas”.</span></div>
<span style="color: #444444;">
</span>
<br />
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Este homem é Adolf
Hitler, e é assim que começa o prefácio do interessante <i>A
biblioteca esquecida de Hitler: os livros que moldaram a vida do
Führer</i>, do historiador Timothy W. Ryback. Comprei esse livro em
julho de 2013 (costumo anotar no livro a data de compra), mas o li
apenas agora (e pretendo começar a anotar no livro a data de leitura
embaixo da data de compra, para que no futuro eu não me perca na
minha própria história como leitora), em agosto. O título é
chamativo, e talvez alguém possa se perguntar por que não li esse
livro antes de saborear a recomendação feita pelo colunista e
cientista político português João Pereira Coutinho, na <i>Folha</i>,
mas eu tenho em casa tantos livros não lidos (todos aparentemente
bons; não cometo mais o erro de comprar livros ruins por puro
colecionismo) que ficava difícil uma obra sobre Hitler reaparecer na
lista de leituras próximas. Eu sabia que leria esse livro quando
voltasse a ler sobre Segunda Guerra Mundial. Na última vez em que
procurei me “especializar” nesse assunto, estava no último ano
do ensino médio e tomei emprestada uma porção de livros do tipo na
biblioteca do colégio, além de ter comprado uma ou outra coisa no
sebo. De lá para cá, li algumas coisas sobre Hitler e Segunda
Guerra, mas nada tão intensivo. O tema sempre me instigou, mas eu
tinha duas pulgas atrás de cada orelha sobre ele: primeiro, há
muita gente bronca que não estuda nada de história, mas sente
fascínio – um fascínio quase fetichista – sobre a II Guerra, e
isso me desestimulava; segundo, conheci um ou outro (por que estou
sendo aveludada?, conheci vários) patife que foi cursar História
porque “gostava da II Guerra Mundial” e pretendia, já no final
da graduação, escrever monografias sobre: e, não, não era
vinculando a participação brasileira na II Guerra – era mesmo um
pensamento calouro de quem não atenta que pesquisa acadêmica não é
trabalho escolar em que você escreve um “estudo” sobre Hitler
sem saber inglês, sem saber alemão e sem sair do conforto da sua
morada numa cidade do interior. (Também cometi esse erro primário:
cheguei à faculdade de Ciências Sociais – que não finalizei –
jurando que meu trabalho de conclusão de curso seria provando que
Deus era uma farsa. Felizmente, já nos primeiros meses alguns
professores realistas, jardineiros da selva de pedra, vieram com suas
tesouras de poda e me colocaram no lugar de raminho novo que eu era.)
Evitando um pouco a II Guerra, eu estava fugindo do tema que é o
pretinho básico da história, o tema que é escolhido como pauta de
interrogatório quando você conta a leigos que é formado em
História: ninguém quer saber por que a Princesa Isabel assinou a
Lei Áurea ou se o estudo de Peter Gay sobre Freud é respeitado
entre historiadores renomados – todos querem entender o nazismo.
Para parecer um singular historiador entre não-historiadores, basta
apostar a maioria das fichas nisso. Mussolini não exerce nem um
quinto do encanto de Hitler. Nem Stálin, outra aberração política
que mereceria o mesmo espanto.<br />
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Quando a II Guerra
chegava ao fim e Hitler se preparava para a derrota do modo mais
eficiente possível – cometendo suicídio –, milhares de livros
seus eram deixados para trás. Terrivelmente, a maioria foi queimada
ou sumiu. O trabalho de reconstituição de personalidade que
historiadores passaram a fazer baseados nas leituras do antigo Führer
apresentou inúmeras lacunas, e certamente muitos livros essenciais –
livros com “intromissões a lápis”, na ótima expressão de
Ryback – ficaram entre os sumidos. Pior: devem ter ficado entre os
queimados. Um livro sumido é recuperável, tanto é que muitos
livros de Hitler surrupiados por soldados americanos e soviéticos
foram devolvidos posteriormente para bibliotecas temáticas e
arquivos, mas um livro queimado não pode ser estudado: o fato de o
corpo do ditador ter sido queimado após o suicídio impediu que
estudiosos o dissecassem (do ponto de vista dos nazistas, foi sábio
cremá-lo antes que as forças inimigas pudessem ostentá-lo como
troféu e dispor dele como bem entendessem), assim como a ausência
desses livros queimados nos impede de entender a plenitude da
influência que Hitler, um leitor assíduo, sorveu de cabeças
alheias. </div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtDNd1azbCVHURuBQHRSgbyYScAkgZeATxaHW9A_oVr3G3RDP-qX99zY7vAF3V0Bx8zD4mfOYXeQMnrF2sqMuJl5NHAszUReOwHVkdNy1b2g3BSZqnnUZJALuLynamLYFgLbH2s9bfG2Lk/s1600/biblioteca_hitler.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtDNd1azbCVHURuBQHRSgbyYScAkgZeATxaHW9A_oVr3G3RDP-qX99zY7vAF3V0Bx8zD4mfOYXeQMnrF2sqMuJl5NHAszUReOwHVkdNy1b2g3BSZqnnUZJALuLynamLYFgLbH2s9bfG2Lk/s320/biblioteca_hitler.jpg" width="208" /></a></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<i>A biblioteca esquecida
de Hitler</i> perfaz a história do Führer desde 1915, quando ele
era cabo do 16º Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro, então
com 26 anos, até sua morte, em 1945. A busca de Hitler por vingança
– não somente por causa da humilhação sofrida pela Alemanha após
a Primeira Guerra, mas também pela falida vida pessoal –, sua
importância dentro do Nacional-Socialismo que surgia, a ascensão ao
poder e as decisões militares tomadas no decorrer da Segunda Guerra
fazem sentido nessa obra quando vinculadas a leituras,
principalmente. Não é uma história genérica sobre o Nazismo, mas
uma história de como <i>livros</i> ajudaram a construir um dos
capítulos mais negros da história mundial. Ao escrever um capítulo
dedicado ao que seria o terceiro livro de Hitler (<i>Mein Kampf</i>
teve dois volumes, um sobre vida pessoal e outro sobre política,
lançados em tempos diferentes e por isso considerados como dois
títulos) – livro que ele, Hitler, ficou aliviado de não ter
publicado porque teria atrapalhado sua guinada no governo – Ryback
escreve brevemente sobre o momento da ascensão:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Um ano após completar
o que se tornaria o Alvo nº 589, Hitler viu suas possibilidades
políticas, tão sombrias no verão de 1928, mudarem drasticamente.
Em 3 de outubro de 1929, Gustav Stresemann sofreu um violento ataque
cardíaco. Três semanas depois, a Bolsa de Nova York despencou, e
com esta a economia alemã. A popularidade de Hitler disparou. Não
mais ocioso pela marginalização política, Hitler abandonou a
carreira de escritor. Em três breves anos, se tornaria chanceler da
Alemanha”. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Esse trecho encerra um
capítulo. Quem quiser saber mais detalhes da transição de Hitler
das sombras para a cabeça do governo terá que procurar outras
bibliografias. Não é, portanto, um livro sobre a II Guerra. É um
livro sobre livros, com a II Guerra como pano de fundo da maior parte
dos capítulos.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Um autor que acompanha
todo o livro é Walter Benjamin e seu ensaio <i>Unpacking my library:
a talk about book collecting</i>. Pensei que não fosse encontrá-lo
em português, até porque não me lembro de ter ouvido falar de
algum texto do Benjamin sobre coleções de livros, mas existe: o
ensaio está na compilação <i>Obras escolhidas II: rua de mão
única</i>, lançada pela Editora Brasiliense. Já encomendei, e já
sei de quase tudo que trata, pois Ryback busca uma porção de
excertos desse texto para basear o sentido da existência de
bibliotecas particulares, a relação entre o colecionador e seus
livros e como tudo isso tem a ver com Hitler. Benjamin era um
adorador de livros. Consequentemente, um colecionador. Faz todo
sentido (e cria um notável embelezamento) que Ryback vá tomando
aquele ensaio para abrir e fechar assuntos, costurando-os:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Walter Benjamin certa
vez disse que dá para saber muita coisa sobre um homem pelos livros
que ele mantém: seus gostos, seus interesses, seus hábitos. Os
livros que guardamos e os que descartamos, os que lemos bem como os
que decidimos não ler, dizem algo sobre quem somos. Como um judeu
alemão crítico da cultura nascido numa época em que era possível
ser 'alemão' e 'judeu', Benjamin acreditava no poder transcendente
da <i>Kultur</i>. Acreditava que a expressão criativa, além de
enriquecer e iluminar o mundo que habitamos, também proporciona a
argamassa cultural que liga uma geração à próxima, uma
interpretação judaico-germânica do antigo ditado <i>ars longa,
vita brevis</i>”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
É possível saber muito
sobre Hitler analisando a biblioteca que expandiu ao longo dos anos,
vendo os livros em que fez questão de se intrometer com seu lápis –
marcando trechos, colocando pontos de exclamação ou de interrogação
ao lado de parágrafos –, os livros que não apresentam muitas
intromissões, mas possuem sinais de manuseio, e os livros que não
leu. Os livros que não leu foram inúmeros, até porque muitos deles
só se juntaram à coleção como oferenda: além disso, havia um
filtro para esses presentes que o Führer deveria receber, e só uma
parte do que queriam dar a ele chegava, de fato, ao seu acervo (sem o
filtro de assessores, a montanha seria muito maior). Em dado momento,
Benjamin é revivido em sua análise para nos lembrar que
dificilmente os bibliófilos leem todos os livros de suas coleções
– na verdade, segundo estima Benjamin, e de acordo com “fontes
confiáveis”, esses colecionadores costumam ler apenas dez por
cento das obras que possuem. Ocorre que a análise feita em cima do
acervo de Hitler que restou deixa passar inúmeros livros que devem
ter sido queimados, mas que foram fundamentais na vida do ditador.
Hitler não leu dez por cento dos livros que pesquisadores estudam,
já que boa parte dos livros desapareceu, e sim dez por cento de uma
biblioteca que só podemos supor. Há uma avaliação de Ryback
(avaliação que João Pereira Coutinho faz questão de frisar em sua
coluna para mostrar que Hitler, apesar de ávido leitor, lia muitas
coisas medíocres e não se aprofundava em filosofia, por exemplo)
que considero um pouco receosa: a de que Hitler só usou nomes como
Nietzsche e Schopenhauer de forma superficial em seus discursos e
elogios, e que associá-lo com eles é um tanto suspeito.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Embora não haja razão
para duvidar que possuía exemplares das obras de Schopenhauer,
encontrei um só volume desse filósofo entre os livros remanescentes
de Hitler, uma reedição de 1931 de uma tradução feita por ele de
<i>A arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso</i>, do jesuíta
do século XVII Baltasar Gracían. Essa edição em encadernação
barata, de 92 páginas, é tão modesta no tamanho que o ex-libris de
Hitler preenche toda a contracapa. O indício mais sólido da
centralidade de Schopenhauer na vida de Hitler é o busto do filósofo
descabelado que Hitler exibia em uma mesa no seu escritório em
Berghof”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
O que eu me pergunto é:
seria Hitler tão pedante a ponto de colocar, em seu escritório, o
busto de um filósofo que ele mal leu? O fato de Hitler ser odioso
moralmente não faz com que ele seja automaticamente absurdo em
outras searas. Tratando-se de um leitor crônico, também fica
difícil suspeitar que ele, como tantos, se aproveitou de uma figura
e louvou essa figura até em pequena estátua por pura vaidade
fraudulenta. Sendo ele uma pessoa que não lê, eu não duvidaria da
empáfia desse oportunismo intelectual. Como era um leitor contumaz,
apenas acho que se poucas obras de autores que ele tanto citava, como
Schopenhauer e Nietzsche, foram encontradas, pode ser porque elas
estavam entre os livros perdidos.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Leni Riefenstahl, atriz e
cineasta que dirigiu, em 1934, o tributo ao Partido Nazista <i>Triunfo
da vontade</i><span style="font-style: normal;">,</span> e, pouco
depois, <i>Olympia</i>, o documentário em duas partes sobre os Jogos
Olímpicos de Berlim de 1936, foi, por muitos anos, estimada por
Hitler. Segundo conta, teve uma desavença com ele ao comentar sobre
alguns amigos judeus que estavam tendo problemas com o governo, mas
desculpou-se por sua intromissão em assuntos políticos
presenteando-o com a primeira edição das obras completas de Fichte,
encadernadas em couro branco. Foi ela uma das fontes que assegurou o
gosto de Hitler por Schopenhauer:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Riefenstahl
proporciona um relato igualmente eloquente, mas contraditório.
'Tenho muita coisa a pôr em dia', Riefenstahl lembra que Hitler
contou no conforto guarnecido de livros de seu apartamento na praça
Príncipe Regente. 'Na minha juventude, não tive os meios ou a
possibilidade de obter uma educação adequada. Toda noite leio um ou
dois livros, mesmo quando vou para a cama tarde'. Ele disse que
aquelas leituras constituíam sua fonte básica de conhecimentos, a
essência de que derivava seus discursos públicos. 'Quando se dá
também se precisa tirar, e eu tiro o que preciso dos livros', ele
disse. Quando Riefenstahl perguntou a Hitler o que gostava de ler,
ele teria respondido: 'Schopenhauer'.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">'Nietzsche não?',
Riefenstahl perguntou.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">'Não, não consigo
aproveitar muito Nietzsche', Riefenstahl lembra que Hitler respondeu.
'Ele é mais artista do que filósofo; falta-lhe a compreensão
cristalina de Schopenhauer. Claro que valorizo Nietzsche como um
gênio. Ele escreve talvez a linguagem mais bonita que a literatura
alemã pode oferecer atualmente, mas não é o meu guia'”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Páginas antes, Ryback
coloca uma nota de rodapé comentando que Steven Bach, autor de uma
recente biografia de Leni Riefenstahl, sugere a necessidade de
cautela com os relatos dela, já que era “uma narradora nada
confiável”. Eu inquiro: mas o que ela teria a ganhar mentindo
sobre isso? Pessoas mentirosas, desde que não sejam mitômanas,
costumam mentir para se livrar de um problema, para criar problemas
para outros ou para conseguir alguma coisa. Se fosse para
Riefenstahl, narcisista, mentir sobre algo, talvez preferisse mentir
sobre seus feitos ou dizendo que chegara a se preocupar com a
situação dos judeus na época do nazismo. Mas de que problema ela
estaria se livrando ou que coisa ela conseguiria inventando o diálogo
que teve com Hitler sobre Nietzsche e Schopenhauer?</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Outra razão para Ryback
considerar que Hitler não fora um grande leitor de Schopenhauer foi
o fato de ter encontrado o nome do filósofo grafado de forma errada
em “anotações sobreviventes de discursos manuscritos”, com dois
“p”: “Schoppenhauer”. Como é que alguém que admira tanto um
teórico não sabe escrever o nome dele? Mas parece que não era
privilégio de sobrenomes germânicos complicados receberem má
escrita de Hitler, pois mesmo palavras simples eram grafadas de
maneira incorreta. O Führer chegou a escrever erros que seriam
equivalentes ao nosso “prizão” e “presado”, palavras que
eram corriqueiras nos livros que lia. Nem sempre quem lê vorazmente
presta atenção no que lê, na formação das palavras e na
composição das sentenças. Hitler, leitor, tinha problemas com a
ortografia de seu idioma e não dera muito certo como escritor: <i>Mein
Kampf</i> teve que passar por severa revisão antes de ser publicado.
Por isso, humildemente, não considero que grafar erradamente o nome
de Schopenhauer seja forte indício da falta de leitura e que a
apropriação de saber foi rasa.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Há, claro, algumas
situações estranhas, mas são estranhas como a humanidade. Por
exemplo, o fato de Hitler admirar tanto Fichte. Como Hitler poderia
admirar Fichte <i>e</i> Schopenhauer se Schopenhauer possui bons e
claros textos desprezando completamente a contribuição de Fichte
para a filosofia? Seu ódio por Fichte talvez só fosse menor que seu
ódio por Hegel, então será que isso não seria um indício de que
Hitler não leu Schopenhauer de verdade? Essa questão é minha, não
está no livro. Mas Ryback apresenta outra coisa que pode depor
contra o Hitler schopenhaueriano: diz-se que ele levara <i>O mundo
como vontade e representação</i> para ler no <i>front</i> enquanto
era estafeta. Ryback duvida que ele tenha perambulado em meio à
guerra com um calhamaço daqueles. Mas eu volto a perguntar: e por
que isso desabonaria o possível gosto de Hitler por Schopenhauer? Eu
mesma não li essa obra (tenho-a há anos, mas permanece na estante
como um livro inescrutável para o qual ainda não me sinto
preparada) e me considero no direito de me declarar uma amante de
Schopenhauer “somente” porque li e reli todas as belas
compilações que a Martins Fontes publicou das ideias dele. Não é
preciso ler toda a obra de alguém para se poder declarar, com
justiça, admirador desse alguém. Talvez Hitler não gostasse de
colóquios muito metafísicos e preferisse o Schopenhauer que fala
sobre matérias de ordem prática. Logo, não vejo como mesmo essas
situações pontuadas por Ryback podem <i>quase provar</i> que Hitler
era uma fraude em suas menções ao filósofo como um de seus
mentores intelectuais.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Como apreciadora de
Schopenhauer, é claro que eu não acho agradável que eu mesma
esteja forçando as pessoas a acreditar que Hitler, um ditador
megalomaníaco que estava disposto a matar milhões de pessoas para
alcançar seu ideal de povo superior, também apreciava Schopenhauer.
Mas história é isso: ela é o que é, e não o que queremos, com
nosso moralismo e nossas desculpas, que ela seja. Já reparei em
alguns bons livros de escritores mais antigos que costuma haver uma
vontade do editor e do tradutor para fazer com que nós, leitores,
perdoemos autores que tinham pensamentos antiéticos no passado.
Explico: peguemos, por exemplo, um livro de Nietzsche, uma passagem
em que ele deixa bem claro, talvez, que considera as mulheres
inferiores. Não tardaremos encontrar comentaristas e estudiosos
revolvendo outros fatos da vida dele que mascarem essa discriminação.
Você lerá ou ouvirá desses aduladores: “apesar desta passagem
parecer preconceituosa, na verdade Nietzsche não pode ser chamado de
machista, pois em outro momento, ao encontrar uma mulher inteligente,
ele disse que mulheres podem ser etc.” Isso é só um exemplo. Meu
ponto aqui é mostrar que amamos tanto certos teóricos que queremos
sacralizá-los. “Nesta passagem, Schopenhauer parece mostrar asco
por índios, chamando-os de primitivos, mas há um outro momento em
que ele elogia comunidades indígenas etc”. Tenta-se poupar
Schopenhauer de qualquer fiapo que ligue um filósofo que respeitamos
a um juízo antiquado que depreciamos. Tenta-se poupar qualquer
sujeito canonizado de qualquer maculação muito severa, sendo
“desculposo” em nome de um autor antigo que vivia em outra
sociedade, numa outra época, com outro espírito social. Como mulher
que lê Nietzsche no século XXI, sinto-me mal ao ler as más
referências que ele faz ao meu sexo? Concordar, não concordo, mas
não passo mal, nem de longe. Eu entendo que ele vivia em outro
universo e não tinha obrigação de ser pioneiro em tudo, não era
todo o assunto que ele abordava que precisava se transformar em ouro.
Passar mal eu passaria se alguém que vive na mesma sociedade que eu
levantasse aquelas ideias como se fossem teses perfeitamente
aplicáveis a este tempo. Ao tentar, com insistência, poupar
Nietzsche e Schopenhauer de terem sido lidos por Hitler, acho (apenas
<i>acho</i>) que Ryback está fazendo como tantos estudiosos que
temem macular nomes sagrados ligando-os a discípulos pérfidos. Esse
mau julgamento social por causa da vinculação entre um e outro não
deveria querer dizer nada, pois Schopenhauer não tem culpa daqueles
que o leram, e se o leram errado. Ryback mesmo aponta em alguns
episódios que Hitler era um leitor estúpido porque procurava nos
livros meras ratificações melhor teorizadas para aquilo que ele já
pensava. Não era um leitor de mente aberta disposto a mudar suas
opiniões caso argumentos fundamentados provassem que ele estava
equivocado. Na idade adulta, colhia o que já estava disposto a
colher, não demonstrava alterar radicalmente o que reputava: já
tinha uma ideia troncal e os livros só permitiram que a partir disso
ele desenvolvesse galhos. Assim, se leu Schopenhauer, deve ter
passado por diversos pareceres que execrou. Roubou o que queria e
moldou sua oratória com isso. Não cabe a ninguém querer sofrer com
essa ligação tortuosa, posto que em nenhum lugar de sua obra
Schopenhauer, por mais misantropo que fosse, defendeu genocídio
(pelo menos até onde li). Se fosse o caso, talvez pudéssemos nos
alarmar. Mas se fosse <i>mesmo</i> o caso, provavelmente Schopenhauer
nem teria adquirido a grandeza que adquiriu.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
***</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Max Osborn era um crítico
de arte alemão aclamado no começo do século XX. Em 1915, ocioso em
sua posição de soldado-mensageiro por causa de forte chuva, Hitler
adquiriu o livro <i>Berlim</i>, de Osborn, que tratava da história
arquitetônica da cidade. Em vez de comprar cigarros, aguardente ou
gastar com mulheres, preferiu usar quatro marcos para comprar um
livro, escolha de lazer atípica para um cabo da linha de frente.
Efetuada a compra, marcou timidamente seu nome, local e data no canto
superior direito da contracapa: “A. Hitler, Fournes 22/novembro,
1915”. A personalidade de Osborn é pitoresca, logo, instigante.
Irreverente, escreveu uma história cultural de Satã, em que chamava
os anjos de “as mais enfadonhas das criaturas de Deus”. Em sua
época, já criticava certa frivolidade dos populares:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Em 1908, quando a
editora Seeman Verlag solicitou a Osborn que escrevesse um guia de
Berlim, ele concordou mas sob o pressuposto de que era um crítico de
arte, não um guia turístico. Desse modo, recebeu o leitor em seu
<i>Berlim</i> com a advertência maldosa: por que seu editor
incluiria essa cidade entre as 'capitais culturais' da Europa quando
'o que o mundo do século XX acha mais fascinante na capital do Reich
alemão não é exatamente a beleza de seus monumentos históricos ou
de sua rica herança cultural'?”
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Crítico de arte, passou
a temporariamente ser crítico de guerra. Ao ver um mensageiro
galopando num cavalo pelo campo aberto, comparou a cena em que homem
e animal usavam máscaras contra gás a uma tela de Hieronymus Bosch.
Ficou horrorizado ao ver tantos corpos humanos em decomposição, com
ratazanas se alimentando deles. Lugares antes encantadores tinham se
transformado em imagens de horror: “simplesmente incompreensível”,
escrevera.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
O exemplar de Hitler de
<i>Berlim</i> está completamente desgastado, sinal de que foi lido
com entusiasmo por aquele soldado que tinha tantas ambições
artísticas. Muito do ideal estético nazista faz menções indiretas
aos gostos de Osborn: se Hitler realmente começou a pensar que a
Alemanha deveria ser “depurada” de “elementos estrangeiros”
nas artes a partir da leitura do crítico – também adepto de
expressões mordazes para se referir a essas contaminações, como
“selvageria do gosto” ou “profusão de pragas artísticas” –,
não está claro no livro de Ryback, mas a ideia de ambos nesse
âmbito parece casada, já que Osborn também louvava a Grécia
revivida em território prussiano, como ele considerava o caso do
Portão de Brandemburgo. (Para entender rapidamente o apreço
estético consagrado na ditadura nazista, recomendo o conhecido
documentário <i>Arquitetura da destruição</i>.)</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
No mesmo livro, Osborn
utiliza um capítulo de trinta páginas “sobre Frederico, o Grande,
o lendário rei-guerreiro do século XVIII que consolidou a primazia
da Prússia como potência militar” (palavras de Ryback). Frederico
se tornaria o futuro ídolo de Hitler, mas Osborn se põe a
criticá-lo: chama o monarca de intrometido, avarento, “filho total
da mediocridade artística de sua época”, mais preocupado com a
beleza das próprias perucas que com as construções públicas. O
desmoronamento da igreja do Gendarmenmarkt é narrado com prazer
especial: o rei obrigou os construtores a encerrarem a obra em metade
do tempo previsto e com orçamento reduzido; quando os operários
estavam terminando o telhado, as paredes da igreja desabaram, matando
quarenta deles. Osborn comenta sobre o jocoso livreto <i>Sinto muito</i>
escrito pelos cidadãos berlinenses, defendendo a irônica teoria de
que as paredes haviam sido construídas com pão de mel em vez de
pedras. Esse capítulo tem claros sinais de manuseio e exame
cuidadoso da parte de Hitler. Nem por isso o futuro ditador alemão
deixou de louvar e tomar Frederico como referência de liderança.
Assim, esse caso ajuda a responder a pergunta que fiz lá em cima
sobre se o fato de Hitler adorar Fichte e Schopenhauer – sendo que
Schopenhauer desprezava Fichte com convicção – poderia ser um
sinal de que alguém não foi realmente lido desses dois. Hitler
parece ter adotado diversas ideias de Osborn, mas não a desse
capítulo em particular que pretendia inspirar menosprezo por
Frederico. Com certeza admirou muitos homens responsáveis pelos
livros que lia, mas de maneira seletiva.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
O capítulo sobre Osborn
(capítulo chamado de <i>Livro 1: </i><i>Leituras da linha de frente,
1915</i>), encerra com alguns parágrafos interessantes, deixados
providencialmente para o final. Ryback frisa que o exemplar de <i>Berlim</i>
pertencente a Hitler seria guardado com ele para o resto da vida e:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Na segurança
protetora da coleção de Hitler, esse volume sobreviveu à queima de
livros de maio de 1933 – como judeu, Osborn constava da lista dos
autores proibidos e acabou emigrando para os Estados Unidos – e aos
bombardeios subsequentes dos Aliados na década de 1940”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Esse é aquele momento da
leitura em que você para, pousa o livro no colo e digere tudo que
veio antes de forma diferente por causa da inserção de uma
informação essencial que dá um novo tom ao capítulo a ser
findado. É aquele momento em que você tem vontade de largar o livro
para dar um passeio reflexivo. Ryback poderia nos ter dito que Osborn
era judeu lá nos primeiros parágrafos. Ciente de como mostrar ao
leitor o que ele deve sentir e em qual instante da leitura é preciso
demonstrar esse sentimento, deixou o impacto para o final. Não vale
somente para a literatura: um livro é valioso não somente pelo que
informa, mas como informa.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
***</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<i>A biblioteca esquecida
de Hitler</i> certamente abriga inúmeras histórias valiosas sobre
os autores que Hitler leu, as pessoas com quem fez amizade – e que
acabaram influenciando suas leituras com recomendações –, sua
atitude diante do desenrolar da guerra. Não me cabe aqui resumir
todos esses causos, até porque não quero que ninguém perca a
vontade de ler o livro por ele já estar todo revelado em estrutura
nesta postagem, então vou me ater a apenas mais um capítulo
escolhido ao acaso (já que todos me interessaram muito – exceto
aquele sobre misticismo, e percebi que não me interessara por ele
porque páginas e páginas se passaram e não senti vontade de
acentuar nada com minha lapiseira). É o capítulo 3º, <i>A trilogia
de Hitler</i>, sobre a escritura do <i>Mein Kampf</i>.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Na noite de 8 de novembro
de 1923, Hitler surgiu numa cervejaria de Munique dando um tiro de
pistola no teto, anunciou uma revolução nacional e sob a mira de
armas obrigou a liderança política da cidade ali reunida a jurar
fidelidade. Na manhã seguinte, marchou com 2 mil radicais de direita
para o centro de Munique, pretendendo reproduzir a marcha de
Mussolini sobre Roma que possibilitou a ascensão do governo
fascista. Na praça Odeon, foram recebidos a tiros por um cordão
militar. Dezesseis morreram. Hitler foi preso três dias depois.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Quase imediatamente,
Kahr, Seisser e Lussow [<i>os membros da liderança política local</i>]
se afastaram do empreendimento fracassado. Alegaram ter tentado
dissuadir Hitler de realizar o golpe, o que era verdade, e que ele os
coagira a cooperar sob a mira de armas, o que também era. Hitler
alternou-se entre a perplexidade e a raiva pela 'traição' deles.
Primeiro cogitou suicidar-se, depois realizou uma breve greve de
fome, e enfim decidiu 'ajustar contas'”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
O ajuste de contas
começou com um texto de sessenta páginas que serviu para sua defesa
perante o tribunal. Encerrou dizendo que seria absolvido pela
história (pelo visto, uma expressão recorrente entre ditadores que
esperam justificar atrocidades). Depois, recebendo a regalia de ter
luz acesa durante a noite na prisão, começou a fazer leituras que
embasariam a obra pela qual é conhecido, obra que inicialmente se
chamaria <i>Uma batalha de quatro anos e meio contra mentiras,
estupidez e covardia</i>, mas que mudara de nome graças à sugestão
de Max Amann, empregado na editora do Partido Nazista. Essas leituras
seriam chamadas por ele de “formação superior às custas do
Estado”, já que, de certo modo, parecia nutrir ressentimento por
não ter podido prosseguir seus estudos formais. Além de escrever o
livro por motivação vingativa, Hitler também o fez para se livrar
de dívidas financeiras, principalmente aquelas que contraíra com o
assessor jurídico que o ajudara a preparar a defesa em seu
julgamento. Assim, contava com um alto número de vendas quando seu
trabalho fosse publicado.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Henry Ford foi uma das
maiores inspirações de Hitler no combate aos judeus:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Além do perfil racial
do povo alemão, de Günther, outra influência importante sobre o
conteúdo intelectual de <i>Mein Kampf</i> foi uma tradução alemã
de <i>O judeu internacional</i>, de Henry Ford. Embora não
disponhamos mais do exemplar pessoal de Hitler da tradução em dois
volumes do execrável tratado racista, sabemos que Hitler possuía
uma, assim como um retrato do autor, ao menos um ano antes de começar
a redigir <i>Mein Kampf</i>. 'A parede junto à escrivaninha no
escritório particular de Hitler está decorada com um retrato grande
de Henry Ford', informou o New York Times em dezembro de 1922. 'Na
antecâmara, uma mesa grande está coberta de livros, quase todos
sendo uma tradução de um livro escrito e publicado por Henry Ford'.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">O livro de Ford havia
sido publicado naquele ano em alemão sob o título <i>Der
internationale Jude: Ein Weltproblem</i>, e foi uma sensação
imediata. 'Li-o e me tornei antissemita', recordou Baldur von
Schirach, o futuro líder da Juventude Nazista, que era adolescente
quando surgiu o livro de Ford. 'Naquela época aquele livro causou
uma impressão tão profunda nos meus amigos e em mim porque víamos
em Henry Ford a imagem do sucesso, bem como o expoente de uma
política social progressista'”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
A adoração a Ford
também se mostraria na frequente menção a ele nos discursos de
Hitler e sua declaração a um repórter: “considero Ford minha
inspiração”. Eu, que já abomino Ford desde minhas leituras sobre
o nazismo na adolescência, questiono: Hitler teria sido menos
nefasto caso o empresário de carros não tivesse existido? É claro
que naquele tempo havia muito material anunciando, às escâncaras, o
ódio pelos judeus e a superioridade racial de alguns povos, mas Ford
pareceu muito “didático” e prático em seu livro. Além disso,
muitas pessoas o tiveram em grande crédito e por meio dele passaram
a externar com orgulho um antissemitismo antes retraído. Não duvido
que um sujeito perverso e megalomaníaco como Hitler pudesse se
tornar ainda pior por causa das leituras que levava em consideração
e das quais tirava aprimoramentos de suas ideias. Nada estava tão ruim
que não pudesse piorar no turbulento começo do século XX.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Houve uma série de
adiamentos até que o trabalho de Hitler pudesse ser publicado. Uma
das preocupações de Max Amann era com o fraco mercado de livros da
época: com Hitler ainda proibido de falar em público por causa de
sua condenação, não seria possível fazer comício nas
cervejarias, e com isso se perdia uma grande fonte de venda de
livros. Mas o principal motivo para o adiamento foi o processo de
edição da obra: até sete companheiros de Hitler afirmaram ter
trabalhado no texto antes de seu lançamento. A “formação
superior às custas do Estado” da qual Hitler se vangloriara,
pensando-se um exemplar autodidata, parece não ter surtido efeito na
erradicação de seus constantes erros gramaticais e fragmentos
intelectualmente vazios, cheios de vícios que podiam passar
despercebidos na fala, mas que num livro ficavam gritantes.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“Hanfstaengl recorda
que batalhou com Hitler em torno das setenta primeiras páginas dos
originais, afirmando ter eliminado os 'piores adjetivos' e seu
'emprego excessivo de superlativos', discordando sobre várias
nuances. Quando Hitler escreveu sobre seu 'talento' como pintor,
Hanfstaengl teria censurado: 'Você não pode dizer isso. Outros
podem dizer, mas você mesmo não pode'. Hanfstaengl também observou
'pequenas desonestidades', como o fato de Hitler usar o termo
'funcionário público graduado' para seu pai. Hanfstaengl também
reclamou da natureza provinciana do intelecto de Hitler, que o fez
aplicar um termo como história do mundo – Weltgeschichte – a
'conflitos europeus pouco importantes'. Após essa sessão de revisão
inicial, Hanfstaengl afirma, Hitler nunca mais lhe mostrou nenhuma
parte do manuscrito”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Rudolf Hess e Ilse, sua
esposa, também recordaram a “batalha” que viveram com Hitler e
seu original por meses. Só aos poucos Hitler dera razão às
modificações que se mostravam necessárias em seu manuscrito.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Se Hitler esperava
aclamação pública quando do lançamento do livro, deve ter ficado
decepcionado com o que recebeu. Jornais descreveram sua obra como ato
de suicídio político num artigo intitulado “O fim de Hitler”,
duvidaram da “estabilidade mental do autor” e um crítico
observou que faltou ao recente escritor ajustar contas consigo
próprio. Mesmo pessoas de extrema direita teceram comentários
negativos sobre a obra, ofendendo-se com o antissemitismo exacerbado
que advogava. Um jornal brincou com seu nome e disse que deveria se
chamar “Sein Krampf” (Sua cãibra). O livro, ilegível (no
sentido de que não valia a pena ser lido) para muitos, se tornou
motivo de piada em certos círculos. Mesmo assim, Hitler não se
deixou capitular: presenteou muitas pessoas com sua obra e passou a
trabalhar no segundo volume dela. Em pouco tempo terminara a
proposta.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“(...) enquanto o
volume I foi recebido com sarcasmo e desprezo pelos resenhistas, o
volume 2 foi simplesmente ignorado – não apenas pelos críticos,
mas pelos leitores também. Vendeu menos de setecentos exemplares
após um ano no mercado”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Pouco tempo depois, já
estava escrevendo seu terceiro livro, que nunca seria publicado: um
livro sobre suas memórias de guerra, inspirado nos relatos de Ernst
Jünger (um dos livros dele sobre o tema, <i>Tempestade de aço</i>,
foi publicado pela Cosac). O livro era mais comedido e analítico que
os anteriormente escritos, tentando ser filosófico de maneira
eclética. As ideias são apresentadas sem referências às fontes,
mas é possível perceber uma colcha de pensamentos de um leitor que
lia tudo. Ryback aposta em dois motivos para o livro não ter sido
finalizado: primeiro, porque Hitler voltou à atividade política
intensa – e seus momentos de escrita só apareciam quando ele
estava em situação de privação, como quando estava preso ou sem
forças políticas –, segundo, porque o mercado de livros estava
fraco e as publicações anteriores do futuro ditador já tinham sido
um fracasso no mercado.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #666666;">“O próprio Hitler pode
também ter reconhecido as falhas intrínsecas na estrutura eclética
e irregular do livro ou possivelmente suas limitações como
escritor. 'Que belo italiano Mussolini fala a escreve', Hitler
comentou com seu advogado pessoal e futuro Gauleiter, Hans Frank.
'Não sou capaz de fazer isso em alemão. Simplesmente não consigo
organizar meus pensamentos quando estou escrevendo'. Em comparação
com a obra de Mussolini, Hitler observou, <i>Mein Kampf</i> parecia
um exercício de fantasia 'atrás das grades', pouco mais que uma
'série de artigos para o <i>Völkischer Beobachter</i>'. '<i>Ich bin
kein Schriftsteller</i>', Hitler disse para Frank. 'Não sou um
escritor'”.
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Com o chamado das
obrigações políticas que o levaram a governar a Alemanha, Hitler
nunca mais teve tempo e viço para escrever. Continuou, todavia,
lendo livros até o dia de sua morte.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
***</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Foi muito proveitoso
voltar a ler sobre a II Guerra com <i>A biblioteca esquecida de
Hitler</i>. O livro é sério e bem escrito (há livros sérios,
fidedignos, mas escritos de maneira plástica; ou, pior e
surrealisticamente, há livros cujo estilo nos remete à palavra
“alumínio”, se entendem o que digo), passa por uma fatia de
assunto meio marginal a respeito do nazismo. Não é o único a
escrever sobre os livros de Hitler – Ryback menciona autores de
estudos com o mesmo objetivo –, mas é o que temos à mão
facilmente aqui no Brasil, na bela publicação da Companhia das
Letras. A partir dele, algumas breves e esparsas ponderações:
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Há uma foto de Hitler no
Arquivo de Nietzsche, em Weimar. Muitos tentam ligar Nietzsche ao
antissemitismo, quando, como bem assinala Ryback, antissemita
declarada era a irmã de Nietzsche, cuidadora daqueles arquivos. É
claro que o filósofo alemão inspira algo de sensacional – Hitler
apropriou-se de alguns de seus termos fortes como “vontade de
poder” –, mas não deve ser responsabilizado pelo Nazismo. Sua
irmã, sim, era visivelmente desequilibrada em plena sanidade.
Nietzsche, que não era antissemita mas que defendia uma filosofia
que podia ser usada para fins perversos, ainda possui a desculpa de
sua doença para justificar ideias extravagantes.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
(Já visitei esse arquivo
em Weimar. É estranhamente inóspito a visitantes. Há duas salas.
Na primeira, objetos de Nietzsche, inúmeros recortes de jornais em
vidros e nas paredes – inclusive da época do Nazismo, ligando o
filósofo ao Führer –, mas tudo em alemão. Pensei em fotografar
para que depois, no dia em que aprendesse alemão, pudesse traduzir,
mas no primeiro <i>click</i> a recepcionista, ranzinza não sei se
por si ou se por obrigação da função, veio informar que eu não
podia tirar fotos e que deveria apagar a que tirara. Na segunda sala,
estátuas de Nietzsche, alguns livros e uma cadeira numa janela,
cadeira onde ele passou muitos de seus dias mórbidos, quando mental
e fisicamente incapaz. Nessa sala, a recepcionista não apareceu para
nos sondar. Então tomamos a libertinagem de tirar algumas fotos. Na
saída ela perguntou de onde éramos – só conseguimos nos
comunicar com ela por intermédio de um casal de amigos que moram na
Alemanha, já que ela não falava inglês – e disse que na semana
anterior um brasileiro estivera lá fazendo pesquisas. Quem me dera
saber alemão e poder ir lá fazer pesquisas!)<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj25yDEWyb1KmZMAPl5eJoTzydh42i-yU3vLVVxVBsO1YwXLlLPqdYxzbdS5s8nfHfCHbbwMluoGBX8AWMLHwcWbssCRkIFX6r0N74-6rIzTvhsQXtZ2VlHkSA9mbh77GSmOtqk4M9_6Byk/s1600/hitler-next-to-a-bust-of-nietzsche.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="243" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj25yDEWyb1KmZMAPl5eJoTzydh42i-yU3vLVVxVBsO1YwXLlLPqdYxzbdS5s8nfHfCHbbwMluoGBX8AWMLHwcWbssCRkIFX6r0N74-6rIzTvhsQXtZ2VlHkSA9mbh77GSmOtqk4M9_6Byk/s320/hitler-next-to-a-bust-of-nietzsche.jpg" width="320" /></a></div>
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
Muito se comenta sobre o
vegetarianismo de Hitler. As falácias argumentativas dos carniceiros
crescem como o pé-de-feijão do João e saem pela cidade espalhando
jatos de fogo e cólera. Não me lembro de em nenhum momento ter
cogitado que “comer carne é algo maligno porque, veja, não há
histórico de psicopata que tenha sido vegetariano e a grande maioria
dos ditadores comia carne”, porque posso falhar nas minhas
análises, mas acho que não falho de forma tão absurdamente
ignorante e débil. Mas já ouvi e li muitos doutores de fórum
virtual essa fusão entre Hitler e vegetarianismo como prova de
que... Pois é, prova de quê? Acho que carniceiros se sentem imorais
comendo carne e querem tentar provar que imorais são os
vegetarianos, pois Hitler era vegetariano. Mas em que biografia,
documento, discurso, relato médico está escrito que Hitler era
vegetariano por compaixão aos animais? Li certa vez que era mesmo
vegetariano, mas que às vezes burlava a <i>dieta</i> (não lembro
onde li, então não sei se é uma informação honesta). O filósofo
Michel Onfray, em <i>O ventre dos filósofos: crítica da razão
dietética</i>, encerra um capítulo com a informação solta sobre o
vegetarianismo de Hitler, de certo modo insinuando que um <i>ditador
notoriamente cruel era vegetariano</i>. Não sei qual é a
necessidade dessa vinculação (e Onfray parece muito tomado de ódio
para ser levado tão a sério, vide suas críticas de lamaçal a
Freud) e, mesmo que seu vegetarianismo fosse por amor aos animais,
não entendo o que pretende provar. Mas temos certeza que não era
por amor, pois Ryback bem cita as palavras de Hitler: “As vacas
foram criadas para dar leite; os bois, para conduzir cargas”. Quem
nesse mundo que se preocupe com os animais pensará que eles têm a
função de nos prover com leite e labor? Hitler, ególatra pensando
que o planeta deveria se render a ele e a seu ideal de raça
perfeita, só era vegetariano pelo bem de si mesmo e de sua saúde
debilitada. Não deveria jamais ser citado em discussões sobre
veganismo.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Por último, nosso
conhecimento de Hitler como leitor só nos faz refletir o quanto era
miserável. Interessante – se não fosse interessante, eu não me
preocuparia em ler livros sobre ele –, mas miserável. Lia livros
todas as noites, lia quase tudo que lhe caía nas mãos, desde
tratados militares e catálogos sobre armas até estudos astrológicos
e autoajuda popularesca. Schopenhauer o teria desprezado nessas
leituras em série, diria que não era capaz de lidar com a própria
solidão e de ter pensamentos próprios. Demonstra não ter lido ou
não ter prestado atenção a esses textos que o fariam tão bem para
crescer como indivíduo. Optou por adotar apenas a antissociabilidade
de Schopenhauer e deixou que o monstro que havia dentro de si se
estendesse para o mundo. Quis ser lembrado de maneira poderosa, mas a
posteridade o vê como alguém que alcançou poder absoluto de
maneira muito difícil de entender (a pergunta é: “como é que a sociedade
pôde conceber alguém como Hitler?” – não me lembro onde li
isso, acho que foi no <i>Conversas com Albert Speer</i>, do Joachim
Fest, que estou terminando) e depois fracassou. Merece, enfim, ser
lembrado como um mau leitor. Fico feliz, ao encerrar <i>A biblioteca
esquecida de Hitler</i>, em saber que um dos piores ditadores da
história era, no fim das contas, um leitor muito fraco que não
sabia escolher tão bem o que lia e confundia quantidade com
qualidade. Se fosse um bom leitor, eu ficaria tentada a admirá-lo um
bocado, pelo menos nesse aspecto dos livros. Não aconteceu. Prossigo
nas leituras sobre ele porque realmente é de se questionar como no
século XX uma pessoa com tamanha degeneração moral pôde adquirir
poder. Como leitor, é possível entender Hitler, mas jamais
louvá-lo. Acho que sei separar as coisas e mesmo reconhecer as
possíveis qualidades de alguém que socialmente recebe puro
menosprezo. Com pontuais exceções, não precisei separar Hitler de seus livros: sua
biblioteca o define.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-28349840753246860092015-06-02T12:44:00.002-04:002015-06-03T10:38:17.613-04:00Movimentos que criam monstros<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Todos os dias, vertentes
extremas de movimentos sociais produzem uma nova safra de ativistas
delirantes. Talvez você não saiba disso porque está muito ocupado
existindo para além deste mundo bizarro. Talvez não saiba disso
porque não frequenta a <i>deep web</i> desses movimentos sociais,
que ocorre na tradicional e superficial teia eletrônica. Não é que
eu queira alarmar alguém, mas preciso contar o que vi em minhas
andanças por ruas escuras, quando era noite, chovia e um novo
universo se mostrou para mim acontecendo dentro de bocas de lobo e em
becos nunca antes desbravados. Sei que sobrevivi. Mas minha mente
ficou com marcas indeléveis.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Os criadores do site de
downloads gratuitos The Pirate Bay costumavam chamar suas vidas fora
do computador de “away from keyboard”, em tradução livre:
“longe do teclado”. Um dos responsáveis pela expressão
explicou, no documentário sobre o site, que eles
não faziam essa diferenciação entre vida real e vida virtual
porque <i>a vida virtual era muito real</i>. Acho que é uma das
definições que mais me marcaram nas últimas experiências com
leitura de mundo. Atualmente, a maioria das pessoas está conectada.
No tempo livre, estamos mais conectados do que desconectados. Logo,
quando interagimos com alguém “virtual”, não estamos
socializando com um ser que adquiriu uma segunda vida, como no jogo,
mas com alguém que existe e usa a internet apenas como uma extensão
de si mesmo, nem que seja da parte mais cruel dos seus arquivos
pessoais. Às vezes caminho pela rua e vejo pessoas aparentemente
dóceis. Sempre me pergunto se aquilo não é apenas um disfarce e
elas não são, quem sabe, responsáveis pelos perfis mais horrorosos
que comemoram na sessão de comentários de jornais, revistas e blogs
quando moças são estupradas por usarem vestidos curtos, quando
mulheres têm suas fotos íntimas vazadas por ex-namorados, quando
homens são assassinados por suas parceiras, quando brancos são
mortos por negros. Essas pessoas não são virtuais. Elas são
absolutamente reais. E estão destruindo a civilização ao
perpetuarem barbárie em nome da liberdade de expressão ou sob o
eufemismo de “justiça social” na internet. Não vou me ater
àqueles que dizem que uma mulher estuprada mereceu o que teve se
tinha comportamento lascivo. Esse caso já está bem fichado. O que
agora me oprime os miolos são os moralistas que defendem revanche
contra sujeitos que foram rapidamente classificados como opressores
ou descendentes dos opressores do passado. Moralistas que estão se
reproduzindo no que chamam de “espaços seguros” da internet, que
nada mais são, em boa parte dos casos, do que lugares onde pessoas
que se consideram oprimidas estão tramando discursos de ódio para
destruir “opressores”. Se você não conhece o tipo, logo vai
conhecer. Para apressar as coisas, no final vou indicar uma boa
página para que já se tome conhecimento antecipado da proporção
que isso está ganhando bem perto do teclado, ou seja, na vida real
que diz respeito a todos nós.
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<br /></div>
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A alienação às vezes
nos traz calma. Se não sei que sou objeto de ódio e que há uma
torcida oculta aguardando eu ser prejudicada para então debochar da
minha queda, posso viver tranquilamente, ignorando o mal. Já quando
sei exatamente quem são meus “inimigos”, vivo tensa, à espreita
e à espera de que o pior aconteça a qualquer instante em qualquer
lugar sem qualquer pretexto plausível. Antes de conhecer o buraco
negro dos movimentos sociais na internet eu não sabia que eu estava
proibida de falar sobre racismo por ser branca e que sou odiada por
alguns negros porque eles supõem que os meus antepassados brancos
foram genocidas. Eu também não sabia que eu não podia usar
apetrechos “culturalmente negros”, como o turbante, por ser
branca, mesmo que minha mãe, negra (sou branca porque, olá, para se
gerar um filho é preciso misturar dois DNAs, e logo se pode deduzir
que tenho essa cor por causa do meu pai, branco), talvez tenha
passado para mim, sua filha, a cultura negra que ela não se
importaria de passar para sua prole. Com pai branco e mãe negra, sou
filha única. Se tivesse uma irmã negra, os criadores de regras para
negros e não-negros do movimento negro da internet diriam que ela
poderia usar turbante, mas eu, não. Mesmo que tivéssemos a mesma
mãe negra. Eu também não sabia que por ser branca e funcionária
pública sou corresponsável pela pobreza e pelo fato de alguns
homens pobres cometerem crimes como furto, assalto, latrocínio,
tortura. Tive uma infância pobre, mas isso não importa: o que
importa é que hoje sou “elite” porque sou branca e viajo para o
exterior e, por isso, tenho, de alguma forma, culpa pelos presídios
lotados. Outra coisa que eu não sabia é que as mulheres precisam se
unir em <i>sororidade</i> para derrubar aquele que é culpado por todos os
seus problemas: o homem. Não posso criticar mulheres. Qualquer erro
que uma mulher cometa é culpa de algum homem ou do espírito
machista que paira em todas as cidades e hipnotiza mulheres inocentes
sem controle sobre suas próprias ações a reproduzir o que sua
entidade criadora – O Homem – quer que elas façam. Preciso
desconfiar do meu pai, do meu namorado, dos meus amigos homens: estão
todos apenas tentando exercer domínio sobre mim e querem “me levar
de volta para o fogão”, como dizem algumas feministas (ou
<i>femistas</i>?) que veem o que ninguém mais vê. O homem que precisa ser
rechaçado não é somente o tipo que lê o blog Testosterona.
Precisa ser rechaçado também o homem que respeita sua mãe, sua
esposa, suas amigas, mas resolveu dizer à mulher com quem vive há
anos que o cabelo dela fica mais bonito quando cortado na altura do
ombro. Uma mulher pode dizer a seu namorado que ele fica melhor com
ou sem barba. Mas um homem que diz à sua namorada que ela fica
melhor sem usar sombra verde nos olhos é um opressor machista
culpado pelo estupro diário de mulheres em todo o mundo. Parece que
estou exagerando para causar impacto. Não estou. É exatamente esse
o tipo de conversa que está borbulhando nos “espaços seguros”
dos movimentos sociais na internet.
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<br /></div>
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O problema são os
movimentos? Depende. Como eu já disse em outra ocasião, há
inúmeras mulheres defendendo coisas absurdamente diferentes, mas que
se intitulam “feministas”. O que acontece hoje é que eu, que me
denomino feminista porque acho que homens e mulheres precisam ter
igualdade de oportunidades (liberdade para agir além daquilo que a
cartilha conservadora ditou como o certo para cada gênero), sou
comparada, por pessoas sem conhecimento de causa (nem sempre as
culpo), com a mulher que responde por uma página de ódio aos homens
e também se intitula feminista. O correto seria ela se chamar
“femista” ou “misândrica”. Mas ela quer se chamar de
feminista e não há quem vai fazê-la mudar de ideia. Há, portanto,
<i>vertentes esquizofrênicas</i> dentro dos movimentos que criam
essa confusão na hora de saber quem é quem. A onda ultrapassou
tantos limites racionais que agora foi preciso criar uma página
chamada “Feminismo sem misandria” para separar feministas de
femistas, sendo que as femistas é que deveriam parar de chamar
aquilo que fazem de feminismo. Isso é a mesma coisa que eu criar um
grupo de mulheres loiras, mulheres de cabelo preto aderirem ao grupo,
berrarem que são loiras e depois eu ter que me afastar criando um
novo grupo chamado “loiras que não têm cabelo preto”. Feminismo
com misandria não é feminismo: é femismo.
</div>
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<br /></div>
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Juntando todos os urros
da ala doente dos movimentos sociais, chega-se ao denominador comum
de que o responsável por todos os males da sociedade é o homem
branco heterossexual que vive razoavelmente acima da linha da
miséria. Mulheres são vítimas vitalícias, bem como negros,
homossexuais e pobres. São pessoas das quais não se pode cobrar
discernimento, porque a opressão social as massacra tão gravemente
que isso as impede de julgar situações e decidir os rumos da
própria jornada. Esses dias uma femista disse que os homens brancos
são os reais culpados pelos animais que morrem em abatedouros. Ela
queria dizer que não se pode cobrar de uma mulher ou de um negro
parte da carga de culpa que se tem com o holocausto animal, porque se
eles, mulher e negro, comem carne e bebem leite de vacas estupradas,
isso é mera reprodução inconsciente de um mal que começou com o
homem branco. O que é interessantíssimo, já que negros africanos
se alimentavam de animais muito antes do contato com europeus. Quando o vitimismo age para centrar os
holofotes numa suposta perene vítima, está apenas mostrando,
àqueles que enxergam bem, que se considera que essas pessoas são
extremamente estúpidas, tão estúpidas a ponto de não poderem
fazer escolhas. Você me dizer que as pobres mulheres tomam leite por
culpa do homem branco e que se eu quiser preservar a vida das vacas
eu devo combater o homem branco e não toda a sociedade que bebe
leite, parecerá, a mim, que você está chamando mulheres de
fantoches. As coisas boas do mundo devem ser louvadas por causa das
mulheres, as coisas ruins devem ser execradas porque são obra dos
homens. Esses movimentos sociais não estão se tornando muito
megalomaníacos e interesseiros? Um aviso importante: paranoia,
delírio de grandeza e megalomania são <i>transtornos psicológicos</i>,
e não características inseparáveis àqueles que querem justiça.
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<br /></div>
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Segue um breve apanhado
(não literal, escrevo com as minhas palavras, mas as ideias e
expressões foram todas preservadas) de delírios paranoides tirados
da internet. Não pensem que são casos excepcionais defendidos por
um ou outro doente. Muitas dessas ideias foram “curtidas” por
centenas de pessoas. Páginas que disseminam essas mesmas ideias são
“curtidas” por <i>milhares</i> de pessoas. E também não
suspeitem que esse tipo de pensamento não vai crescer – já está
crescendo. Se o delírio coletivo pôde atingir os milhares de
pessoas que seguem Edir Macedo, por que não poderia existir uma onda
que leva dentro dos movimentos sociais? Fartas experiências
históricas nos mostram que condutas de ódio podem ganhar força
mesmo entre grupos aparentemente sadios.
</div>
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<br /></div>
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1. Todo homem é um
estuprador em potencial. Ou seja, todo homem é responsável pelo
estupro diário de mulheres.</div>
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2. “A coisa tá preta”
é uma expressão racista.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
3. Mulheres que
engravidam de meninos deveriam se recusar a amamentar esses bebês,
pois é do berço que devemos tirar o poder dos homens.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
4. Todo branco é um
genocida em potencial. Ter orgulho da pele branca é ter orgulho de
ascendentes genocidas.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
5. Todo branco é
nazista.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
6. Um heterossexual
jamais deve falar sobre homossexualidade para um homossexual. Um
heterossexual deve se restringir a ouvir o que o homossexual tem a
dizer.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
7. Se uma mulher diz que
foi machismo, foi. Não interessa o que houve. Se ela sentiu
machismo, basta a palavra dela, pois só mulheres sabem reconhecer
machismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
8. Se um negro diz que
foi racismo, foi. Não interessa o que houve. Se ele sentiu racismo,
basta a palavra dele, pois só negros sabem reconhecer racismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
9. Todo branco é
racista.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
10. Homens brancos
heterossexuais dentro de movimentos sociais só servem para carregar
bandeira, financiar causas, realizar serviços. Não têm que opinar.
Têm que trabalhar e dar dinheiro.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
11. Negros que namoram
brancos estão traindo o movimento negro.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
12. Negros que namoram
brancos sofrem de Síndrome de Estocolmo, pois estão apaixonados
pelo opressor.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
13. Todo homem é um
agressor.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
14. Se quiser abortar seu
bebê porque descobriu que ele é do sexo masculino, ótimo. O mundo
precisa de mais mulheres, e de mulheres empoderadas.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
15. Uma mulher que acata,
após argumentação, a opinião de um homem precisa se empoderar.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
16. Gostos sexuais de
heterossexuais são todos pautados em construções sociais. As
únicas pessoas que podem dizer que “nasceram assim” são os
gays.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
17. Estudos sobre a
história do negro, estudos sobre movimentos sociais, estudos sobre
algum assunto que desmorone o que um oprimido (mulher, pobre, negro,
homossexual) está falando são prova de academicismo. Vivência é
superior a estudo. Estudo, nesse caso, é academicismo de opressor.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
18. <a href="http://www.imprensafeminista.com/#!Isto-não-é-sobre-a-lancheira-da-filha-de-Bela-Gil/c1nni/556bad790cf2adc1ad6d6f22" target="_blank">Querer que os filhos tenham alimentação saudável é gordofobia</a>.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
19. Alimentar os filhos
com alimentos saudáveis e orgânicos e divulgar essa ideia é
atitude de gente gordofóbica e privilegiada. Não se deve dizer para
as mães alimentarem melhor seus filhos, porque mulheres pobres não
têm condições, neste planeta opressivo, de não oferecer a seus
filhos comidas que não sejam industrializadas, cheias de gordura e
açúcar.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
20. Se se vai criticar
alguém que come animais, é preciso criticar homens brancos ricos.
Não se deve criticar o trabalhador pobre que chega a casa no final
do dia e cozinha macarrão com salsicha.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
21. Pessoas negras de
religiões africanas que sacrificam animais devem ter o direito de
sacrificar animais. Querer impedi-las disso é racismo. Por que não
se proíbe o homem branco de comer <i>foie gras</i>?</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
22. Sacrificar animais em
religiões negras é cultura. Não se pode querer abolir isso
enquanto abatedouros não forem abolidos, pois essa discussão é
hipócrita. Não, touradas não são cultura. Touradas são atitudes
estúpidas de espanhóis brancos privilegiados.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
23. O <i>rapper</i>
Emicida foi fotografado recebendo um beijo no rosto de uma mulher branca. Ele morreu como voz no
movimento negro depois dessa traição.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
24. Mulheres deveriam se
relacionar apenas com mulheres. Mulheres que se relacionam com homens
são suspeitas ou ingênuas. Todo homem quer dominar uma mulher. E
toda mulher que aceita essa dominação sofre de Síndrome de
Estocolmo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
25. Verificar a
legitimidade de uma nota de cinquenta reais de um negro é racismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
26. Não dar bom dia a um
negro é racismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
27. Discordar de um negro
é racismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
28. Mulher que vota em
candidatos do sexo masculino está perpetuando machismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
29. Fazer feijoada na
versão vegana é um desrespeito à cultura negra. A verdadeira
feijoada tem restos de animais. E foram os negros que inventaram a
feijoada.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
30. Pratos tipicamente de
culturas africanas não podem ter a receita alterada, pois isso seria
apropriação cultural. Se um prato africano leva somente três
ingredientes e você, branco, quiser fazer e acrescentar um quarto,
isso é desrespeito. E apropriação cultural indevida.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
31. Mulheres bissexuais
usam lésbicas somente para se divertir. E quem não for lésbica não
pode nem começar a tentar contestar essa informação.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
32. Um homem que luta
pela causa das minorias, mas não namora uma mulher gorda, uma
mulher negra ou um transsexual é abominavelmente hipócrita e só
adere à causa das minorias para roubar protagonismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
33. Sempre que um negro
disser uma coisa e um branco discordar, eis a prova de que o negro
estava certo: o fato de um branco discordar.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
34. Debater com um negro
e se opor a alguma ideia que ele apresenta é deixá-lo inseguro e
tacitamente querer rebaixá-lo à condição de escravo. Não se
“silencia” um negro.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
35. Homens que não
querem fazer sexo oral em suas parceiras quando elas estão
menstruadas são machistas.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
36. Um assovio na rua
deveria ser considerado estupro.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
37. Mulheres são
estupradas e mutiladas todos os dias das mais diversas formas, mesmo
que não percebam.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
38. Se um homem na
universidade fez uma mísera coisa que você considerou machismo, vá
e coloque o nome dele na porta do banheiro feminino, escreva ao lado
o curso que ele faz e incentive suas amigas a nutrirem essa “lista
de machistas”.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
39. Se uma mulher quiser
dizer que um flerte bobo é assédio, ela deve ter o direito de fazer
isso e de denunciar o agressor.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
40. Homossexuais mulheres
são boas. Homossexuais homens são só machistas com uma nova
roupagem.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
41. É louvável que uma
mulher ameace cortar o pênis de um homem que está discutindo com
ela.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
42. Somente pessoas “de
esquerda” podem ser veganas. Pessoas “de direita” sendo veganas
estão caindo em contradição, porque a exploração animal é culpa
do capitalismo e do livre mercado.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
43. Um homem que se
declara feminista está roubando protagonismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
44. Uma pessoa branca que
fica conhecida por sua luta pelos negros está apenas roubando
protagonismo. Negros não precisam que brancos os defendam.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
45. Se você não foi
estuprada, não pode opinar sobre estupro.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
46. É errado um homem se
masturbar imaginando uma mulher que não deu autorização para ele
pensar nela.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
47. Hitler é avô de
todas as pessoas brancas de hoje.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
48. Gordos saudáveis não
são exceção. São regra. Quem discorda dessa tese é gordofóbico.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
49. Veganismo é
elitista. Pobres não têm acesso a comidas sem origem animal.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
50. O patriarcado é
branco.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
51. Se um negro explora
outro, é porque ele aprendeu a explorar com homens brancos.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
52. Se uma mulher é
heterossexual, é porque a sociedade a ensinou a ser assim.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
53. Homens brancos ricos
não podem reclamar de homens negros pobres que assaltam, sequestram,
torturam e matam pessoas. Se esses homens negros pobres fazem isso, a
culpa é do homem branco rico. Portanto, ou ele revê seus
privilégios, ou se cala.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
54. Se uma mulher faz
sexo consentido com um homem e depois se arrepende, ela tem o direito
de alegar que foi estupro. O machismo age por vias escondidas e às
vezes é só mais tarde que se percebe que se foi vítima dele.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
55. <i>Pokemon</i> é um desenho
homofóbico, pois personagens machos só se interessam por
personagens fêmeas.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
56. Quando um homem diz
para uma mulher fazer uma coisa, ela deve fazer o contrário.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
57. O negro não sabe o
que é viver um dia sequer sem ser vítima de racismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
58. Homens devem ser
coagidos a urinar sentados. Se mulheres não podem urinar em pé,
urinar em pé é sintoma de uma sociedade machista.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
59. Homens que possuem
bandas e vão para o palco sem camisa têm que ser humilhados e
obrigados a se vestir. Se uma mulher não pode fazer shows sem
camisa, homens também não podem.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
60. Uma mulher bebe um
pouco. Um homem pergunta se ele pode beijá-la e depois pergunta se
eles podem fazer sexo. A mulher diz sim. Mas isso não significa que
ela consentiu. Ou seja, temos aí um grave caso de estupro, se ela achar que foi.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
61. Se um homem se veste
de mulher só para brincar, isto é machismo.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
62. Um homem branco que
se pinta para fazer um personagem negro está sendo racista.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
63. Pessoas brancas não
têm cultura.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Acho que eu poderia
chegar a mais de mil falas diferentes, nesses termos, vindas de
pessoas envolvidas com movimentos sociais. Mas paro por aqui.
Sessenta e três itens já deve ser suficiente para enojar algum
leitor razoável que não tolere discurso de ódio, não interessa de
onde ele venha. Alguns dentro desses movimentos pregam a igualdade. E
alguns, que estão vencendo debates no berro, pregam segregação e
ódio. Repito: isso não é raro – e está aumentando. Se você é
um dos “privilegiados”, cuide para não ser odiado, surrado e
morto como “mera justa reação do oprimido”.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
PARA VER MAIS (e tentando ver o lado "humorado" dessa esquizofrenia)</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<a href="https://www.facebook.com/socialjusticewarriors?fref=ts" target="_blank">Página (em inglês) do Facebook que satiriza a demência dos justiceiros sociais</a></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<a href="https://www.facebook.com/AventurasnaJusticaSocial?fref=nf" target="_blank">Página (em português) que faz o mesmo: Aventuras na justiça social</a></div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Ambas excelentes.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-5450560910170496412015-03-21T15:44:00.000-04:002015-06-17T17:06:30.156-04:00Montando uma biblioteca particular<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não tenho o hábito de visitar casas de pessoas. Nem tinha quando era mais sociável. Casas são universos particulares e refúgios – quando chego à casa de alguém, espero encontrar mais do indivíduo ali, seu mundo, seus móveis bem escolhidos, suas cores, seus livros, sua parafernália <i>kitsch</i>. Acredito que boa parte do meu desprezo com as casas alheias é porque elas são muito desinteressantes e decepcionantes. Chega-se à casa de um músico, por exemplo, e tudo o que se vê são móveis entediantes e os instrumentos básicos que ele toca profissionalmente. Onde estão os discos, os CDs, as dezenas de livros sobre música? Não estão. É algo que jamais entenderei. A casa, que era para ser o melhor sítio para alguém querer estar, é, na maioria das vezes, um ambiente inóspito. Não é um lar. É só um lugar para fugir da chuva e dormir. Quando se aprende a ser feliz na solidão, quer-se qualificar a solidão. Sua casa é a sua solidão: qualifique-a. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Lembro que na época da minha primeira tentativa de faculdade eu visitava a casa de colegas do mesmo curso ou de cursos similares. Apesar de adorar coisas e a disposição das coisas de forma pitoresca e idiossincrática, eu ia a essas casas mais para ver que livros havia lá, pois já sabia que lares interessantes como organismos vivos eram peças de filmes, e não da vida real – pelo menos não da vida real que eu vivia, com desprezadores que enxergavam um mundo decorativo binário: ou se era muito rico com requinte e móveis modernistas, ou se era simplesmente pobre e a única opção seria comprar móveis de falsa madeira na cor amarela das Casas Bahia. Meus colegas, não sendo ricos, achavam que só poderiam montar um lar com feiuras de lojas populares. Já acostumada a essa situação – e não tendo coragem de soltar o que pensava: “por que não vai à loja de móveis usados e compra umas coisas velhas que, pelo menos, têm beleza e história?” –, eu ia conhecer essas casas esperando encontrar bons livros de bons estudantes que supostamente amavam a ciência à qual decidiram dedicar suas vidas. Bem, para <i>essa</i> decepção eu nunca estive preparada. Como é que um estudante de História ou pretenso amante da Antropologia não possui em casa alguns livros básicos, clássicos, referenciais? Como é que um estudante não se esforça para ter uma estante especializada para colocar os livros que o acompanharão por toda a vida? Quando achei parcos valiosos livros naquelas prateleiras frias, vazias, dramáticas, eram os livros que algum orientador “forçou” o sujeito a comprar para escrever uma monografia que prestasse. Aqui, reforço algo que sempre defendi: se alguém ou algo (professor, escola, profissão, <i>status</i>) precisa te <i>obrigar</i> a ler sobre um assunto que você alega amar, adorar, é porque você não ama nem adora esse assunto. Se você não é capaz, por livre vontade e sem interesses tacanhos, de devotar seu tempo a esse tal amor, não é amor. Foi lastimável encontrar penúria nas estantes de meus colegas de Humanas, e foi mais lastimável ainda quando eu comparei esse desleixo com a fartura que encontrei, por exemplo, nas estantes de pequenas damas do artesanato. Visitei, nesta minha breve vida de poucos passeios, as casas de inúmeras mulheres (jovens e senhoras) que tinham paixão por artesanato. As prateleiras delas tinham livros, revistas, recortes, fichários, cadernos com anotações, genuínas bibliotecas particulares dos trabalhos manuais. Não há um dia em que essas apaixonadas não passem namorando suas agulhas, alisando seus algodões, buscando um novo ponto de bordado. Você não espera encontrar um universo íntimo detalhista na casa de uma senhorinha, assim como não espera encontrar estantes desguarnecidas na casa de um humanista pedante – até descobrir, claro, antes tarde do que nunca, que certos pedantismos são escancarados ao se conhecer o lar de uma pessoa. O pedante pode se entregar no cotidiano – ou sua casa pode entregá-lo. E, não, nenhum desses personagens que critico escondiam suas nobres leituras em bibliotecas virtuais repletas de <i>e-books</i>.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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Não sei se isso é problema de país emergente, mas ter que dizer às pessoas para que leiam – para que <i>leiam</i>, não para que leiam isso ou aquilo – soa patético. O Brasil pode ter várias qualidades que me fazem querer morar aqui a vida inteira, mas educação e cultura da leitura não estão entre elas. Nesta nação de atores preguiçosos, livros em casa só servem para fins bem delimitados: estudar para um concurso, dar uma aula, escrever uma tese. E o mesmo pacóvio que lê inúmeros livros só para escrever uma tese vai ficar chateado se, após anos de hospedagem na biblioteca da universidade, a tese dele não tiver sido acessada nenhuma vez – e dirá: “acho incrível como as pessoas não leem nesse lugar”. Sim, porque ele não é capaz de, por livre arbítrio, ler um clássico, mas a população acadêmica deveria se interessar em ler a tese dele, um estranho que só foi se doutorar para usar o doutoramento como argumento (ou apenas eu nesse mundo presenciei inúmeros abusos de título em que alguém foi tacitamente proibido de discutir com finos de altas titulações?). A cultura da não-leitura gera tantos percalços no cotidiano que, mais uma vez, nada se torna melhor, se você é um leitor de fato, do que se afastar dos outros. Na cultura da não-leitura, o indivíduo que lê um livro a cada três meses vai se exibir, vai achar que um novo livro é como um novo sapato que precisa ser percebido por outrem, vai palestrar. Tenho um colega de trabalho que leu dois livros em quatro anos. É somente desses livros que ele fala. Quando inicia o falatório sobre esses livros, diz “esses tempos li um livro que...”, mostrando a todos que a expressão “esses tempos” é mesmo muito vaga. Conclusão deste parágrafo: sobre livros e títulos, quem mais se exibe é o que mais insegurança tem. Precisar afirmar em demasia alguma coisa sobre si denota complexo de inferioridade. E não é por acaso que as pessoas mais arrogantes sejam as mais complexadas. Não interessa o que alguém diz sobre si, mas o que alguém faz com o que possui em si. Toda vez que vejo uma figura muito "exibida", penso que ela já foi uma criança. Hoje, adulta, vive para implorar atenção – “vejam como sou incrível!”, “por favor, vejam os cursos que fiz, vejam como estudei!”, “percebam quão peculiar eu sou!” –, e eu me questiono como teria sido quando criança. Melhor ou pior? Crianças estão sempre clamando atenção, reféns de suas carências explicáveis, mostrando a todos suas meias novas e dizendo que sempre vão a parques sensacionais. Crianças. Mas como lidar com adultos que não cresceram e ainda agem como se dependessem sempre da aprovação alheia e medem a própria felicidade de acordo com a reação que os outros têm sobre suas vidas? A ojeriza não vai embora, mas se mistura a um pouco de misericórdia quando percebemos que aquela pulga humana que não cala a boca e se sente tão necessitada de afeto já foi uma criança. Até um chefe esdrúxulo será melhor aturado se você pensar que há não tantos anos ele era uma miniatura. Exibidos <i>precisam</i> se exibir para sobreviver. Fuja deles, e, se não conseguir isso sempre, pense neles como crianças beiçudas que não amadureceram. </div>
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Retomando após tantos devaneios: é preciso que todos tenhamos uma biblioteca particular que seja uma fonte do conhecimento que nos é atraente. A biblioteca permite releituras, organização das ideias. Você se recordará de uma descrição pessimista de Henry Miller sobre o mundo e reviverá aquilo em minutos: o livro está na sua estante. Em menos de um quarto de minuto achei o trecho que precisava de <i>Trópico de capricórnio</i>, coisa que seria impossível se eu não tivesse minha biblioteca pessoal: “Todos ao meu redor eram fracassados e, se não fracassados, ridículos. Especialmente os que haviam 'vencido'. Estes me faziam chorar de enfado”. (Muitos elegem <i>Trópico de câncer</i> como o melhor livro dele, mas eu discordo.) É impossível que um livro bom não dê vontade ao leitor de lê-lo de novo, pelo menos alguns trechos. Um livro valioso não é apenas lido como um panfleto de rua: ele é estudado, destrinchado, analisado com paixão e técnica. Quando alguém chega à biblioteca onde trabalho e doa um livro dizendo que ele é maravilhoso, sempre me pergunto: “por que está doando, então?” Ou essa pessoa tem uma cópia, ou o livro não é tão maravilhoso. Às vezes descubro que o “livro maravilhoso” foi doado porque o doador precisava de mais espaço em casa. Cada um com os critérios de avaliação do seu planeta, mas do planeta onde eu venho as coisas consideradas maravilhosas ficam conosco em vez de serem tidas como entulho que deve ir embora para dar lugar a uma televisão maior. Uma biblioteca particular – que pode ter tamanhos variadíssimos, dependendo dos assuntos de interesse e da quantidade de material publicado sobre eles (seu dono gosta de história de modo geral ou gosta de história das mulheres no Brasil Imperial?) – é uma prioridade. Eu não me imagino numa casa sem cama, assim como não me imagino numa casa sem uma pequena biblioteca.</div>
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Para montar uma biblioteca particular são necessárias duas coisas: um plano de leitura e um plano de compra. O plano de leitura deve ser feito pensando nos assuntos que te interessam. Nesse ponto, é salutar ponderar se o assunto escolhido é interessante apenas como uma curiosidade efêmera ou se você realmente está disposto a gastar tempo para dominá-lo à sua maneira. Livros podem ser belos objetos decorativos, mas decorar não é sua finalidade primeva, portanto não vale a pena adquirir livros sobre assuntos que não te satisfazem de verdade. “Sim, estou disposto a gastar meu tempo com este tema”. Já temos, aí, um início para um plano de leitura. Depois de definir os assuntos, que podem ser três ou dez e ficar espiralados, é preciso saber o que há sobre eles disponível. Se é algo para o qual você não terá a ajuda de um professor que já vem com o pacote de apostilas prontas e todos os infográficos perfeitos, uma leitura mais rasa no começo será melhor para não cair em ciladas em que facilmente os autodidatas caem. O autodidatismo é um brinco de ouro quando bem realizado, mas pode se tornar tão asqueroso quanto um montinho de cabelo escuro no ralo quando levado da forma errada. Há autodidatas que aprenderam a aprender e aprenderam a buscar o que é bom. E há autodidatas que leem qualquer coisa, sem critério, sem seleção, sem ver diferença entre Jorge Luis Borges e Paulo Coelho (acham que porque este se diz influenciado por aquele existe entre eles alguma conexão), sem saber que não se compra nem se lê (exceto se for para criticar) livro de editora ruim. Como saber o que ler sobre seu assunto querido se não há uma referência que abone ou desabone títulos? Usando os próprios livros como referência e lendo artigos na internet. Talvez você seja um aprendiz de leitor de História e não saiba muito bem quais historiadores deve ler. Compre livros sobre movimentos importantes dentro da História (livros sobre a Escola dos Annales, por exemplo) e lá você verá inúmeros nomes de historiadores graúdos que merecem leitura pelo excelente trabalho que fizeram. Compre livros gerais de boas editoras e esses livros quase enciclopédicos darão inúmeras dicas implícitas de “por onde começar”. Fazendo um plano de leitura, vale a pena visitar bibliotecas públicas, jogar o nome do assunto em livrarias virtuais (além de livros com aquele termo, essas lojas costumam fazer recomendações do tipo “quem comprou este livro também levou aquele outro”, que podem ajudar a conhecer mais obras que se tornarão possíveis leituras), ler resenhas na internet. Tendo o plano de leitura encaminhado – é bom lembrar que esses planos são sempre refeitos porque uns assuntos levam a outros –, já é possível estabelecer um plano de compra.</div>
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O plano de compra consiste em adequar seu orçamento pessoal à sua vontade de adquirir livros e organizar essas finanças específicas. O mito de que livros são caros precisa ser destruído. Chamar o ato de ler de um ato elitista porque “livros são caros” poderia fazer algum sentido se proferido por engenheiros e médicos, cujos livros custam mais de trezentos reais, mas acho que nem esses estudantes e profissionais reclamam tanto do valor dos livros quanto o leitor médio de Humanas e literatura. Literatura é quase uma piada de tão barata hoje em dia. Há centenas de clássicos popularizados em livros de bolso, e a versão é muito elogiável – bons tradutores trabalham para a L&PM Pocket, para a Companhia de Bolso e para a parceria Companhia & Penguin. Nessa seara, nenhuma desculpa será perdoada. Talvez alguns livros sejam mais caros (a coleção d'<i>A Comédia Humana</i> pela Biblioteca Azul, os livros de ficção da Cosac), mas basta que o comprador se organize financeiramente para adquiri-los. Suponho estar falando, aqui, com um leitor-comprador de poucos recursos, pois é claro que muitas pessoas podem comprar os livros que desejam no momento que desejam. E é para esse leitor pobre que continuarei falando, até porque é para ele que o plano de compra faz sentido (um leitor rico precisa planejar apenas suas leituras, e não suas aquisições). O leitor de poucos recursos precisa pesquisar. </div>
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Com o plano de leitura em mãos, é hora de pesquisar o valor dos livros. Você pode anotar ao lado de cada livro o valor mais barato que encontrou e onde o livro estava por aquele valor. Dependendo do orçamento mensal destinado a qualificar sua biblioteca particular, é possível comprar alguns livros por mês. Digamos que você consiga destinar apenas 60 reais por mês para comprar livros. E gostaria de comprar aquele livro do Jung pela editora Vozes que custa 80. Você pode aguardar mais um mês para tê-lo ou pode abrir mão de alguma trivialidade que libere 20 reais para completar a compra se a vontade de ter o livro for uma emergência. Com um orçamento baixo, eu recomendo, se possível, que espere algum tempo para poder efetuar uma compra maior. Tenho no meu e-mail uma pasta chamada “COMÉRCIO”, onde estão listadas uma porção de coisas que preciso comprar, principalmente livros. Quando um livro me interessa, escrevo um e-mail para mim mesma e depois o movo para essa pasta. A lista vai aumentando, mas o meu anseio pode esperar, já que eu tenho em casa muitos livros não lidos e muitos livros que precisam ser relidos. E o anseio espera até que alguma livraria virtual apresente promoções. Não é raro que essas livrarias façam promoções do tipo “12% de desconto no boleto” e/ou “frete grátis nas compras acima de 199 reais” (não mais tão comum hoje em dia, há também a promoção do desconto progressivo: quanto mais você compra, mais desconto consegue, sendo acima de quatro livros um grande desconto fixo, geralmente de 20%), então sempre vale a pena esperar para comprar certos livros nesses casos, principalmente livros não tão badalados que estão sempre pelo mesmo preço e só sairão mais barato com esse tipo de desconto dado no valor total do carrinho. Em quatro meses, o personagem hipotético do orçamento de 60 reais terá guardado 240 reais. É possível fazer uma bela compra com esse valor, principalmente considerando que as lojas costumam dar frete grátis para um valor como esse. 240 reais não é muito dinheiro, mas permite a compra de nobres livros – o que faz desmoronar a teoria do derrotista indolente sobre livros serem caros. Livros que hoje eu poderia comprar com esses 240 reais: </div>
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<i>Compreender Schopenhauer</i>, Jean Lefranc 30 reais</div>
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<i>Aleijadinho e o aeroplano</i>, Guiomar de Grammont 30 reais</div>
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<i>Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos</i>, Maria Pallares-Burke 50 reais</div>
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<i>Freud – mas por que tanto ódio?</i>, Elisabeth Roudinesco 22 reais</div>
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<i>O brilho do bronze, um diário</i>, Bóris Fausto 36 reais</div>
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<i>Anna Kariênina</i>, Tolstói 51 reais</div>
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<i>As aventuras de Pinóquio, história de um boneco</i>, Carlo Collodi 20 reais</div>
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Sete livros aparentemente bons, de excelentes editoras (Vozes, Cosac, Civilização Brasileira, Zahar, Unesp) e que custaram 239 reais. Tem gente que gasta esse valor num dia indo à praia (pelo histórico de postagens, imagino que eu pareça ter birra de praia, mas na verdade é só uma perseguição à cultura estranha da praia que impera aqui em Santa Catarina) e depois vai dizer que não lê porque livros são caros. Tem gente que compra esses livros sem reclamar, enriquece o espírito e vai montando aos poucos uma biblioteca particular que é um tesouro muito personalizado. </div>
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Uma maneira de pensar se sua casa ou sua biblioteca particular são uma representação de você é imaginar alguém que te conheça muito e um dia chega à sua casa, sem saber que é a sua casa e sem você lá. E essa pessoa é questionada: “de quem você suspeita que seja esta casa?” Você gosta de jardinagem e haverá livros sobre o assunto nas prateleiras; você se interessa pela ética que considera animais e haverá livros de Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione e Sônia T. Felipe todos juntos numa seção; há dezenas de livros de literatura africana porque você está realizando um estudo pessoal sobre os diferentes tipos de histórias fictícias criadas no continente; e há, ali, alguns livros e dicionários de francês. Uma pessoa que conhece o <i>patchwork</i> de interesses que te transforma numa peça única saberá que aquela estante só pode ser sua. Essa é uma biblioteca rica e especializada que faz sentido. Monte um refúgio que faça sentido. </div>
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Como procuro dar conselhos que já sigo, não será nenhuma novidade se eu disser que meu quarto é uma extensão de mim. Transformei-o em um lar, em um espaço que me abraça toda vez que eu entro e diz: “bem-vinda de volta, aqui você estará bem”. E realmente estou. É aqui que está meu universo importante, é aqui que eu coloco o que é valioso para mim. Transformar este espaço em aconchego significa dar ainda mais vontade de que eu volte a ele. Será que muitas pessoas odeiam ficar em casa justamente porque suas casas não representam nada e não possuem atrativos para o corpo e a mente? Talvez. Mas esse pode ser um problema mais interior do que o interior da própria casa: de nada adianta uma morada fabulosa se você não consegue se fazer fabuloso dentro dela porque odeia a si mesmo. Uma biblioteca particular gigantesca e belíssima não resolverá o problema de quem não suporta a ausência de movimento mundano e montou uma biblioteca só por colecionismo. Um livro bom não servirá para nada sob as lentes erradas. Da mesma forma, o meu mau julgamento talvez não mereça alcançar todas as pessoas que possuem casas tristes e bibliotecas acabadas, pois talvez sejam leitoras até bem-intencionadas, mas que não pararam para refletir que ler um livro por mês de uma biblioteca pública não basta para se sentir a plenitude de uma relação íntima com o conhecimento que vem dos livros. Não é nenhum sacrifício fazer de sua casa um lar onde você queira sempre estar. Só digo isso porque testo o quanto um lar muito particular faz bem à minha vida, à minha lucidez. Nossas mentes e nossos lares são lugares que não podemos deixar corromper.</div>
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<iframe allowfullscreen="" class="YOUTUBE-iframe-video" data-thumbnail-src="https://ytimg.googleusercontent.com/vi/WAJcNmV1h_s/0.jpg" frameborder="0" height="266" src="http://www.youtube.com/embed/WAJcNmV1h_s?feature=player_embedded" width="320"></iframe></div>
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Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-6597470673193794852014-12-14T01:43:00.000-03:002014-12-29T14:20:53.335-03:00O que Deus tem a ver com isso<br />
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Encontro, amiúde, veganos que creem em Deus e acreditam que os animais são “uma graça de Deus”. Como não gosto de conversas religiosas (nem gosto muito de conversa, na verdade), deixo que o assunto morra com um aceno de cabeça, um sorriso sonso ou simplesmente não dou prosseguimento aos comentários na internet. Costumo querer argumentar sobre isso quando sei que tenho alguma chance de inspirar dúvidas e mudanças; se vejo que o debatedor está numa sessão hipnótica que pode durar uma vida, não perco meu tempo – para mim, o tempo que tenho para usufruir é só o de um ciclo e somente nesta terra, não podendo ser desperdiçado. No entanto, meu pensamento não é modorrento como meu papo. Eu realmente gostaria que as pessoas se livrassem dos pesados grilhões imaginários de Deus e eu realmente gostaria que os veganos se propusessem a divagar mais sobre isso para aprimorar suas condutas no que diz respeito à causa animal. Quando você defende animais (que são vítimas da escravidão e das papilas gustativas de uma espécie que acha <i>fancy</i> ser <i>gourmet</i>) e ao mesmo tempo acredita em Deus, algo se perde. Obviamente você se perde porque desperdiça a própria breve existência com um delírio, mas os animais perdem muito mais. Ao estarmos certos de que no final das contas haverá um juiz para justiçar os oprimidos, ficamos um pouco preguiçosos e conformados. “O que esses comedores de porcos fazem é horrível, mas Deus está olhando e tomando notas”. Espera-se por uma justiça que nunca virá.</div>
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Existem inúmeros argumentos que contestam a existência de Deus, assim como há uma porção de réplicas cósmicas para aqueles argumentos. A usual é “você não pode provar que Deus não existe” – que pode ter a continuação, feita por céticos requintados “não-radicais”, em “portanto o ateísmo é uma tolice e todos deveriam ser agnósticos”. Não concordo com isso. Mas estou indo rápido demais.</div>
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No começo deste ano, li um livro chamado <i>A goleada de Darwin</i>. Faz parte da minha longa lista de livros sobre a evolução que pretendo destrinchar para me especializar, de maneira diletante, num tema que é fabuloso (não entendo como não podem achar fabulosa, por exemplo, a explicação para o desenvolvimento da asa de um morcego) e sempre me interessou. É um livro modesto que eu estava prestes a recomendar como “leitura nota dez” para colegas que quisessem entender os mecanismos básicos da evolução e a contenda entre evolucionistas e criacionistas. Após anos de convívio com intelectuais que tentavam me empanturrar com textos absurdos de Foucault e Deleuze, desprendi-me das convenções e das frases feitas obrigatórias para atestar genialidade (“Foucault escreve deveras bem”) e assumi que a escrita que eu valorizo é aquela que consegue ser clara, com bom vocabulário, meio literária, explicativa. Por que eu tenho que admirar alguém que trata um assunto já difícil com um texto extremamente prolixo? A prolixidade é, muitas vezes, o recurso patético de quem não sabe escrever, não sabe ensinar ou não sabe nem o que fala. Ao ler <i>A goleada de Darwin</i> até o penúltimo capítulo, eu sabia que estava diante de um livro simples, esclarecedor, com conteúdo – um material que merecia compartilhamento. O autor, Sandro de Souza, explica como a evolução funciona e quais as discórdias entre a criação e a seleção natural. Parecia que tudo correria como esperado. Até que no último capítulo o autor diz considerar, sim, possível a união entre criacionistas e evolucionistas, como quem diz “um biólogo evolucionista não cai em contradição quando revela crer em divindades”. Foi uma finalização de livro lastimável, já que foi no decorrer dos capítulos anteriores que eu tive um “click” sobre a impossibilidade de essas duas vertentes andarem juntas. O livro continua sendo interessante. Exceto o último capítulo.</div>
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O que os capítulos anteriores do livro de Sandro de Souza me fizeram pensar contribuiu muito para o assentamento do meu ateísmo. Antes, quando um agnóstico me abordava com seu ar monástico para ironizar minha tomada de posição (radical e pueril, pare ele), eu simplesmente retrucava: “mas por que Ele existiria?” Hoje eu teria uma fala melhor. Aliás, duas falas.</div>
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Suponho que todos que me leem tenham a evolução como um fato. E suponho que conheçam um pouco da história toda. Muitos devem acreditar que Deus (ou “uma força superior”) foi o responsável pelo desenrolar da evolução. Eu não partilhava dessa ideia, mas partilhava da ideia de que ela era compreensível (“não acredito que Deus seja responsável pela evolução, mas não é tão obtuso que alguém pense isso”). Após o “click”, não acho mais.<br />
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<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBR0CjGWjRxpXMdiubc9yySB2DuUGdcN-1EOUUIqYlhoBBkKJRvz7_TWuhBPEGCbFTrGbFiRoWErN9oKgO4i47y6xWlA8yvczYS-NKUXC_HCftG7RlEvx-gLjQNEbLxUbIKHbRK9WT4l5J/s1600/homology.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBR0CjGWjRxpXMdiubc9yySB2DuUGdcN-1EOUUIqYlhoBBkKJRvz7_TWuhBPEGCbFTrGbFiRoWErN9oKgO4i47y6xWlA8yvczYS-NKUXC_HCftG7RlEvx-gLjQNEbLxUbIKHbRK9WT4l5J/s1600/homology.jpg" height="210" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="font-size: 13px;">Caracteres homólogos</td></tr>
</tbody></table>
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A história da terra envolve números na casa dos bilhões. Antes de uma vida mais complexa aparecer, o mundo ficou por aproximadamente um bilhão de anos somente com bactérias. Digamos que Deus estivesse regulando tudo isso. É uma entidade para a qual não existe uma severa noção de tempo: milhares de anos, para Ele, podem ser como um segundo nosso e só Ele pode entender de fato o que significa redenção eterna ou danação eterna, porque para nós, humanos, a eternidade parece uma coisa muito estapafúrdia. Ele estava lá, esperando por um bilhão de anos para que, finalmente, decidisse tornar alguma bactéria mais complexa. E a evolução foi acontecendo. Alguns animais que apareceram no mar foram para a terra e alguns deles voltaram para a água milhares de anos depois, gerando mamíferos aquáticos (a baleia tem um ancestral terrícola, por exemplo). Apareceram animais que evoluíram para outros tantos com órgãos homólogos (Deus sempre soube que os dedos de um gato fariam sentido quando comparados à mão humana, pois o mesmo arquiteto pode usar as mesmas bases para criar ou permitir a evolução de diferentes bichos). Deus sempre esteve coordenando os parentescos e decidindo quando algum grupo de animais se separaria dos seus por meio de uma barreira geográfica e originaria uma espécie diversa. Deus estava lá quando apareceu o primeiro símio. Até que, um dia, Ele ficou exausto de tantos animais com vidas “vãs” e decidiu dar esclarecimento a uma espécie. Há pessoas que acreditam que os homens têm alma e os animais, não. A elas eu pergunto onde exatamente está o primeiro ser com alma da linha evolutiva. Chimpanzés são os parentes vivos com os quais mais temos semelhanças (digo isso porque, pensando evolutivamente, todos somos parentes, em maior ou menor grau, de todos os animais), mas os cristãos duvidam que eles tenham alma. Alma é mérito do <i>Homo sapiens</i>. Contudo, quem conhece a evolução sabe que a separação por espécie é muito arbitrária e desejosa de organização. Não podemos tirar alguém de sua linha evolutiva e dizer “esse é certamente o primeiro de sua espécie”, porque a evolução acontece de modo gradual e as divisões são feitas mais para fins de organização do que de mudança severa. O pai do primeiro <i>Homo sapiens</i> também poderia ser um <i>Homo sapiens</i> e talvez o filho do primeiro <i>Homo sapiens</i> fosse até menos <i>Homo sapiens</i> que seu avô. Mas a ciência precisa catalogar, precisa determinar o momento em que uma espécie se separa de outra na linha evolutiva. Qual foi, então, o primeiro ser a quem Deus decidiu dar uma alma? Se esse ser já era <i>Homo sapiens</i>, mas era extremamente rude, não possuía uma cultura elaborada – mesmo assim podemos dizer que ele já possuía alma? Quer dizer, então, que um dia Deus olhou para os animais de uma linha evolutiva e disse: “você terá a alma que seu pai não teve”? Se acreditamos na evolução como um fato (abundantemente comprovado), sabemos que ela opera através de uma sequência muito longa de gerações. Se a evolução fez o <i>Homo sapiens</i> surgir do <i>Homo erectus</i> e as pessoas acreditam que somente o <i>Homo sapiens</i> possui alma, podemos dizer que o pai do primeiro <i>Homo sapiens</i> (que seria, para fins de organização, um <i>Homo erectus</i>) não possuía alma. Um crente, não constrangido com esse despropósito, dirá que Deus precisava escolher alguém, em algum momento, para colocar alma. Como eu disse, se o filho do primeiro <i>Homo sapiens</i> tiver mais características de <i>Homo erectus</i> que seu próprio avô, mesmo assim ele ganhou uma alma (pelo visto, sem merecer, para os parâmetros do próprio Criador). Seu avô vai apodrecer na terra como todos os outros animais. A ele algo grandioso foi reservado, pois Deus decidiu que a partir de seu pai todos daquela linhagem teriam alma. Deus pode andar de mãos dadas com a evolução? Parece que não.<br />
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<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhx8sjkz1ZsTbNiNOBtlbawKFJNLqdgtdIxjEb9UtqTALGWsSGPxPWXyMJgYts-RUKrPcPY-X7CCb0oGkwbDpAIAt-QiONRF2zHS1DxOdeNf9eKbA5gyNlBE-BlxS_KjjaZR_7qCzG04bER/s1600/The_March.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhx8sjkz1ZsTbNiNOBtlbawKFJNLqdgtdIxjEb9UtqTALGWsSGPxPWXyMJgYts-RUKrPcPY-X7CCb0oGkwbDpAIAt-QiONRF2zHS1DxOdeNf9eKbA5gyNlBE-BlxS_KjjaZR_7qCzG04bER/s1600/The_March.jpg" height="313" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="font-size: 13px;">Alma: somente para o último</td></tr>
</tbody></table>
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<div style="text-align: justify;">
"Repito: os humanos não descendem de macacos. Temos um ancestral em comum com eles. Por acaso, o ancestral comum seria muito mais parecido com um macaco do que com um homem, e provavelmente o chamaríamos de macaco se o encontrássemos, há cerca de 25 milhões de anos. Mas embora os humanos tenham evoluído de um ancestral que poderíamos sensatamente chamar de macaco, nenhum animal dá à luz uma nova espécie instantaneamente, ou pelo menos não a um ser tão diferente de si mesmo quanto um homem de um macaco, ou mesmo de um chimpanzé. A evolução não é assim. A evolução é um processo gradual de fato, e além disso só tem poder explanatório sendo gradual. Enormes saltos numa única geração – como na ideia de uma macaca dar à luz um ser humano – são quase tão improváveis quanto a criação divina, e excluídos de consideração pela mesma razão: estatisticamente improvável em demasia. Seria ótimo se os que se opõem à evolução se dessem o pequeno trabalho de aprender ao menos os rudimentos daquilo a que se opõem". </div>
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(<b>Richard Dawkins</b> em <i>O maior espetáculo da Terra</i>)</div>
<div style="text-align: justify;">
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Nesse mesmo livro, <i>O maior espetáculo da Terra</i>, Dawkins cita uma frase de Darwin, retirada de <i>A origem do homem</i>, que sintetiza bem o que significa a impossibilidade de declarar que exatamente-no-ano-x-tivemos-o-primeiro-autêntico-homem-na-Terra: "Em uma série de formas que passaram de modo gradual e imperceptível de alguma criatura simiesca ao homem como ele hoje existe, seria impossível fixar em algum ponto definido onde o termo 'homem' deve ser usado". </div>
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<div style="text-align: justify;">
Essa explanação pode também levar ao questionamento daqueles que acreditam que “Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança” e ao mesmo tempo aceitam a evolução. Ora, então Deus sempre foi uma entidade "humana" que fez o universo e esperou bilhões de anos para dar vida a uma figura (o homem) que fosse Sua imagem e semelhança? Isso nos leva à ideia de que o homem é a ponta final da evolução, a espécie superior à qual Deus sempre quis chegar. Converse com qualquer biólogo evolucionista sobre a motivação teleológica da evolução e receberá uma aula gratuita para corrigir esse descabimento.</div>
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<div style="text-align: justify;">
[rebatendo argumentos que tentam defender que um macaco é superior a uma minhoca] "'<i>Os macacos [e outros animais "superiores"] são mais hábeis para sobreviver do que as minhocas [e outros animais "inferiores"]</i>'. Isso não contém um pingo sequer de sensatez, muito menos de verdade. Todas as espécies vivas sobreviveram pelo menos até o presente. Alguns macacos, como o mico-leão-dourado, estão em risco de extinção. Têm mais dificuldade para sobreviver do que as minhocas. Os ratos e as baratas prosperam, apesar de serem considerados por muita gente como 'inferiores' aos gorilas e orangotangos, ambos perigosamente à beira de extinção". </div>
<div style="text-align: justify;">
(<b>Richard Dawkins</b> em <i>O maior espetáculo da Terra</i>)</div>
<div style="text-align: justify;">
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O animal mais "evoluído" é o que está melhor adaptado. Um homem está adaptado à terra e tem condições de sobreviver nela. Um cavalo-marinho está adaptado à água e sobrevive bem nela. Troque o ambiente dos dois e verá que o conceito de superioridade não faz sentido. Se repentinamente a Terra for atacada por um corpo estranho e pesado e toda a humanidade morrer, a barata que permaneceu viva e vai procriar certamente se mostrou muito mais "evoluída" por sua surpreendente adaptação. </div>
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<br /></div>
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Essa primeira parte nos leva a algumas ponderações interessantes sobre <i>a ideia de Deus</i> e <i>o fato da evolução</i> serem como água e óleo. Vamos considerar que nem todo mundo percebe Deus e Sua criação do mesmo modo e formular algumas perguntas (comuns e/ou veganas) em cima de alguns casos: </div>
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1. <b>Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que somente o homem (<i>Homo sapiens</i>) possui alma</b> – Deus em algum momento decidiu dar alma a um ser da linhagem e aqueles que viriam a partir dele teriam alma? Isso significa que o pai do primeiro agraciado com alma não tinha alma? Isso também significa que um animal teria parido um animal de espécie diferente da dele e por isso somente o <i>Homo sapiens</i> possuiria alma, e não o <i>Homo erectus</i>? Ou seja, nossos ancestrais não tinham alma, mas de repente passaram a ter? Um rapaz primitivo estava lá, cavoucando um ninho, e de repente recebeu alma, coisa que nem sua mãe, nem seu pai, nem seus irmãos teriam? Uma águia deu o azar de não ter alma só porque não era a imagem e semelhança de Deus? Ou será que a águia só não tem alma porque ela não é capaz de inventar histórias sobre líderes invisíveis reguladores de moral e doadores de almas? Talvez a águia só não tenha alma porque isso não faz nenhum sentido para a sobrevivência e perpetuação dela na Terra. Se isso fizesse, ela teria – senão morreria, mal adaptada por não conceber a noção de alma. </div>
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1.1. Pessoas que creem em Deus muitas vezes tentam explicar a razão de nossos sofrimentos na Terra. São testes, são provações, são coisas sobre as quais Deus não quer decidir agora: mas sofrer aqui pelo bem pode garantir para nós um espaço no céu. Sofremos para obtermos felicidade eterna posteriormente. Nosso sofrimento tem explicação e é efêmero. E o sofrimento dos animais que não têm alma? Qual é o sentido dele? Por que sofrem de graça? Deus acha bom que animais sofram porque não têm alma? Mas eles sentem dor e não serão compensados por um póstumo paraíso que reparará tudo. Por que razão eles sofrem nas mãos uns dos outros e dos humanos? Um leão às vezes leva horas para comer um veado até um ponto em que ele (o veado) não esteja mais ciente do que está acontecendo. Por que esse veado precisa sofrer assim se Deus é tão benevolente e só quer que soframos para que mereçamos o céu (considerando que o veado, sem alma, jamais irá para o céu)? Por que milhares de porcos morrem todos os dias após uma vida miserável sem espaço para se mexer, sem luz, sem comida adequada, sem socialização com outros porcos se esse sofrimento jamais será compensado para eles? </div>
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2. <b>Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que todos os animais possuem alma</b> – suponho que nessa categoria estejam somente veganos, pois achar que os animais possuem alma e comê-los parece um grande desrespeito, já que Deus não permitiria que comêssemos seres com alma (bom, talvez permita, quem conhece o Deus do Antigo Testamento e o do Novo sabe que Ele muda muito de opinião). O que exatamente são "todos os animais"? Todos os seres vivos que pertencem ao reino Animalia? Então um molusco possui alma? </div>
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3. <b>Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução e que somente animais domésticos possuem alma (quando Heitor e Bingo morrerem, irão juntos para um lugar onde não haverá vacas nem porcos)</b> – por que somente seu cachorro e seu gato são seres com alma? Por que Deus não daria alma a um porco, que é mais inteligente que um cachorro? Porcos e cachorros têm um ancestral comum. Em que momento das linhagens um passou a ser tão refinado que mereceu ganhar uma alma em detrimento do outro? Cães vêm de lobos, são quase como lobos domesticados. Se os lobos não têm alma e os cães têm, quer dizer então que Deus decidiu dar alma aos cães só porque eles passaram a viver ao redor e dentro de casas humanas? Alma, então, é apanágio somente de animais domesticados? </div>
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4. <b>Aos que creem que Deus existe e é o responsável pela evolução, mas ninguém possui alma (não há céu, não há inferno, há apenas um Criador, um "ser superior" moralista)</b> – a evolução é perversa. Se Deus está por trás dela, podemos dizer que Deus é perverso? Para que uma espécie dê lugar a outra, algumas vezes acontece uma guerra por território e comida. Darwin se baseou no pensamento de Malthus para teorizar a seleção natural: o crescimento da população ocorre em progressão geométrica enquanto a quantidade de alimentos cresce em progressão aritmética. Assim, não há recursos para todos e disputas pela escassez começam a acontecer. Quando uma ilha, por exemplo, é ocupada por duzentos ratos, mas há somente comida para cem, sabemos que muitos ratos morrerão de fome. Animais mal adaptados a uma mudança climática, a uma alteração no padrão alimentar (uma espécie carnívora passa a viver num lugar em que só há vegetais para comer) ou à seleção sexual costumam sofrer muito antes de morrer. Por que sofrem, se a moral condena o sofrimento sem sentido? E se a moral divina não condena o sofrimento e o tem como natural, por que achamos certo matar galinhas, mas execramos os chineses que matam cachorros? Se é bom que a evolução ocorra "de modo natural", por que preocupar-se com o sofrimento de povos que não têm nada a ver com a propagação dos nossos genes? Por que não concentramos nossas preocupações somente em nossos filhos (ato pró-evolucionário) em vez de sentir pena e querer adotar um abandonado filho alheio (ato antievolucionário)? Sofrer por não estar bem adaptado e morrer em decorrência disso faz parte da evolução.</div>
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Acho que são questões cruciais para pensarmos exatamente que Deus é esse que criamos para acreditar. A frase de Voltaire "se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo", muito usada por cristãos, na verdade tem mais sentido se usada por ateus numa continuação óbvia: "e como Ele não <span style="font-family: inherit;">existe, nós o inventamos". </span></div>
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Um cético não convencido pode se apegar àquele paradoxo de que "é impossível provar a inexistência de Deus, então não podemos nos posicionar como ateus". Não acho impossível provar a inexistência de Deus. Essa é a minha segunda fala em defesa do ateísmo.</div>
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Nós sabemos que o Papai Noel não existe porque sabemos exatamente quem o criou e sabemos que antes dessa criação ninguém tinha necessidade da existência dele e não há relatos sobre ele. Sabemos que uma figura não existe quando descobrimos quem deu origem a ela. Não podemos dizer que alguém, um dia, deu origem a Deus e que essa ideia perpetuou apenas culturalmente, como no caso do Papai Noel. Há casos de civilizações isoladas que tinham seus deuses e os cultuavam como nós cultuamos nosso Deus. Não devem ter aprendido essa religiosidade com outros povos, já que estavam isolados por centenas/milhares de anos. Isso nos dá a entender que Deus parece uma ideia estrutural, fruto das nossas mentes. Mas, esperem, "mente" é uma palavra que pode ser perigosamente abstrata, prefiro usar <i>cérebros</i>. Nossos cérebros (é nessa hipótese que acredito) criaram a ideia de Deus ou de deuses: enfim, nossos cérebros humanos têm necessidade de um criador, seja ele um deus, uma deusa, vinte deuses de formas variadas. Se essa ideia sobreviveu por tanto tempo, pode ser que tenha sido elementar para que nós sobrevivêssemos na história da evolução, e pode ter começado há muito tempo, antes mesmo do aparecimento do<i> Homo sapiens</i>, talvez de modo rudimentar (não tenho muito conhecimento sobre o <i>Homo erectus</i> para dizer se ele já manifestava algum fiapo religioso). Não só isso propiciou a sobrevivência e a perpetuação da espécie (o homem de Neandertal enterrava seus mortos e foi extinto), pois devemos sempre pensar a boa adaptação como um provável conjunto de fatores favoráveis que vão aparecendo gradualmente e conquistando permanência. Só que a religião para o homem parece ter sido, em algum período crítico, como a perna para um aleijado. Portanto, comungo a ideia de que Deus é fruto de nossos cérebros. Como poderíamos provar sua inexistência? Esquecendo aplicações éticas na ciência, poderíamos provar a inexistência de Deus se descobríssemos a região cerebral que precisaria ser "apagada" para que a ideia de Deus também se apagasse. Infelizmente, tal experimento só seria possível se as cobaias vivessem separadas do resto do mundo, sem poder absorver uma cultura já saturada de religiosidade e outras superstições. Sem cultura religiosa e sem aquele pedacinho do cérebro que poderia ser a origem de Deus, descobriríamos se Deus seria apenas uma criação cerebral. Algum desavisado pode dizer: "mas se a ideia de Deus foi importante para que nossa espécie sobrevivesse, os outros animais também precisariam dela para sobreviver". Ora, negativo, cada espécie é um caso e precisa de coisas muitíssimo diferentes para sobreviver se comparada às outras. Uma águia precisou de um bico adunco para sobreviver e não é por isso que eu também preciso. Os animais, ao que parece, não sentem necessidade de Deus. Deve ser por isso que eles não estão nos planos do paraíso. Somente é martirizado pelos desejos de Deus quem acredita na existência de Deus. Bem, tragicamente, quem não acredita também é martirizado, pois vive numa sociedade que consegue misturar até o público com o religioso. É por causa disso que a militância ateísta faz sentido: porque o ateu militante quer que seus pares tenham coerência e conhecimento; ele quer, como o iluminista enciclopedista, que a sociedade em que ele vive possa se esclarecer. Mas isso é outra história.</div>
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E O QUE OS VEGANOS TÊM A VER COM ISSO?</div>
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A evolução moderna nos mostra que somos todos aparentados aos outros animais. Em <i>Freud – além da alma</i>, filme de 1962 com roteiro de Sartre, há bem no início uma fala simples, mas atinada, sobre as três grandes revoluções que abalaram a ideia que o homem tinha sobre si mesmo como superior e central: a revolução causada por Copérnico, ao tirar a Terra do centro do Universo; a revolução causada por Freud, ao tirar o homem do palácio do autocontrole, do livre arbítrio e da vontade consciente; e a revolução causada por Darwin, ao tirar o homem da sua pretensa superioridade diante de outras espécies. Realmente essas três bombas abalaram o que pensávamos sobre nós mesmos. Eu, como vegana, pude sentir o peso da nossa arrogada altivez quando percebi que comíamos carne e usávamos outros animais para roupas e trabalhos forçados justamente porque achávamos que éramos a espécie à qual toda a história da evolução quis chegar. Não me interessa que leões comam carneiros. Não sou um leão e não vou escolher quais as características de um leão que justificarão maus hábitos meus (se querem ser como os leões, não só comam carne, mas comam carne crua, matem seus filhos que nascerem com deficiências, matem filhos de fêmeas que vocês têm em vista, lutem até a morte com machos que estão interessados na mesma fêmea, não trabalhem e passem a maior parte do dia dormindo, à espera de outra caçada). Portanto, faz sentido pensarmos seriamente sobre a evolução se somos veganos.</div>
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Se somos veganos e pensamos seriamente sobre a evolução (lemos sobre ela), a ideia de Deus não faz sentido. Como expus acima, como é que Deus dá alma a um ser e não dá alma a seu pai? Como é que Deus permite o sofrimento em vão dos animais? Não é possível não perceber que falar de Deus atrapalha nossa militância em prol dos animais. Então você pode pensar que fica revoltado com o que acontece, arregaça as mangas, mas mesmo assim espera que Deus acerte as contas no final. Por mais que você negue, isso colocará um pouco de freios na sua atitude. Você continuará indo a churrascos de modo sorridente, compreensivo, tolerando piadas ruins e gastas porque acha que não tem condições de julgar ninguém e quem vai julgar é Deus. (Interessantemente, duvido que você seria tão plácido e risonho se um vizinho que mata um gato por dia, com as próprias mãos, convidasse, de maneira polida [ele odeia gatos, mas simpatiza com você e com outros humanos], você para um café com <i>cupcake</i>, mesmo que o <i>cupcake</i> fosse vegano.) Se Deus estivesse agindo, não precisaríamos assinar petições diariamente.</div>
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Os animais não acreditam em nosso Deus. A porca que está há mais de um ano deitada na mesma posição, recebendo ração no gargalo, parindo dez porquinhos uns atrás dos outros sem sequer poder cheirá-los e cuidar deles não quer saber de Deus, de justiça divina, de pagamento póstumo. Ela gostaria que os humanos, que não são carnívoros (por mais que repitam essa baboseira como uma oração), parassem de explorá-la, até porque eles não dependem da carne dela para sobreviver e ter saúde. Quando esperamos que Deus faça alguma coisa, esperamos que um duende transforme o mundo para nós. Perdemos energia. Perdemos tempo. Nós só temos essa vida aqui (que é maravilhosa e possui muito significado se soubermos aproveitá-la, sem que Deus precise estar aí para conferir sentido à nossa morte – vamos amar os animais como nossos irmãos e aceitar que morreremos exatamente como eles), os animais só têm essa vida. Rezar, colocar nas mãos de Deus jamais fará um animal sair de sua condição miserável. Deus é um delírio, um atraso, uma acomodação. É claro que não é obrigatório que um vegano se torne ateu. Mas que ajuda, ajuda. Tanto para o próprio vegano quanto para os animais.</div>
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"Se Deus conhecia de antemão os pecados de que a humanidade seria culpada, Ele foi, então, claramente responsável por todas as consequências desses pecados quando decidiu criar o homem".</div>
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(<b>Bertrand Russell</b> - Matemático e filósofo ateu) </div>
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Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7065490257644705201.post-41601032166606979522014-09-16T00:47:00.001-04:002014-09-21T22:31:04.268-04:00Editoras<div style="text-align: justify;">
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Sou maníaca por editoras. Tenho as minhas preferidas. Às vezes elas me decepcionam. Por exemplo, fico chateada (de verdade) quando uma editora realmente excelente publica o livro de um autor péssimo ou "das massas". Como trabalho em uma biblioteca pública e entendo de livros de algumas áreas (para outras sou uma anulação: até hoje não me familiarizei com os livros do setor 658, que é o da Administração, e sempre me pergunto como é que essa área pode ter tantos livros se tudo parece tão igual... e entediante), participo dos pedidos de livros. Pesquiso os dados do livro em sites de livrarias virtuais - geralmente na Saraiva, que é uma das mais completas no Brasil - e coloco na planilha de compras. Também peço livros que não me agradam em nada, mas são populares. Foi assim, pesquisando alguns livros que estavam na caixa de sugestões da biblioteca (porque também temos que atender aos pedidos dos alunos), que encontrei uma "obra" desse manipulador barato chamado João Verde publicada pela Martins Fontes. Martins Fontes publicando João Verde. Foi revoltante. Eu achei que a Editora Intrínseca é que tinha detido todo o poder sobre as páginas desse cabeça-de-vento. </div>
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A Martins Fontes é uma dessas editoras que me agradam. O material é bom, as traduções costumam ser feitas por gente competente e costumam ser elogiadas por quem entende de traduções (não eu, infelizmente, que fico apenas bebendo do conhecimento alheio). No meu site (blog) favoritado "Não gosto de plágio", da Denise Bottmann, não há menções negativas sobre a Martins Fontes quanto a cópias ou erros de tradução. Muitos dos livros sérios que eu compro são da Martins Fontes e não me lembro de ter visto qualquer erro gramatical neles. Prezo muito esse compromisso com a norma culta. Mas é um pouco desanimador saber que mesmo uma editora tão singular tenha que se prostituir para conseguir se manter no mercado. É claro: se publicar os livros do João Verde fizer com que a Martins fique segura enquanto empresa e fizer com que consiga manter a sua coleção de livros bons, não me oporei tanto a isso. Só que não consigo ficar menos chateada. Talvez ela já tinha essa linha anteriormente e eu não sabia. Nem quero pesquisar muito sobre isso agora. </div>
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<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhThwH2-RfphBE6TaYRLQSsSkQUGDHvbmL0jzhbGnJWBnz0KJqCv3JBKVLjcgzCJyfY7FxhqauWSfDOM5ulurnafCGZ-5ww5pa5bePPLXMkRA9cfiJ4welB2tycr4EuVCcI9XJQWkVlz-F2/s1600/schopenhauer.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhThwH2-RfphBE6TaYRLQSsSkQUGDHvbmL0jzhbGnJWBnz0KJqCv3JBKVLjcgzCJyfY7FxhqauWSfDOM5ulurnafCGZ-5ww5pa5bePPLXMkRA9cfiJ4welB2tycr4EuVCcI9XJQWkVlz-F2/s1600/schopenhauer.jpg" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Coleção de textos de Schopenhauer<br />
lançada pela Martins Fontes</td></tr>
</tbody></table>
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Quando alguém me diz que comprou um livro (muito raro; todo mundo acha que livros são caros), logo pergunto qual é a editora. É um filtro de extrema importância. Você consegue respeitar alguém que é adulto e compra livros da Martin Claret? Estamos falando de alguém que está atrasado quanto a informações essenciais sobre editoras; ou de alguém que não presta atenção no que lê (num livreto da Claret é possível achar <i>dezenas</i> de erros de ortografia - quem é que continua lendo um livro com erros ortográficos?); ou de um muquirana. Não entendo como um indivíduo que se considera inteligente pode querer encher suas prateleiras com material de quinta categoria que manda a gramática às favas e traduz textos alemães da versão espanhola da versão inglesa. Deve ser o mesmo indivíduo que só sai para comprar livros quando o cofrinho se encheu de moedas. Isso, claro, porque nem cheguei na questão do plágio. Não é só a Denise Bottmann que faz inúmeras postagens sobre a falta de vergonha da Claret em copiar traduções alheias. Esse é um assunto fácil em corredores de universidades. Se essa editora publica algum livro "bem traduzido", tenha certeza: é plágio. Mais algum defeito? Claro. Sou uma amante da estética dos livros. Livro bom é livro com conteúdo responsável. Livro ótimo é livro com conteúdo responsável e uma adequação estética bem pensada. A fonte em que a Claret edita é horrível, o papel que ela usa nas páginas nem fanzines anarcopunks usam, as capas são antiquadas (as imagens sempre me remetem a romance espírita, astrologia, feng shui ou lendas de cavaleiros). Será possível elencar mais defeitos para influenciar as pessoas a pararem de dar dinheiro para essa porcaria? Deve ser, mas não quero pensar sobre isso agora. </div>
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Há as editoras que já foram boas e se perderam um pouco, como a Rocco e a Círculo do Livro. Os livros da boa fase delas podem ser encontrados em sebos; um ou outro de qualidade da Rocco é que foram publicados há poucos anos. (Na verdade, a Círculo nem existe mais.) Não são editoras perfeitas, é preciso dizer. Até hoje sinto muito desgosto ao ter que recomendar para colegas um livro excelente com uma capa desabonadora. É o caso de <i>Memórias de uma menina católica</i>, da Mary McCarthy pela Círculo do Livro. A introdução é um sonho de qualidade, a narrativa faz você parecer o anjo invisível da autora (o livro é uma autobiografia com doses de ficção): você está ali sentado no sofá vendo a Mary criança ser maltratada pelo padrasto que era o mestre das torturas psicológicas, você está ali no carro quando a Mary adolescente tem sua primeira relação sexual, você se emociona com o amor que ela tinha por escritores antigos no tempo do colégio. E então a capa do livro mostra três daminhas de honra, sendo que a do meio faz uma cara "sapeca". Se eu não conhecesse a autora de antemão, acharia que aquele livro era sobre as travessuras de uma garotinha no colégio interno. Eu jamais compraria esse livro se antes não tivesse lido <i>O grupo</i>. Tenho que adivinhar que há gente insensível projetando o design de bons livros dentro de uma editora? Como vou me arriscar na compra de um livro em que a capa manda a mensagem subliminar "lixo<i> mainstream</i>"? </div>
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<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIHLcZSp-FVk0u13cU69z8JQ-u_0cWUQrkZ7BCiMOFOzf7OJvrVxdQFNcGp1TWFwyX4h1D1WUQeD-s9Vlli5kMIl8xsQWPCnuvJTwRObs_txvc4s_sAAlozM2nSjLILQHd_RN-_brD7oDU/s1600/mem%C3%B3rias.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIHLcZSp-FVk0u13cU69z8JQ-u_0cWUQrkZ7BCiMOFOzf7OJvrVxdQFNcGp1TWFwyX4h1D1WUQeD-s9Vlli5kMIl8xsQWPCnuvJTwRObs_txvc4s_sAAlozM2nSjLILQHd_RN-_brD7oDU/s1600/mem%C3%B3rias.jpg" height="320" width="226" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Um livro que grita: "essa capa<br />
não me representa"</td></tr>
</tbody></table>
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Algumas editoras publicam livros bons e livros ruins quase na mesma medida. Acho que essa é a realidade da Record. Tenho livros boníssimos feitos por ela, como livros do Stephen Jay Gould e do Matt Ridley, mas sei que ela não está nem aí para a publicação de material fácil. Por muito tempo a Record era responsável pela publicação dos livros do Sidney Sheldon, por exemplo. Hoje, ela é um grupo editorial onde encontramos nomes de outras editoras boas, como José Olympio e Civilização Brasileira, e de editoras fracas. Mas (alguma editora que não mereça um mas?) é outro nome envolvido em fraudes de traduções, como mostra uma postagem da Denise Bottmann <a href="http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2012/05/o-momento-talvez-fundamental-da-record.html" target="_blank">AQUI</a>. Por muito tempo, a Record publicou livros de diversos autores em que se lia na capa "tradução de Nelson Rodrigues". Era mentira. Nelson não sabia inglês e Ruy Castro escreveu, em <i>O anjo pornográfico</i>, que o biografado era "o mais acabado monoglota da língua portuguesa" (isso tudo li lá no <b><a href="http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/" target="_blank">nãogostodeplágio</a></b>; recomendo esse blog com direito a puxada de braço e ranger de dentes na orelha). Por que a farsa? Porque <i>muita gente</i> compraria um livro traduzido por Nelson Rodrigues, o polêmico interessante da época. E é muito engraçado ter lido hoje sobre a fraude, porque esses dias eu peguei na mão um livro "traduzido" por Nelson Rodrigues. Infelizmente não me recordo se foi aqui, se foi na biblioteca, se foi na casa do meu namorado ou se foi numa livraria. Só posso dizer que esses livros ainda circulam por aí. </div>
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A Companhia das Letras também é mista. Mesmo assim, merece quase todo o meu respeito. Seus livros sobre ciência, literatura e filosofia estão muitas vezes entre os mais recomendados para leitura (se não for possível ler os originais). A nova tradução da coleção de obras do Freud, primeira tradução do alemão (a tradução da Imago usava muito a versão inglesa como referência), feita pelo Paulo César de Souza, é de chorar de encantamento. O texto foi bem trabalhado - você está lendo psicanálise mas se sente lendo uma deliciosa literatura (Freud escrevia lindamente e Souza traduziu com cuidado para não perder os instantes de poesia) - e os livros são esteticamente maravilhosos. O papel é perfeito, a fonte e o tamanho dela são perfeitos, as imagens das peças arqueológicas da coleção de Freud são uma sublime ideia. </div>
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Os livros de história publicados pela Companhia das Letras também costumam ser muito bons. É uma editora que não me faz sentir arrependimento por ter comprado material cuidado por ela. Para estar mais perto da perfeição, bastaria que também não se rendesse ao mercado extremamente popular. Mas o que é que se vai fazer se é esse tipo de livro que gera mais lucros? </div>
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<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjI3cegfNtRz1cL70ZsVEMwlKr6JHGYXMuumnX35Vx3MLRbnZH89i6w7yBbka3BJsJTtKWG1WdT9aaWzmynuRHbHGNHApCwQPJ61VTg3KtwnllIbPyl9sGCm-6SgEHUE12NLJmCm9IyM_90/s1600/hist%C3%B3ria_da_vida_privada.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjI3cegfNtRz1cL70ZsVEMwlKr6JHGYXMuumnX35Vx3MLRbnZH89i6w7yBbka3BJsJTtKWG1WdT9aaWzmynuRHbHGNHApCwQPJ61VTg3KtwnllIbPyl9sGCm-6SgEHUE12NLJmCm9IyM_90/s1600/hist%C3%B3ria_da_vida_privada.jpg" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Quinto e último volume da ótima coleção <i>História da<br />vida privada</i>, pela Cia das Letras</td></tr>
</tbody></table>
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Não lembro de ter ouvido ou lido reclamações sobre a qualidade das traduções da Cosac & Naify. Espero que seja isso mesmo. Apesar de manter uma linha editorial bem pitoresca, a Cosac consegue publicar excelentes livros. De vez em quando, no meio de dúzias de novidades sobre moda e arte, surge um bom livro de antropologia. Preciso falar da beleza dos livros? Preciso. Cada livro tem uma produção artística única que diferencia a Cosac de outras editoras. Nunca vi livros tão lindos. Alguns reclamam que essa beleza custa caro. Eu, particularmente, não me importo de pagar por ela e não acho que seja cara. Se eu quisesse ler material visualmente feio, baixaria esses arquivos que são cópias de livros, só que sem formatação. Leria no computador. Não me importaria em ver um texto em prosa digitado em formato de verso; texto que foi tirado de um livro mas que eu sequer posso citar porque não está digitado conforme a paginação do livro. Tiraria fotocópia dos livros que me interessam. Não ficaria escandalizada com o papel vagabundo que certas editoras de quintal usam para publicar seus materiais. Entendo que alguns leitores não façam muita questão de agrado visual. Eu faço. Um livro bom com uma capa feia me dá coceira. Um livro bom publicado numa fonte medonha me faz perguntar para que um funcionário é pago para escolher a fonte de uma obra se ele não tem a mínima noção de bonito e feio, pertinente e impertinente, agradável à leitura ou desagradável. </div>
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<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj90iEupWRB5f-PDQzYqpW7Aifh_8XZe03GdeFAb2HdFNxA_zS83S4kRSe1AelpchokqxpOAEmlsdXAvVo-4-v8uqs50K9mhJFehyVmZUSkfW0ut11hK1atonw4iI1nPKcd0zyPbAoxzrHe/s1600/scorsese.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj90iEupWRB5f-PDQzYqpW7Aifh_8XZe03GdeFAb2HdFNxA_zS83S4kRSe1AelpchokqxpOAEmlsdXAvVo-4-v8uqs50K9mhJFehyVmZUSkfW0ut11hK1atonw4iI1nPKcd0zyPbAoxzrHe/s1600/scorsese.jpg" height="320" width="249" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Conversas com Scorsese</i>, da Cosac & Naify</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: justify;">
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Por ser assim maníaca por editoras e gostar de ponderar cada coisinha que elas fazem, há livros que ainda não li porque não foram publicados por uma renomada editora. <i>A origem das espécies</i>, por exemplo, foi publicada pela Hemus, pela Ediouro, pela Martin Claret e pela Escala (Fahrenheit 451 seria viver num mundo onde só pudéssemos ler livros dessas editoras bizarras). Todas as traduções têm problemas. Ou espero que a Companhia das Letras nos dê a graça de publicar essa obra após tê-la colocado nas mãos de um bom e ético tradutor, ou terei que ler a obra no original. Não gostaria de ter que fazer isso ainda. Não tenho preparo para ler um livro em inglês cheio de termos técnicos. Só estou paciente porque o que mais me interessa na evolução é o caminho que ela está traçando nas últimas décadas (digo, o que evolucionistas têm dito sobre ela nas últimas décadas), e não tanto especificidades incompletas do livro de Darwin. Não sei se me entendem. Darwin foi magnífico. Seu trabalho é uma das maiores revoluções da ciência. Mas há diversos pontos de suas ideias que estão defasados. Eu quero primeiro conhecer a evolução tal como ela está na modernidade, para depois ler sua obra-catapulta. Minha escolha me permite ficar tranquila em relação a ainda não termos uma boa tradução dessa obra lançada por uma editora de renome (apesar de isso parecer um absurdo, pensando e pesando bem as coisas...). Não me importo muito em esperar. Tenho dezenas de livros sobre evolução na minha fila de leitura, e muitos desses livros estão sempre fazendo referência a trechos de <i>A origem das espécies</i>. </div>
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Eu poderia falar de mais algumas editoras, mas acho que o que expus acima deixa bem clara a mensagem que estou tentando passar. Se você não compra comida de qualquer marca baratinha desconhecida, também não compre livros de editoras baratinhas. Há um motivo para livros bons serem mais caros. Não é só por causa do papel bonito que os livros do Dostoiévski da Editora34 são mais caros que os livros dele publicados pela Martin Claret. É melhor ter poucos e bons livros do que ter quatro paredes repletas de porcarias. </div>
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Sobre os sovinas que vivem reclamando do valor dos livros, falarei em alguma outra postagem. </div>
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P.S.: uma editora que é uma exceção porque consegue fazer muitos livros baratos e bons é a L&PM Pocket. </div>
Barbara Maidelhttp://www.blogger.com/profile/01744139821530567375noreply@blogger.com