terça-feira, setembro 08, 2015

A biblioteca esquecida de Hitler - Timothy W. Ryback

“Ele foi, é claro, um homem mais conhecido por queimar livros do que por colecioná-los. Contudo, na época de sua morte, aos 56 anos, estima-se que possuísse cerca de 16 mil volumes. Em qualquer medida, uma coleção impressionante: primeiras edições das obras de filósofos, historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas”.

Este homem é Adolf Hitler, e é assim que começa o prefácio do interessante A biblioteca esquecida de Hitler: os livros que moldaram a vida do Führer, do historiador Timothy W. Ryback. Comprei esse livro em julho de 2013 (costumo anotar no livro a data de compra), mas o li apenas agora (e pretendo começar a anotar no livro a data de leitura embaixo da data de compra, para que no futuro eu não me perca na minha própria história como leitora), em agosto. O título é chamativo, e talvez alguém possa se perguntar por que não li esse livro antes de saborear a recomendação feita pelo colunista e cientista político português João Pereira Coutinho, na Folha, mas eu tenho em casa tantos livros não lidos (todos aparentemente bons; não cometo mais o erro de comprar livros ruins por puro colecionismo) que ficava difícil uma obra sobre Hitler reaparecer na lista de leituras próximas. Eu sabia que leria esse livro quando voltasse a ler sobre Segunda Guerra Mundial. Na última vez em que procurei me “especializar” nesse assunto, estava no último ano do ensino médio e tomei emprestada uma porção de livros do tipo na biblioteca do colégio, além de ter comprado uma ou outra coisa no sebo. De lá para cá, li algumas coisas sobre Hitler e Segunda Guerra, mas nada tão intensivo. O tema sempre me instigou, mas eu tinha duas pulgas atrás de cada orelha sobre ele: primeiro, há muita gente bronca que não estuda nada de história, mas sente fascínio – um fascínio quase fetichista – sobre a II Guerra, e isso me desestimulava; segundo, conheci um ou outro (por que estou sendo aveludada?, conheci vários) patife que foi cursar História porque “gostava da II Guerra Mundial” e pretendia, já no final da graduação, escrever monografias sobre: e, não, não era vinculando a participação brasileira na II Guerra – era mesmo um pensamento calouro de quem não atenta que pesquisa acadêmica não é trabalho escolar em que você escreve um “estudo” sobre Hitler sem saber inglês, sem saber alemão e sem sair do conforto da sua morada numa cidade do interior. (Também cometi esse erro primário: cheguei à faculdade de Ciências Sociais – que não finalizei – jurando que meu trabalho de conclusão de curso seria provando que Deus era uma farsa. Felizmente, já nos primeiros meses alguns professores realistas, jardineiros da selva de pedra, vieram com suas tesouras de poda e me colocaram no lugar de raminho novo que eu era.) Evitando um pouco a II Guerra, eu estava fugindo do tema que é o pretinho básico da história, o tema que é escolhido como pauta de interrogatório quando você conta a leigos que é formado em História: ninguém quer saber por que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea ou se o estudo de Peter Gay sobre Freud é respeitado entre historiadores renomados – todos querem entender o nazismo. Para parecer um singular historiador entre não-historiadores, basta apostar a maioria das fichas nisso. Mussolini não exerce nem um quinto do encanto de Hitler. Nem Stálin, outra aberração política que mereceria o mesmo espanto.
 
Quando a II Guerra chegava ao fim e Hitler se preparava para a derrota do modo mais eficiente possível – cometendo suicídio –, milhares de livros seus eram deixados para trás. Terrivelmente, a maioria foi queimada ou sumiu. O trabalho de reconstituição de personalidade que historiadores passaram a fazer baseados nas leituras do antigo Führer apresentou inúmeras lacunas, e certamente muitos livros essenciais – livros com “intromissões a lápis”, na ótima expressão de Ryback – ficaram entre os sumidos. Pior: devem ter ficado entre os queimados. Um livro sumido é recuperável, tanto é que muitos livros de Hitler surrupiados por soldados americanos e soviéticos foram devolvidos posteriormente para bibliotecas temáticas e arquivos, mas um livro queimado não pode ser estudado: o fato de o corpo do ditador ter sido queimado após o suicídio impediu que estudiosos o dissecassem (do ponto de vista dos nazistas, foi sábio cremá-lo antes que as forças inimigas pudessem ostentá-lo como troféu e dispor dele como bem entendessem), assim como a ausência desses livros queimados nos impede de entender a plenitude da influência que Hitler, um leitor assíduo, sorveu de cabeças alheias. 



A biblioteca esquecida de Hitler perfaz a história do Führer desde 1915, quando ele era cabo do 16º Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro, então com 26 anos, até sua morte, em 1945. A busca de Hitler por vingança – não somente por causa da humilhação sofrida pela Alemanha após a Primeira Guerra, mas também pela falida vida pessoal –, sua importância dentro do Nacional-Socialismo que surgia, a ascensão ao poder e as decisões militares tomadas no decorrer da Segunda Guerra fazem sentido nessa obra quando vinculadas a leituras, principalmente. Não é uma história genérica sobre o Nazismo, mas uma história de como livros ajudaram a construir um dos capítulos mais negros da história mundial. Ao escrever um capítulo dedicado ao que seria o terceiro livro de Hitler (Mein Kampf teve dois volumes, um sobre vida pessoal e outro sobre política, lançados em tempos diferentes e por isso considerados como dois títulos) – livro que ele, Hitler, ficou aliviado de não ter publicado porque teria atrapalhado sua guinada no governo – Ryback escreve brevemente sobre o momento da ascensão:

“Um ano após completar o que se tornaria o Alvo nº 589, Hitler viu suas possibilidades políticas, tão sombrias no verão de 1928, mudarem drasticamente. Em 3 de outubro de 1929, Gustav Stresemann sofreu um violento ataque cardíaco. Três semanas depois, a Bolsa de Nova York despencou, e com esta a economia alemã. A popularidade de Hitler disparou. Não mais ocioso pela marginalização política, Hitler abandonou a carreira de escritor. Em três breves anos, se tornaria chanceler da Alemanha”.

Esse trecho encerra um capítulo. Quem quiser saber mais detalhes da transição de Hitler das sombras para a cabeça do governo terá que procurar outras bibliografias. Não é, portanto, um livro sobre a II Guerra. É um livro sobre livros, com a II Guerra como pano de fundo da maior parte dos capítulos.

Um autor que acompanha todo o livro é Walter Benjamin e seu ensaio Unpacking my library: a talk about book collecting. Pensei que não fosse encontrá-lo em português, até porque não me lembro de ter ouvido falar de algum texto do Benjamin sobre coleções de livros, mas existe: o ensaio está na compilação Obras escolhidas II: rua de mão única, lançada pela Editora Brasiliense. Já encomendei, e já sei de quase tudo que trata, pois Ryback busca uma porção de excertos desse texto para basear o sentido da existência de bibliotecas particulares, a relação entre o colecionador e seus livros e como tudo isso tem a ver com Hitler. Benjamin era um adorador de livros. Consequentemente, um colecionador. Faz todo sentido (e cria um notável embelezamento) que Ryback vá tomando aquele ensaio para abrir e fechar assuntos, costurando-os:

“Walter Benjamin certa vez disse que dá para saber muita coisa sobre um homem pelos livros que ele mantém: seus gostos, seus interesses, seus hábitos. Os livros que guardamos e os que descartamos, os que lemos bem como os que decidimos não ler, dizem algo sobre quem somos. Como um judeu alemão crítico da cultura nascido numa época em que era possível ser 'alemão' e 'judeu', Benjamin acreditava no poder transcendente da Kultur. Acreditava que a expressão criativa, além de enriquecer e iluminar o mundo que habitamos, também proporciona a argamassa cultural que liga uma geração à próxima, uma interpretação judaico-germânica do antigo ditado ars longa, vita brevis”.

É possível saber muito sobre Hitler analisando a biblioteca que expandiu ao longo dos anos, vendo os livros em que fez questão de se intrometer com seu lápis – marcando trechos, colocando pontos de exclamação ou de interrogação ao lado de parágrafos –, os livros que não apresentam muitas intromissões, mas possuem sinais de manuseio, e os livros que não leu. Os livros que não leu foram inúmeros, até porque muitos deles só se juntaram à coleção como oferenda: além disso, havia um filtro para esses presentes que o Führer deveria receber, e só uma parte do que queriam dar a ele chegava, de fato, ao seu acervo (sem o filtro de assessores, a montanha seria muito maior). Em dado momento, Benjamin é revivido em sua análise para nos lembrar que dificilmente os bibliófilos leem todos os livros de suas coleções – na verdade, segundo estima Benjamin, e de acordo com “fontes confiáveis”, esses colecionadores costumam ler apenas dez por cento das obras que possuem. Ocorre que a análise feita em cima do acervo de Hitler que restou deixa passar inúmeros livros que devem ter sido queimados, mas que foram fundamentais na vida do ditador. Hitler não leu dez por cento dos livros que pesquisadores estudam, já que boa parte dos livros desapareceu, e sim dez por cento de uma biblioteca que só podemos supor. Há uma avaliação de Ryback (avaliação que João Pereira Coutinho faz questão de frisar em sua coluna para mostrar que Hitler, apesar de ávido leitor, lia muitas coisas medíocres e não se aprofundava em filosofia, por exemplo) que considero um pouco receosa: a de que Hitler só usou nomes como Nietzsche e Schopenhauer de forma superficial em seus discursos e elogios, e que associá-lo com eles é um tanto suspeito.

“Embora não haja razão para duvidar que possuía exemplares das obras de Schopenhauer, encontrei um só volume desse filósofo entre os livros remanescentes de Hitler, uma reedição de 1931 de uma tradução feita por ele de A arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, do jesuíta do século XVII Baltasar Gracían. Essa edição em encadernação barata, de 92 páginas, é tão modesta no tamanho que o ex-libris de Hitler preenche toda a contracapa. O indício mais sólido da centralidade de Schopenhauer na vida de Hitler é o busto do filósofo descabelado que Hitler exibia em uma mesa no seu escritório em Berghof”.

O que eu me pergunto é: seria Hitler tão pedante a ponto de colocar, em seu escritório, o busto de um filósofo que ele mal leu? O fato de Hitler ser odioso moralmente não faz com que ele seja automaticamente absurdo em outras searas. Tratando-se de um leitor crônico, também fica difícil suspeitar que ele, como tantos, se aproveitou de uma figura e louvou essa figura até em pequena estátua por pura vaidade fraudulenta. Sendo ele uma pessoa que não lê, eu não duvidaria da empáfia desse oportunismo intelectual. Como era um leitor contumaz, apenas acho que se poucas obras de autores que ele tanto citava, como Schopenhauer e Nietzsche, foram encontradas, pode ser porque elas estavam entre os livros perdidos.

Leni Riefenstahl, atriz e cineasta que dirigiu, em 1934, o tributo ao Partido Nazista Triunfo da vontade, e, pouco depois, Olympia, o documentário em duas partes sobre os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, foi, por muitos anos, estimada por Hitler. Segundo conta, teve uma desavença com ele ao comentar sobre alguns amigos judeus que estavam tendo problemas com o governo, mas desculpou-se por sua intromissão em assuntos políticos presenteando-o com a primeira edição das obras completas de Fichte, encadernadas em couro branco. Foi ela uma das fontes que assegurou o gosto de Hitler por Schopenhauer:

“Riefenstahl proporciona um relato igualmente eloquente, mas contraditório. 'Tenho muita coisa a pôr em dia', Riefenstahl lembra que Hitler contou no conforto guarnecido de livros de seu apartamento na praça Príncipe Regente. 'Na minha juventude, não tive os meios ou a possibilidade de obter uma educação adequada. Toda noite leio um ou dois livros, mesmo quando vou para a cama tarde'. Ele disse que aquelas leituras constituíam sua fonte básica de conhecimentos, a essência de que derivava seus discursos públicos. 'Quando se dá também se precisa tirar, e eu tiro o que preciso dos livros', ele disse. Quando Riefenstahl perguntou a Hitler o que gostava de ler, ele teria respondido: 'Schopenhauer'.
'Nietzsche não?', Riefenstahl perguntou.
'Não, não consigo aproveitar muito Nietzsche', Riefenstahl lembra que Hitler respondeu. 'Ele é mais artista do que filósofo; falta-lhe a compreensão cristalina de Schopenhauer. Claro que valorizo Nietzsche como um gênio. Ele escreve talvez a linguagem mais bonita que a literatura alemã pode oferecer atualmente, mas não é o meu guia'”.

Páginas antes, Ryback coloca uma nota de rodapé comentando que Steven Bach, autor de uma recente biografia de Leni Riefenstahl, sugere a necessidade de cautela com os relatos dela, já que era “uma narradora nada confiável”. Eu inquiro: mas o que ela teria a ganhar mentindo sobre isso? Pessoas mentirosas, desde que não sejam mitômanas, costumam mentir para se livrar de um problema, para criar problemas para outros ou para conseguir alguma coisa. Se fosse para Riefenstahl, narcisista, mentir sobre algo, talvez preferisse mentir sobre seus feitos ou dizendo que chegara a se preocupar com a situação dos judeus na época do nazismo. Mas de que problema ela estaria se livrando ou que coisa ela conseguiria inventando o diálogo que teve com Hitler sobre Nietzsche e Schopenhauer?

Outra razão para Ryback considerar que Hitler não fora um grande leitor de Schopenhauer foi o fato de ter encontrado o nome do filósofo grafado de forma errada em “anotações sobreviventes de discursos manuscritos”, com dois “p”: “Schoppenhauer”. Como é que alguém que admira tanto um teórico não sabe escrever o nome dele? Mas parece que não era privilégio de sobrenomes germânicos complicados receberem má escrita de Hitler, pois mesmo palavras simples eram grafadas de maneira incorreta. O Führer chegou a escrever erros que seriam equivalentes ao nosso “prizão” e “presado”, palavras que eram corriqueiras nos livros que lia. Nem sempre quem lê vorazmente presta atenção no que lê, na formação das palavras e na composição das sentenças. Hitler, leitor, tinha problemas com a ortografia de seu idioma e não dera muito certo como escritor: Mein Kampf teve que passar por severa revisão antes de ser publicado. Por isso, humildemente, não considero que grafar erradamente o nome de Schopenhauer seja forte indício da falta de leitura e que a apropriação de saber foi rasa.

Há, claro, algumas situações estranhas, mas são estranhas como a humanidade. Por exemplo, o fato de Hitler admirar tanto Fichte. Como Hitler poderia admirar Fichte e Schopenhauer se Schopenhauer possui bons e claros textos desprezando completamente a contribuição de Fichte para a filosofia? Seu ódio por Fichte talvez só fosse menor que seu ódio por Hegel, então será que isso não seria um indício de que Hitler não leu Schopenhauer de verdade? Essa questão é minha, não está no livro. Mas Ryback apresenta outra coisa que pode depor contra o Hitler schopenhaueriano: diz-se que ele levara O mundo como vontade e representação para ler no front enquanto era estafeta. Ryback duvida que ele tenha perambulado em meio à guerra com um calhamaço daqueles. Mas eu volto a perguntar: e por que isso desabonaria o possível gosto de Hitler por Schopenhauer? Eu mesma não li essa obra (tenho-a há anos, mas permanece na estante como um livro inescrutável para o qual ainda não me sinto preparada) e me considero no direito de me declarar uma amante de Schopenhauer “somente” porque li e reli todas as belas compilações que a Martins Fontes publicou das ideias dele. Não é preciso ler toda a obra de alguém para se poder declarar, com justiça, admirador desse alguém. Talvez Hitler não gostasse de colóquios muito metafísicos e preferisse o Schopenhauer que fala sobre matérias de ordem prática. Logo, não vejo como mesmo essas situações pontuadas por Ryback podem quase provar que Hitler era uma fraude em suas menções ao filósofo como um de seus mentores intelectuais.

Como apreciadora de Schopenhauer, é claro que eu não acho agradável que eu mesma esteja forçando as pessoas a acreditar que Hitler, um ditador megalomaníaco que estava disposto a matar milhões de pessoas para alcançar seu ideal de povo superior, também apreciava Schopenhauer. Mas história é isso: ela é o que é, e não o que queremos, com nosso moralismo e nossas desculpas, que ela seja. Já reparei em alguns bons livros de escritores mais antigos que costuma haver uma vontade do editor e do tradutor para fazer com que nós, leitores, perdoemos autores que tinham pensamentos antiéticos no passado. Explico: peguemos, por exemplo, um livro de Nietzsche, uma passagem em que ele deixa bem claro, talvez, que considera as mulheres inferiores. Não tardaremos encontrar comentaristas e estudiosos revolvendo outros fatos da vida dele que mascarem essa discriminação. Você lerá ou ouvirá desses aduladores: “apesar desta passagem parecer preconceituosa, na verdade Nietzsche não pode ser chamado de machista, pois em outro momento, ao encontrar uma mulher inteligente, ele disse que mulheres podem ser etc.” Isso é só um exemplo. Meu ponto aqui é mostrar que amamos tanto certos teóricos que queremos sacralizá-los. “Nesta passagem, Schopenhauer parece mostrar asco por índios, chamando-os de primitivos, mas há um outro momento em que ele elogia comunidades indígenas etc”. Tenta-se poupar Schopenhauer de qualquer fiapo que ligue um filósofo que respeitamos a um juízo antiquado que depreciamos. Tenta-se poupar qualquer sujeito canonizado de qualquer maculação muito severa, sendo “desculposo” em nome de um autor antigo que vivia em outra sociedade, numa outra época, com outro espírito social. Como mulher que lê Nietzsche no século XXI, sinto-me mal ao ler as más referências que ele faz ao meu sexo? Concordar, não concordo, mas não passo mal, nem de longe. Eu entendo que ele vivia em outro universo e não tinha obrigação de ser pioneiro em tudo, não era todo o assunto que ele abordava que precisava se transformar em ouro. Passar mal eu passaria se alguém que vive na mesma sociedade que eu levantasse aquelas ideias como se fossem teses perfeitamente aplicáveis a este tempo. Ao tentar, com insistência, poupar Nietzsche e Schopenhauer de terem sido lidos por Hitler, acho (apenas acho) que Ryback está fazendo como tantos estudiosos que temem macular nomes sagrados ligando-os a discípulos pérfidos. Esse mau julgamento social por causa da vinculação entre um e outro não deveria querer dizer nada, pois Schopenhauer não tem culpa daqueles que o leram, e se o leram errado. Ryback mesmo aponta em alguns episódios que Hitler era um leitor estúpido porque procurava nos livros meras ratificações melhor teorizadas para aquilo que ele já pensava. Não era um leitor de mente aberta disposto a mudar suas opiniões caso argumentos fundamentados provassem que ele estava equivocado. Na idade adulta, colhia o que já estava disposto a colher, não demonstrava alterar radicalmente o que reputava: já tinha uma ideia troncal e os livros só permitiram que a partir disso ele desenvolvesse galhos. Assim, se leu Schopenhauer, deve ter passado por diversos pareceres que execrou. Roubou o que queria e moldou sua oratória com isso. Não cabe a ninguém querer sofrer com essa ligação tortuosa, posto que em nenhum lugar de sua obra Schopenhauer, por mais misantropo que fosse, defendeu genocídio (pelo menos até onde li). Se fosse o caso, talvez pudéssemos nos alarmar. Mas se fosse mesmo o caso, provavelmente Schopenhauer nem teria adquirido a grandeza que adquiriu.

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Max Osborn era um crítico de arte alemão aclamado no começo do século XX. Em 1915, ocioso em sua posição de soldado-mensageiro por causa de forte chuva, Hitler adquiriu o livro Berlim, de Osborn, que tratava da história arquitetônica da cidade. Em vez de comprar cigarros, aguardente ou gastar com mulheres, preferiu usar quatro marcos para comprar um livro, escolha de lazer atípica para um cabo da linha de frente. Efetuada a compra, marcou timidamente seu nome, local e data no canto superior direito da contracapa: “A. Hitler, Fournes 22/novembro, 1915”. A personalidade de Osborn é pitoresca, logo, instigante. Irreverente, escreveu uma história cultural de Satã, em que chamava os anjos de “as mais enfadonhas das criaturas de Deus”. Em sua época, já criticava certa frivolidade dos populares:

“Em 1908, quando a editora Seeman Verlag solicitou a Osborn que escrevesse um guia de Berlim, ele concordou mas sob o pressuposto de que era um crítico de arte, não um guia turístico. Desse modo, recebeu o leitor em seu Berlim com a advertência maldosa: por que seu editor incluiria essa cidade entre as 'capitais culturais' da Europa quando 'o que o mundo do século XX acha mais fascinante na capital do Reich alemão não é exatamente a beleza de seus monumentos históricos ou de sua rica herança cultural'?”

Crítico de arte, passou a temporariamente ser crítico de guerra. Ao ver um mensageiro galopando num cavalo pelo campo aberto, comparou a cena em que homem e animal usavam máscaras contra gás a uma tela de Hieronymus Bosch. Ficou horrorizado ao ver tantos corpos humanos em decomposição, com ratazanas se alimentando deles. Lugares antes encantadores tinham se transformado em imagens de horror: “simplesmente incompreensível”, escrevera.

O exemplar de Hitler de Berlim está completamente desgastado, sinal de que foi lido com entusiasmo por aquele soldado que tinha tantas ambições artísticas. Muito do ideal estético nazista faz menções indiretas aos gostos de Osborn: se Hitler realmente começou a pensar que a Alemanha deveria ser “depurada” de “elementos estrangeiros” nas artes a partir da leitura do crítico – também adepto de expressões mordazes para se referir a essas contaminações, como “selvageria do gosto” ou “profusão de pragas artísticas” –, não está claro no livro de Ryback, mas a ideia de ambos nesse âmbito parece casada, já que Osborn também louvava a Grécia revivida em território prussiano, como ele considerava o caso do Portão de Brandemburgo. (Para entender rapidamente o apreço estético consagrado na ditadura nazista, recomendo o conhecido documentário Arquitetura da destruição.)

No mesmo livro, Osborn utiliza um capítulo de trinta páginas “sobre Frederico, o Grande, o lendário rei-guerreiro do século XVIII que consolidou a primazia da Prússia como potência militar” (palavras de Ryback). Frederico se tornaria o futuro ídolo de Hitler, mas Osborn se põe a criticá-lo: chama o monarca de intrometido, avarento, “filho total da mediocridade artística de sua época”, mais preocupado com a beleza das próprias perucas que com as construções públicas. O desmoronamento da igreja do Gendarmenmarkt é narrado com prazer especial: o rei obrigou os construtores a encerrarem a obra em metade do tempo previsto e com orçamento reduzido; quando os operários estavam terminando o telhado, as paredes da igreja desabaram, matando quarenta deles. Osborn comenta sobre o jocoso livreto Sinto muito escrito pelos cidadãos berlinenses, defendendo a irônica teoria de que as paredes haviam sido construídas com pão de mel em vez de pedras. Esse capítulo tem claros sinais de manuseio e exame cuidadoso da parte de Hitler. Nem por isso o futuro ditador alemão deixou de louvar e tomar Frederico como referência de liderança. Assim, esse caso ajuda a responder a pergunta que fiz lá em cima sobre se o fato de Hitler adorar Fichte e Schopenhauer – sendo que Schopenhauer desprezava Fichte com convicção – poderia ser um sinal de que alguém não foi realmente lido desses dois. Hitler parece ter adotado diversas ideias de Osborn, mas não a desse capítulo em particular que pretendia inspirar menosprezo por Frederico. Com certeza admirou muitos homens responsáveis pelos livros que lia, mas de maneira seletiva.

O capítulo sobre Osborn (capítulo chamado de Livro 1: Leituras da linha de frente, 1915), encerra com alguns parágrafos interessantes, deixados providencialmente para o final. Ryback frisa que o exemplar de Berlim pertencente a Hitler seria guardado com ele para o resto da vida e:

“Na segurança protetora da coleção de Hitler, esse volume sobreviveu à queima de livros de maio de 1933 – como judeu, Osborn constava da lista dos autores proibidos e acabou emigrando para os Estados Unidos – e aos bombardeios subsequentes dos Aliados na década de 1940”.

Esse é aquele momento da leitura em que você para, pousa o livro no colo e digere tudo que veio antes de forma diferente por causa da inserção de uma informação essencial que dá um novo tom ao capítulo a ser findado. É aquele momento em que você tem vontade de largar o livro para dar um passeio reflexivo. Ryback poderia nos ter dito que Osborn era judeu lá nos primeiros parágrafos. Ciente de como mostrar ao leitor o que ele deve sentir e em qual instante da leitura é preciso demonstrar esse sentimento, deixou o impacto para o final. Não vale somente para a literatura: um livro é valioso não somente pelo que informa, mas como informa.

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A biblioteca esquecida de Hitler certamente abriga inúmeras histórias valiosas sobre os autores que Hitler leu, as pessoas com quem fez amizade – e que acabaram influenciando suas leituras com recomendações –, sua atitude diante do desenrolar da guerra. Não me cabe aqui resumir todos esses causos, até porque não quero que ninguém perca a vontade de ler o livro por ele já estar todo revelado em estrutura nesta postagem, então vou me ater a apenas mais um capítulo escolhido ao acaso (já que todos me interessaram muito – exceto aquele sobre misticismo, e percebi que não me interessara por ele porque páginas e páginas se passaram e não senti vontade de acentuar nada com minha lapiseira). É o capítulo 3º, A trilogia de Hitler, sobre a escritura do Mein Kampf.

Na noite de 8 de novembro de 1923, Hitler surgiu numa cervejaria de Munique dando um tiro de pistola no teto, anunciou uma revolução nacional e sob a mira de armas obrigou a liderança política da cidade ali reunida a jurar fidelidade. Na manhã seguinte, marchou com 2 mil radicais de direita para o centro de Munique, pretendendo reproduzir a marcha de Mussolini sobre Roma que possibilitou a ascensão do governo fascista. Na praça Odeon, foram recebidos a tiros por um cordão militar. Dezesseis morreram. Hitler foi preso três dias depois.

“Quase imediatamente, Kahr, Seisser e Lussow [os membros da liderança política local] se afastaram do empreendimento fracassado. Alegaram ter tentado dissuadir Hitler de realizar o golpe, o que era verdade, e que ele os coagira a cooperar sob a mira de armas, o que também era. Hitler alternou-se entre a perplexidade e a raiva pela 'traição' deles. Primeiro cogitou suicidar-se, depois realizou uma breve greve de fome, e enfim decidiu 'ajustar contas'”.

O ajuste de contas começou com um texto de sessenta páginas que serviu para sua defesa perante o tribunal. Encerrou dizendo que seria absolvido pela história (pelo visto, uma expressão recorrente entre ditadores que esperam justificar atrocidades). Depois, recebendo a regalia de ter luz acesa durante a noite na prisão, começou a fazer leituras que embasariam a obra pela qual é conhecido, obra que inicialmente se chamaria Uma batalha de quatro anos e meio contra mentiras, estupidez e covardia, mas que mudara de nome graças à sugestão de Max Amann, empregado na editora do Partido Nazista. Essas leituras seriam chamadas por ele de “formação superior às custas do Estado”, já que, de certo modo, parecia nutrir ressentimento por não ter podido prosseguir seus estudos formais. Além de escrever o livro por motivação vingativa, Hitler também o fez para se livrar de dívidas financeiras, principalmente aquelas que contraíra com o assessor jurídico que o ajudara a preparar a defesa em seu julgamento. Assim, contava com um alto número de vendas quando seu trabalho fosse publicado.

Henry Ford foi uma das maiores inspirações de Hitler no combate aos judeus:

“Além do perfil racial do povo alemão, de Günther, outra influência importante sobre o conteúdo intelectual de Mein Kampf foi uma tradução alemã de O judeu internacional, de Henry Ford. Embora não disponhamos mais do exemplar pessoal de Hitler da tradução em dois volumes do execrável tratado racista, sabemos que Hitler possuía uma, assim como um retrato do autor, ao menos um ano antes de começar a redigir Mein Kampf. 'A parede junto à escrivaninha no escritório particular de Hitler está decorada com um retrato grande de Henry Ford', informou o New York Times em dezembro de 1922. 'Na antecâmara, uma mesa grande está coberta de livros, quase todos sendo uma tradução de um livro escrito e publicado por Henry Ford'.
O livro de Ford havia sido publicado naquele ano em alemão sob o título Der internationale Jude: Ein Weltproblem, e foi uma sensação imediata. 'Li-o e me tornei antissemita', recordou Baldur von Schirach, o futuro líder da Juventude Nazista, que era adolescente quando surgiu o livro de Ford. 'Naquela época aquele livro causou uma impressão tão profunda nos meus amigos e em mim porque víamos em Henry Ford a imagem do sucesso, bem como o expoente de uma política social progressista'”.

A adoração a Ford também se mostraria na frequente menção a ele nos discursos de Hitler e sua declaração a um repórter: “considero Ford minha inspiração”. Eu, que já abomino Ford desde minhas leituras sobre o nazismo na adolescência, questiono: Hitler teria sido menos nefasto caso o empresário de carros não tivesse existido? É claro que naquele tempo havia muito material anunciando, às escâncaras, o ódio pelos judeus e a superioridade racial de alguns povos, mas Ford pareceu muito “didático” e prático em seu livro. Além disso, muitas pessoas o tiveram em grande crédito e por meio dele passaram a externar com orgulho um antissemitismo antes retraído. Não duvido que um sujeito perverso e megalomaníaco como Hitler pudesse se tornar ainda pior por causa das leituras que levava em consideração e das quais tirava aprimoramentos de suas ideias. Nada estava tão ruim que não pudesse piorar no turbulento começo do século XX.

Houve uma série de adiamentos até que o trabalho de Hitler pudesse ser publicado. Uma das preocupações de Max Amann era com o fraco mercado de livros da época: com Hitler ainda proibido de falar em público por causa de sua condenação, não seria possível fazer comício nas cervejarias, e com isso se perdia uma grande fonte de venda de livros. Mas o principal motivo para o adiamento foi o processo de edição da obra: até sete companheiros de Hitler afirmaram ter trabalhado no texto antes de seu lançamento. A “formação superior às custas do Estado” da qual Hitler se vangloriara, pensando-se um exemplar autodidata, parece não ter surtido efeito na erradicação de seus constantes erros gramaticais e fragmentos intelectualmente vazios, cheios de vícios que podiam passar despercebidos na fala, mas que num livro ficavam gritantes.

“Hanfstaengl recorda que batalhou com Hitler em torno das setenta primeiras páginas dos originais, afirmando ter eliminado os 'piores adjetivos' e seu 'emprego excessivo de superlativos', discordando sobre várias nuances. Quando Hitler escreveu sobre seu 'talento' como pintor, Hanfstaengl teria censurado: 'Você não pode dizer isso. Outros podem dizer, mas você mesmo não pode'. Hanfstaengl também observou 'pequenas desonestidades', como o fato de Hitler usar o termo 'funcionário público graduado' para seu pai. Hanfstaengl também reclamou da natureza provinciana do intelecto de Hitler, que o fez aplicar um termo como história do mundo – Weltgeschichte – a 'conflitos europeus pouco importantes'. Após essa sessão de revisão inicial, Hanfstaengl afirma, Hitler nunca mais lhe mostrou nenhuma parte do manuscrito”.

Rudolf Hess e Ilse, sua esposa, também recordaram a “batalha” que viveram com Hitler e seu original por meses. Só aos poucos Hitler dera razão às modificações que se mostravam necessárias em seu manuscrito.

Se Hitler esperava aclamação pública quando do lançamento do livro, deve ter ficado decepcionado com o que recebeu. Jornais descreveram sua obra como ato de suicídio político num artigo intitulado “O fim de Hitler”, duvidaram da “estabilidade mental do autor” e um crítico observou que faltou ao recente escritor ajustar contas consigo próprio. Mesmo pessoas de extrema direita teceram comentários negativos sobre a obra, ofendendo-se com o antissemitismo exacerbado que advogava. Um jornal brincou com seu nome e disse que deveria se chamar “Sein Krampf” (Sua cãibra). O livro, ilegível (no sentido de que não valia a pena ser lido) para muitos, se tornou motivo de piada em certos círculos. Mesmo assim, Hitler não se deixou capitular: presenteou muitas pessoas com sua obra e passou a trabalhar no segundo volume dela. Em pouco tempo terminara a proposta.

“(...) enquanto o volume I foi recebido com sarcasmo e desprezo pelos resenhistas, o volume 2 foi simplesmente ignorado – não apenas pelos críticos, mas pelos leitores também. Vendeu menos de setecentos exemplares após um ano no mercado”.

Pouco tempo depois, já estava escrevendo seu terceiro livro, que nunca seria publicado: um livro sobre suas memórias de guerra, inspirado nos relatos de Ernst Jünger (um dos livros dele sobre o tema, Tempestade de aço, foi publicado pela Cosac). O livro era mais comedido e analítico que os anteriormente escritos, tentando ser filosófico de maneira eclética. As ideias são apresentadas sem referências às fontes, mas é possível perceber uma colcha de pensamentos de um leitor que lia tudo. Ryback aposta em dois motivos para o livro não ter sido finalizado: primeiro, porque Hitler voltou à atividade política intensa – e seus momentos de escrita só apareciam quando ele estava em situação de privação, como quando estava preso ou sem forças políticas –, segundo, porque o mercado de livros estava fraco e as publicações anteriores do futuro ditador já tinham sido um fracasso no mercado.

“O próprio Hitler pode também ter reconhecido as falhas intrínsecas na estrutura eclética e irregular do livro ou possivelmente suas limitações como escritor. 'Que belo italiano Mussolini fala a escreve', Hitler comentou com seu advogado pessoal e futuro Gauleiter, Hans Frank. 'Não sou capaz de fazer isso em alemão. Simplesmente não consigo organizar meus pensamentos quando estou escrevendo'. Em comparação com a obra de Mussolini, Hitler observou, Mein Kampf parecia um exercício de fantasia 'atrás das grades', pouco mais que uma 'série de artigos para o Völkischer Beobachter'. 'Ich bin kein Schriftsteller', Hitler disse para Frank. 'Não sou um escritor'”.

Com o chamado das obrigações políticas que o levaram a governar a Alemanha, Hitler nunca mais teve tempo e viço para escrever. Continuou, todavia, lendo livros até o dia de sua morte.

***

Foi muito proveitoso voltar a ler sobre a II Guerra com A biblioteca esquecida de Hitler. O livro é sério e bem escrito (há livros sérios, fidedignos, mas escritos de maneira plástica; ou, pior e surrealisticamente, há livros cujo estilo nos remete à palavra “alumínio”, se entendem o que digo), passa por uma fatia de assunto meio marginal a respeito do nazismo. Não é o único a escrever sobre os livros de Hitler – Ryback menciona autores de estudos com o mesmo objetivo –, mas é o que temos à mão facilmente aqui no Brasil, na bela publicação da Companhia das Letras. A partir dele, algumas breves e esparsas ponderações:

Há uma foto de Hitler no Arquivo de Nietzsche, em Weimar. Muitos tentam ligar Nietzsche ao antissemitismo, quando, como bem assinala Ryback, antissemita declarada era a irmã de Nietzsche, cuidadora daqueles arquivos. É claro que o filósofo alemão inspira algo de sensacional – Hitler apropriou-se de alguns de seus termos fortes como “vontade de poder” –, mas não deve ser responsabilizado pelo Nazismo. Sua irmã, sim, era visivelmente desequilibrada em plena sanidade. Nietzsche, que não era antissemita mas que defendia uma filosofia que podia ser usada para fins perversos, ainda possui a desculpa de sua doença para justificar ideias extravagantes.
(Já visitei esse arquivo em Weimar. É estranhamente inóspito a visitantes. Há duas salas. Na primeira, objetos de Nietzsche, inúmeros recortes de jornais em vidros e nas paredes – inclusive da época do Nazismo, ligando o filósofo ao Führer –, mas tudo em alemão. Pensei em fotografar para que depois, no dia em que aprendesse alemão, pudesse traduzir, mas no primeiro click a recepcionista, ranzinza não sei se por si ou se por obrigação da função, veio informar que eu não podia tirar fotos e que deveria apagar a que tirara. Na segunda sala, estátuas de Nietzsche, alguns livros e uma cadeira numa janela, cadeira onde ele passou muitos de seus dias mórbidos, quando mental e fisicamente incapaz. Nessa sala, a recepcionista não apareceu para nos sondar. Então tomamos a libertinagem de tirar algumas fotos. Na saída ela perguntou de onde éramos – só conseguimos nos comunicar com ela por intermédio de um casal de amigos que moram na Alemanha, já que ela não falava inglês – e disse que na semana anterior um brasileiro estivera lá fazendo pesquisas. Quem me dera saber alemão e poder ir lá fazer pesquisas!)


Muito se comenta sobre o vegetarianismo de Hitler. As falácias argumentativas dos carniceiros crescem como o pé-de-feijão do João e saem pela cidade espalhando jatos de fogo e cólera. Não me lembro de em nenhum momento ter cogitado que “comer carne é algo maligno porque, veja, não há histórico de psicopata que tenha sido vegetariano e a grande maioria dos ditadores comia carne”, porque posso falhar nas minhas análises, mas acho que não falho de forma tão absurdamente ignorante e débil. Mas já ouvi e li muitos doutores de fórum virtual essa fusão entre Hitler e vegetarianismo como prova de que... Pois é, prova de quê? Acho que carniceiros se sentem imorais comendo carne e querem tentar provar que imorais são os vegetarianos, pois Hitler era vegetariano. Mas em que biografia, documento, discurso, relato médico está escrito que Hitler era vegetariano por compaixão aos animais? Li certa vez que era mesmo vegetariano, mas que às vezes burlava a dieta (não lembro onde li, então não sei se é uma informação honesta). O filósofo Michel Onfray, em O ventre dos filósofos: crítica da razão dietética, encerra um capítulo com a informação solta sobre o vegetarianismo de Hitler, de certo modo insinuando que um ditador notoriamente cruel era vegetariano. Não sei qual é a necessidade dessa vinculação (e Onfray parece muito tomado de ódio para ser levado tão a sério, vide suas críticas de lamaçal a Freud) e, mesmo que seu vegetarianismo fosse por amor aos animais, não entendo o que pretende provar. Mas temos certeza que não era por amor, pois Ryback bem cita as palavras de Hitler: “As vacas foram criadas para dar leite; os bois, para conduzir cargas”. Quem nesse mundo que se preocupe com os animais pensará que eles têm a função de nos prover com leite e labor? Hitler, ególatra pensando que o planeta deveria se render a ele e a seu ideal de raça perfeita, só era vegetariano pelo bem de si mesmo e de sua saúde debilitada. Não deveria jamais ser citado em discussões sobre veganismo.

Por último, nosso conhecimento de Hitler como leitor só nos faz refletir o quanto era miserável. Interessante – se não fosse interessante, eu não me preocuparia em ler livros sobre ele –, mas miserável. Lia livros todas as noites, lia quase tudo que lhe caía nas mãos, desde tratados militares e catálogos sobre armas até estudos astrológicos e autoajuda popularesca. Schopenhauer o teria desprezado nessas leituras em série, diria que não era capaz de lidar com a própria solidão e de ter pensamentos próprios. Demonstra não ter lido ou não ter prestado atenção a esses textos que o fariam tão bem para crescer como indivíduo. Optou por adotar apenas a antissociabilidade de Schopenhauer e deixou que o monstro que havia dentro de si se estendesse para o mundo. Quis ser lembrado de maneira poderosa, mas a posteridade o vê como alguém que alcançou poder absoluto de maneira muito difícil de entender (a pergunta é: “como é que a sociedade pôde conceber alguém como Hitler?” – não me lembro onde li isso, acho que foi no Conversas com Albert Speer, do Joachim Fest, que estou terminando) e depois fracassou. Merece, enfim, ser lembrado como um mau leitor. Fico feliz, ao encerrar A biblioteca esquecida de Hitler, em saber que um dos piores ditadores da história era, no fim das contas, um leitor muito fraco que não sabia escolher tão bem o que lia e confundia quantidade com qualidade. Se fosse um bom leitor, eu ficaria tentada a admirá-lo um bocado, pelo menos nesse aspecto dos livros. Não aconteceu. Prossigo nas leituras sobre ele porque realmente é de se questionar como no século XX uma pessoa com tamanha degeneração moral pôde adquirir poder. Como leitor, é possível entender Hitler, mas jamais louvá-lo. Acho que sei separar as coisas e mesmo reconhecer as possíveis qualidades de alguém que socialmente recebe puro menosprezo. Com pontuais exceções, não precisei separar Hitler de seus livros: sua biblioteca o define.

terça-feira, junho 02, 2015

Movimentos que criam monstros


Todos os dias, vertentes extremas de movimentos sociais produzem uma nova safra de ativistas delirantes. Talvez você não saiba disso porque está muito ocupado existindo para além deste mundo bizarro. Talvez não saiba disso porque não frequenta a deep web desses movimentos sociais, que ocorre na tradicional e superficial teia eletrônica. Não é que eu queira alarmar alguém, mas preciso contar o que vi em minhas andanças por ruas escuras, quando era noite, chovia e um novo universo se mostrou para mim acontecendo dentro de bocas de lobo e em becos nunca antes desbravados. Sei que sobrevivi. Mas minha mente ficou com marcas indeléveis.

Os criadores do site de downloads gratuitos The Pirate Bay costumavam chamar suas vidas fora do computador de “away from keyboard”, em tradução livre: “longe do teclado”. Um dos responsáveis pela expressão explicou, no documentário sobre o site, que eles não faziam essa diferenciação entre vida real e vida virtual porque a vida virtual era muito real. Acho que é uma das definições que mais me marcaram nas últimas experiências com leitura de mundo. Atualmente, a maioria das pessoas está conectada. No tempo livre, estamos mais conectados do que desconectados. Logo, quando interagimos com alguém “virtual”, não estamos socializando com um ser que adquiriu uma segunda vida, como no jogo, mas com alguém que existe e usa a internet apenas como uma extensão de si mesmo, nem que seja da parte mais cruel dos seus arquivos pessoais. Às vezes caminho pela rua e vejo pessoas aparentemente dóceis. Sempre me pergunto se aquilo não é apenas um disfarce e elas não são, quem sabe, responsáveis pelos perfis mais horrorosos que comemoram na sessão de comentários de jornais, revistas e blogs quando moças são estupradas por usarem vestidos curtos, quando mulheres têm suas fotos íntimas vazadas por ex-namorados, quando homens são assassinados por suas parceiras, quando brancos são mortos por negros. Essas pessoas não são virtuais. Elas são absolutamente reais. E estão destruindo a civilização ao perpetuarem barbárie em nome da liberdade de expressão ou sob o eufemismo de “justiça social” na internet. Não vou me ater àqueles que dizem que uma mulher estuprada mereceu o que teve se tinha comportamento lascivo. Esse caso já está bem fichado. O que agora me oprime os miolos são os moralistas que defendem revanche contra sujeitos que foram rapidamente classificados como opressores ou descendentes dos opressores do passado. Moralistas que estão se reproduzindo no que chamam de “espaços seguros” da internet, que nada mais são, em boa parte dos casos, do que lugares onde pessoas que se consideram oprimidas estão tramando discursos de ódio para destruir “opressores”. Se você não conhece o tipo, logo vai conhecer. Para apressar as coisas, no final vou indicar uma boa página para que já se tome conhecimento antecipado da proporção que isso está ganhando bem perto do teclado, ou seja, na vida real que diz respeito a todos nós.

A alienação às vezes nos traz calma. Se não sei que sou objeto de ódio e que há uma torcida oculta aguardando eu ser prejudicada para então debochar da minha queda, posso viver tranquilamente, ignorando o mal. Já quando sei exatamente quem são meus “inimigos”, vivo tensa, à espreita e à espera de que o pior aconteça a qualquer instante em qualquer lugar sem qualquer pretexto plausível. Antes de conhecer o buraco negro dos movimentos sociais na internet eu não sabia que eu estava proibida de falar sobre racismo por ser branca e que sou odiada por alguns negros porque eles supõem que os meus antepassados brancos foram genocidas. Eu também não sabia que eu não podia usar apetrechos “culturalmente negros”, como o turbante, por ser branca, mesmo que minha mãe, negra (sou branca porque, olá, para se gerar um filho é preciso misturar dois DNAs, e logo se pode deduzir que tenho essa cor por causa do meu pai, branco), talvez tenha passado para mim, sua filha, a cultura negra que ela não se importaria de passar para sua prole. Com pai branco e mãe negra, sou filha única. Se tivesse uma irmã negra, os criadores de regras para negros e não-negros do movimento negro da internet diriam que ela poderia usar turbante, mas eu, não. Mesmo que tivéssemos a mesma mãe negra. Eu também não sabia que por ser branca e funcionária pública sou corresponsável pela pobreza e pelo fato de alguns homens pobres cometerem crimes como furto, assalto, latrocínio, tortura. Tive uma infância pobre, mas isso não importa: o que importa é que hoje sou “elite” porque sou branca e viajo para o exterior e, por isso, tenho, de alguma forma, culpa pelos presídios lotados. Outra coisa que eu não sabia é que as mulheres precisam se unir em sororidade para derrubar aquele que é culpado por todos os seus problemas: o homem. Não posso criticar mulheres. Qualquer erro que uma mulher cometa é culpa de algum homem ou do espírito machista que paira em todas as cidades e hipnotiza mulheres inocentes sem controle sobre suas próprias ações a reproduzir o que sua entidade criadora – O Homem – quer que elas façam. Preciso desconfiar do meu pai, do meu namorado, dos meus amigos homens: estão todos apenas tentando exercer domínio sobre mim e querem “me levar de volta para o fogão”, como dizem algumas feministas (ou femistas?) que veem o que ninguém mais vê. O homem que precisa ser rechaçado não é somente o tipo que lê o blog Testosterona. Precisa ser rechaçado também o homem que respeita sua mãe, sua esposa, suas amigas, mas resolveu dizer à mulher com quem vive há anos que o cabelo dela fica mais bonito quando cortado na altura do ombro. Uma mulher pode dizer a seu namorado que ele fica melhor com ou sem barba. Mas um homem que diz à sua namorada que ela fica melhor sem usar sombra verde nos olhos é um opressor machista culpado pelo estupro diário de mulheres em todo o mundo. Parece que estou exagerando para causar impacto. Não estou. É exatamente esse o tipo de conversa que está borbulhando nos “espaços seguros” dos movimentos sociais na internet.

O problema são os movimentos? Depende. Como eu já disse em outra ocasião, há inúmeras mulheres defendendo coisas absurdamente diferentes, mas que se intitulam “feministas”. O que acontece hoje é que eu, que me denomino feminista porque acho que homens e mulheres precisam ter igualdade de oportunidades (liberdade para agir além daquilo que a cartilha conservadora ditou como o certo para cada gênero), sou comparada, por pessoas sem conhecimento de causa (nem sempre as culpo), com a mulher que responde por uma página de ódio aos homens e também se intitula feminista. O correto seria ela se chamar “femista” ou “misândrica”. Mas ela quer se chamar de feminista e não há quem vai fazê-la mudar de ideia. Há, portanto, vertentes esquizofrênicas dentro dos movimentos que criam essa confusão na hora de saber quem é quem. A onda ultrapassou tantos limites racionais que agora foi preciso criar uma página chamada “Feminismo sem misandria” para separar feministas de femistas, sendo que as femistas é que deveriam parar de chamar aquilo que fazem de feminismo. Isso é a mesma coisa que eu criar um grupo de mulheres loiras, mulheres de cabelo preto aderirem ao grupo, berrarem que são loiras e depois eu ter que me afastar criando um novo grupo chamado “loiras que não têm cabelo preto”. Feminismo com misandria não é feminismo: é femismo.

Juntando todos os urros da ala doente dos movimentos sociais, chega-se ao denominador comum de que o responsável por todos os males da sociedade é o homem branco heterossexual que vive razoavelmente acima da linha da miséria. Mulheres são vítimas vitalícias, bem como negros, homossexuais e pobres. São pessoas das quais não se pode cobrar discernimento, porque a opressão social as massacra tão gravemente que isso as impede de julgar situações e decidir os rumos da própria jornada. Esses dias uma femista disse que os homens brancos são os reais culpados pelos animais que morrem em abatedouros. Ela queria dizer que não se pode cobrar de uma mulher ou de um negro parte da carga de culpa que se tem com o holocausto animal, porque se eles, mulher e negro, comem carne e bebem leite de vacas estupradas, isso é mera reprodução inconsciente de um mal que começou com o homem branco. O que é interessantíssimo, já que negros africanos se alimentavam de animais muito antes do contato com europeus. Quando o vitimismo age para centrar os holofotes numa suposta perene vítima, está apenas mostrando, àqueles que enxergam bem, que se considera que essas pessoas são extremamente estúpidas, tão estúpidas a ponto de não poderem fazer escolhas. Você me dizer que as pobres mulheres tomam leite por culpa do homem branco e que se eu quiser preservar a vida das vacas eu devo combater o homem branco e não toda a sociedade que bebe leite, parecerá, a mim, que você está chamando mulheres de fantoches. As coisas boas do mundo devem ser louvadas por causa das mulheres, as coisas ruins devem ser execradas porque são obra dos homens. Esses movimentos sociais não estão se tornando muito megalomaníacos e interesseiros? Um aviso importante: paranoia, delírio de grandeza e megalomania são transtornos psicológicos, e não características inseparáveis àqueles que querem justiça.

Segue um breve apanhado (não literal, escrevo com as minhas palavras, mas as ideias e expressões foram todas preservadas) de delírios paranoides tirados da internet. Não pensem que são casos excepcionais defendidos por um ou outro doente. Muitas dessas ideias foram “curtidas” por centenas de pessoas. Páginas que disseminam essas mesmas ideias são “curtidas” por milhares de pessoas. E também não suspeitem que esse tipo de pensamento não vai crescer – já está crescendo. Se o delírio coletivo pôde atingir os milhares de pessoas que seguem Edir Macedo, por que não poderia existir uma onda que leva dentro dos movimentos sociais? Fartas experiências históricas nos mostram que condutas de ódio podem ganhar força mesmo entre grupos aparentemente sadios.

1. Todo homem é um estuprador em potencial. Ou seja, todo homem é responsável pelo estupro diário de mulheres.
2. “A coisa tá preta” é uma expressão racista.
3. Mulheres que engravidam de meninos deveriam se recusar a amamentar esses bebês, pois é do berço que devemos tirar o poder dos homens.
4. Todo branco é um genocida em potencial. Ter orgulho da pele branca é ter orgulho de ascendentes genocidas.
5. Todo branco é nazista.
6. Um heterossexual jamais deve falar sobre homossexualidade para um homossexual. Um heterossexual deve se restringir a ouvir o que o homossexual tem a dizer.
7. Se uma mulher diz que foi machismo, foi. Não interessa o que houve. Se ela sentiu machismo, basta a palavra dela, pois só mulheres sabem reconhecer machismo.
8. Se um negro diz que foi racismo, foi. Não interessa o que houve. Se ele sentiu racismo, basta a palavra dele, pois só negros sabem reconhecer racismo.
9. Todo branco é racista.
10. Homens brancos heterossexuais dentro de movimentos sociais só servem para carregar bandeira, financiar causas, realizar serviços. Não têm que opinar. Têm que trabalhar e dar dinheiro.
11. Negros que namoram brancos estão traindo o movimento negro.
12. Negros que namoram brancos sofrem de Síndrome de Estocolmo, pois estão apaixonados pelo opressor.
13. Todo homem é um agressor.
14. Se quiser abortar seu bebê porque descobriu que ele é do sexo masculino, ótimo. O mundo precisa de mais mulheres, e de mulheres empoderadas.
15. Uma mulher que acata, após argumentação, a opinião de um homem precisa se empoderar.
16. Gostos sexuais de heterossexuais são todos pautados em construções sociais. As únicas pessoas que podem dizer que “nasceram assim” são os gays.
17. Estudos sobre a história do negro, estudos sobre movimentos sociais, estudos sobre algum assunto que desmorone o que um oprimido (mulher, pobre, negro, homossexual) está falando são prova de academicismo. Vivência é superior a estudo. Estudo, nesse caso, é academicismo de opressor.
19. Alimentar os filhos com alimentos saudáveis e orgânicos e divulgar essa ideia é atitude de gente gordofóbica e privilegiada. Não se deve dizer para as mães alimentarem melhor seus filhos, porque mulheres pobres não têm condições, neste planeta opressivo, de não oferecer a seus filhos comidas que não sejam industrializadas, cheias de gordura e açúcar.
20. Se se vai criticar alguém que come animais, é preciso criticar homens brancos ricos. Não se deve criticar o trabalhador pobre que chega a casa no final do dia e cozinha macarrão com salsicha.
21. Pessoas negras de religiões africanas que sacrificam animais devem ter o direito de sacrificar animais. Querer impedi-las disso é racismo. Por que não se proíbe o homem branco de comer foie gras?
22. Sacrificar animais em religiões negras é cultura. Não se pode querer abolir isso enquanto abatedouros não forem abolidos, pois essa discussão é hipócrita. Não, touradas não são cultura. Touradas são atitudes estúpidas de espanhóis brancos privilegiados.
23. O rapper Emicida foi fotografado recebendo um beijo no rosto de uma mulher branca. Ele morreu como voz no movimento negro depois dessa traição.
24. Mulheres deveriam se relacionar apenas com mulheres. Mulheres que se relacionam com homens são suspeitas ou ingênuas. Todo homem quer dominar uma mulher. E toda mulher que aceita essa dominação sofre de Síndrome de Estocolmo.
25. Verificar a legitimidade de uma nota de cinquenta reais de um negro é racismo.
26. Não dar bom dia a um negro é racismo.
27. Discordar de um negro é racismo.
28. Mulher que vota em candidatos do sexo masculino está perpetuando machismo.
29. Fazer feijoada na versão vegana é um desrespeito à cultura negra. A verdadeira feijoada tem restos de animais. E foram os negros que inventaram a feijoada.
30. Pratos tipicamente de culturas africanas não podem ter a receita alterada, pois isso seria apropriação cultural. Se um prato africano leva somente três ingredientes e você, branco, quiser fazer e acrescentar um quarto, isso é desrespeito. E apropriação cultural indevida.
31. Mulheres bissexuais usam lésbicas somente para se divertir. E quem não for lésbica não pode nem começar a tentar contestar essa informação.
32. Um homem que luta pela causa das minorias, mas não namora uma mulher gorda, uma mulher negra ou um transsexual é abominavelmente hipócrita e só adere à causa das minorias para roubar protagonismo.
33. Sempre que um negro disser uma coisa e um branco discordar, eis a prova de que o negro estava certo: o fato de um branco discordar.
34. Debater com um negro e se opor a alguma ideia que ele apresenta é deixá-lo inseguro e tacitamente querer rebaixá-lo à condição de escravo. Não se “silencia” um negro.
35. Homens que não querem fazer sexo oral em suas parceiras quando elas estão menstruadas são machistas.
36. Um assovio na rua deveria ser considerado estupro.
37. Mulheres são estupradas e mutiladas todos os dias das mais diversas formas, mesmo que não percebam.
38. Se um homem na universidade fez uma mísera coisa que você considerou machismo, vá e coloque o nome dele na porta do banheiro feminino, escreva ao lado o curso que ele faz e incentive suas amigas a nutrirem essa “lista de machistas”.
39. Se uma mulher quiser dizer que um flerte bobo é assédio, ela deve ter o direito de fazer isso e de denunciar o agressor.
40. Homossexuais mulheres são boas. Homossexuais homens são só machistas com uma nova roupagem.
41. É louvável que uma mulher ameace cortar o pênis de um homem que está discutindo com ela.
42. Somente pessoas “de esquerda” podem ser veganas. Pessoas “de direita” sendo veganas estão caindo em contradição, porque a exploração animal é culpa do capitalismo e do livre mercado.
43. Um homem que se declara feminista está roubando protagonismo.
44. Uma pessoa branca que fica conhecida por sua luta pelos negros está apenas roubando protagonismo. Negros não precisam que brancos os defendam.
45. Se você não foi estuprada, não pode opinar sobre estupro.
46. É errado um homem se masturbar imaginando uma mulher que não deu autorização para ele pensar nela.
47. Hitler é avô de todas as pessoas brancas de hoje.
48. Gordos saudáveis não são exceção. São regra. Quem discorda dessa tese é gordofóbico.
49. Veganismo é elitista. Pobres não têm acesso a comidas sem origem animal.
50. O patriarcado é branco.
51. Se um negro explora outro, é porque ele aprendeu a explorar com homens brancos.
52. Se uma mulher é heterossexual, é porque a sociedade a ensinou a ser assim.
53. Homens brancos ricos não podem reclamar de homens negros pobres que assaltam, sequestram, torturam e matam pessoas. Se esses homens negros pobres fazem isso, a culpa é do homem branco rico. Portanto, ou ele revê seus privilégios, ou se cala.
54. Se uma mulher faz sexo consentido com um homem e depois se arrepende, ela tem o direito de alegar que foi estupro. O machismo age por vias escondidas e às vezes é só mais tarde que se percebe que se foi vítima dele.
55. Pokemon é um desenho homofóbico, pois personagens machos só se interessam por personagens fêmeas.
56. Quando um homem diz para uma mulher fazer uma coisa, ela deve fazer o contrário.
57. O negro não sabe o que é viver um dia sequer sem ser vítima de racismo.
58. Homens devem ser coagidos a urinar sentados. Se mulheres não podem urinar em pé, urinar em pé é sintoma de uma sociedade machista.
59. Homens que possuem bandas e vão para o palco sem camisa têm que ser humilhados e obrigados a se vestir. Se uma mulher não pode fazer shows sem camisa, homens também não podem.
60. Uma mulher bebe um pouco. Um homem pergunta se ele pode beijá-la e depois pergunta se eles podem fazer sexo. A mulher diz sim. Mas isso não significa que ela consentiu. Ou seja, temos aí um grave caso de estupro, se ela achar que foi.
61. Se um homem se veste de mulher só para brincar, isto é machismo.
62. Um homem branco que se pinta para fazer um personagem negro está sendo racista.
63. Pessoas brancas não têm cultura.

Acho que eu poderia chegar a mais de mil falas diferentes, nesses termos, vindas de pessoas envolvidas com movimentos sociais. Mas paro por aqui. Sessenta e três itens já deve ser suficiente para enojar algum leitor razoável que não tolere discurso de ódio, não interessa de onde ele venha. Alguns dentro desses movimentos pregam a igualdade. E alguns, que estão vencendo debates no berro, pregam segregação e ódio. Repito: isso não é raro – e está aumentando. Se você é um dos “privilegiados”, cuide para não ser odiado, surrado e morto como “mera justa reação do oprimido”.

PARA VER MAIS (e tentando ver o lado "humorado" dessa esquizofrenia)
Ambas excelentes.

sábado, março 21, 2015

Montando uma biblioteca particular


Não tenho o hábito de visitar casas de pessoas. Nem tinha quando era mais sociável. Casas são universos particulares e refúgios – quando chego à casa de alguém, espero encontrar mais do indivíduo ali, seu mundo, seus móveis bem escolhidos, suas cores, seus livros, sua parafernália kitsch. Acredito que boa parte do meu desprezo com as casas alheias é porque elas são muito desinteressantes e decepcionantes. Chega-se à casa de um músico, por exemplo, e tudo o que se vê são móveis entediantes e os instrumentos básicos que ele toca profissionalmente. Onde estão os discos, os CDs, as dezenas de livros sobre música? Não estão. É algo que jamais entenderei. A casa, que era para ser o melhor sítio para alguém querer estar, é, na maioria das vezes, um ambiente inóspito. Não é um lar. É só um lugar para fugir da chuva e dormir. Quando se aprende a ser feliz na solidão, quer-se qualificar a solidão. Sua casa é a sua solidão: qualifique-a. 

Lembro que na época da minha primeira tentativa de faculdade eu visitava a casa de colegas do mesmo curso ou de cursos similares. Apesar de adorar coisas e a disposição das coisas de forma pitoresca e idiossincrática, eu ia a essas casas mais para ver que livros havia lá, pois já sabia que lares interessantes como organismos vivos eram peças de filmes, e não da vida real – pelo menos não da vida real que eu vivia, com desprezadores que enxergavam um mundo decorativo binário: ou se era muito rico com requinte e móveis modernistas, ou se era simplesmente pobre e a única opção seria comprar móveis de falsa madeira na cor amarela das Casas Bahia. Meus colegas, não sendo ricos, achavam que só poderiam montar um lar com feiuras de lojas populares. Já acostumada a essa situação – e não tendo coragem de soltar o que pensava: “por que não vai à loja de móveis usados e compra umas coisas velhas que, pelo menos, têm beleza e história?” –, eu ia conhecer essas casas esperando encontrar bons livros de bons estudantes que supostamente amavam a ciência à qual decidiram dedicar suas vidas. Bem, para essa decepção eu nunca estive preparada. Como é que um estudante de História ou pretenso amante da Antropologia não possui em casa alguns livros básicos, clássicos, referenciais? Como é que um estudante não se esforça para ter uma estante especializada para colocar os livros que o acompanharão por toda a vida? Quando achei parcos valiosos livros naquelas prateleiras frias, vazias, dramáticas, eram os livros que algum orientador “forçou” o sujeito a comprar para escrever uma monografia que prestasse. Aqui, reforço algo que sempre defendi: se alguém ou algo (professor, escola, profissão, status) precisa te obrigar a ler sobre um assunto que você alega amar, adorar, é porque você não ama nem adora esse assunto. Se você não é capaz, por livre vontade e sem interesses tacanhos, de devotar seu tempo a esse tal amor, não é amor. Foi lastimável encontrar penúria nas estantes de meus colegas de Humanas, e foi mais lastimável ainda quando eu comparei esse desleixo com a fartura que encontrei, por exemplo, nas estantes de pequenas damas do artesanato. Visitei, nesta minha breve vida de poucos passeios, as casas de inúmeras mulheres (jovens e senhoras) que tinham paixão por artesanato. As prateleiras delas tinham livros, revistas, recortes, fichários, cadernos com anotações, genuínas bibliotecas particulares dos trabalhos manuais. Não há um dia em que essas apaixonadas não passem namorando suas agulhas, alisando seus algodões, buscando um novo ponto de bordado. Você não espera encontrar um universo íntimo detalhista na casa de uma senhorinha, assim como não espera encontrar estantes desguarnecidas na casa de um humanista pedante – até descobrir, claro, antes tarde do que nunca, que certos pedantismos são escancarados ao se conhecer o lar de uma pessoa. O pedante pode se entregar no cotidiano – ou sua casa pode entregá-lo. E, não, nenhum desses personagens que critico escondiam suas nobres leituras em bibliotecas virtuais repletas de e-books.

Não sei se isso é problema de país emergente, mas ter que dizer às pessoas para que leiam – para que leiam, não para que leiam isso ou aquilo – soa patético. O Brasil pode ter várias qualidades que me fazem querer morar aqui a vida inteira, mas educação e cultura da leitura não estão entre elas. Nesta nação de atores preguiçosos, livros em casa só servem para fins bem delimitados: estudar para um concurso, dar uma aula, escrever uma tese. E o mesmo pacóvio que lê inúmeros livros só para escrever uma tese vai ficar chateado se, após anos de hospedagem na biblioteca da universidade, a tese dele não tiver sido acessada nenhuma vez – e dirá: “acho incrível como as pessoas não leem nesse lugar”. Sim, porque ele não é capaz de, por livre arbítrio, ler um clássico, mas a população acadêmica deveria se interessar em ler a tese dele, um estranho que só foi se doutorar para usar o doutoramento como argumento (ou apenas eu nesse mundo presenciei inúmeros abusos de título em que alguém foi tacitamente proibido de discutir com finos de altas titulações?). A cultura da não-leitura gera tantos percalços no cotidiano que, mais uma vez, nada se torna melhor, se você é um leitor de fato, do que se afastar dos outros. Na cultura da não-leitura, o indivíduo que lê um livro a cada três meses vai se exibir, vai achar que um novo livro é como um novo sapato que precisa ser percebido por outrem, vai palestrar. Tenho um colega de trabalho que leu dois livros em quatro anos. É somente desses livros que ele fala. Quando inicia o falatório sobre esses livros, diz “esses tempos li um livro que...”, mostrando a todos que a expressão “esses tempos” é mesmo muito vaga. Conclusão deste parágrafo: sobre livros e títulos, quem mais se exibe é o que mais insegurança tem. Precisar afirmar em demasia alguma coisa sobre si denota complexo de inferioridade. E não é por acaso que as pessoas mais arrogantes sejam as mais complexadas. Não interessa o que alguém diz sobre si, mas o que alguém faz com o que possui em si. Toda vez que vejo uma figura muito "exibida", penso que ela já foi uma criança. Hoje, adulta, vive para implorar atenção – “vejam como sou incrível!”, “por favor, vejam os cursos que fiz, vejam como estudei!”, “percebam quão peculiar eu sou!” –, e eu me questiono como teria sido quando criança. Melhor ou pior? Crianças estão sempre clamando atenção, reféns de suas carências explicáveis, mostrando a todos suas meias novas e dizendo que sempre vão a parques sensacionais. Crianças. Mas como lidar com adultos que não cresceram e ainda agem como se dependessem sempre da aprovação alheia e medem a própria felicidade de acordo com a reação que os outros têm sobre suas vidas? A ojeriza não vai embora, mas se mistura a um pouco de misericórdia quando percebemos que aquela pulga humana que não cala a boca e se sente tão necessitada de afeto já foi uma criança. Até um chefe esdrúxulo será melhor aturado se você pensar que há não tantos anos ele era uma miniatura. Exibidos precisam se exibir para sobreviver. Fuja deles, e, se não conseguir isso sempre, pense neles como crianças beiçudas que não amadureceram. 

Retomando após tantos devaneios: é preciso que todos tenhamos uma biblioteca particular que seja uma fonte do conhecimento que nos é atraente. A biblioteca permite releituras, organização das ideias. Você se recordará de uma descrição pessimista de Henry Miller sobre o mundo e reviverá aquilo em minutos: o livro está na sua estante. Em menos de um quarto de minuto achei o trecho que precisava de Trópico de capricórnio, coisa que seria impossível se eu não tivesse minha biblioteca pessoal: “Todos ao meu redor eram fracassados e, se não fracassados, ridículos. Especialmente os que haviam 'vencido'. Estes me faziam chorar de enfado”. (Muitos elegem Trópico de câncer como o melhor livro dele, mas eu discordo.) É impossível que um livro bom não dê vontade ao leitor de lê-lo de novo, pelo menos alguns trechos. Um livro valioso não é apenas lido como um panfleto de rua: ele é estudado, destrinchado, analisado com paixão e técnica. Quando alguém chega à biblioteca onde trabalho e doa um livro dizendo que ele é maravilhoso, sempre me pergunto: “por que está doando, então?” Ou essa pessoa tem uma cópia, ou o livro não é tão maravilhoso. Às vezes descubro que o “livro maravilhoso” foi doado porque o doador precisava de mais espaço em casa. Cada um com os critérios de avaliação do seu planeta, mas do planeta onde eu venho as coisas consideradas maravilhosas ficam conosco em vez de serem tidas como entulho que deve ir embora para dar lugar a uma televisão maior. Uma biblioteca particular – que pode ter tamanhos variadíssimos, dependendo dos assuntos de interesse e da quantidade de material publicado sobre eles (seu dono gosta de história de modo geral ou gosta de história das mulheres no Brasil Imperial?) – é uma prioridade. Eu não me imagino numa casa sem cama, assim como não me imagino numa casa sem uma pequena biblioteca.

Para montar uma biblioteca particular são necessárias duas coisas: um plano de leitura e um plano de compra. O plano de leitura deve ser feito pensando nos assuntos que te interessam. Nesse ponto, é salutar ponderar se o assunto escolhido é interessante apenas como uma curiosidade efêmera ou se você realmente está disposto a gastar tempo para dominá-lo à sua maneira. Livros podem ser belos objetos decorativos, mas decorar não é sua finalidade primeva, portanto não vale a pena adquirir livros sobre assuntos que não te satisfazem de verdade. “Sim, estou disposto a gastar meu tempo com este tema”. Já temos, aí, um início para um plano de leitura. Depois de definir os assuntos, que podem ser três ou dez e ficar espiralados, é preciso saber o que há sobre eles disponível. Se é algo para o qual você não terá a ajuda de um professor que já vem com o pacote de apostilas prontas e todos os infográficos perfeitos, uma leitura mais rasa no começo será melhor para não cair em ciladas em que facilmente os autodidatas caem. O autodidatismo é um brinco de ouro quando bem realizado, mas pode se tornar tão asqueroso quanto um montinho de cabelo escuro no ralo quando levado da forma errada. Há autodidatas que aprenderam a aprender e aprenderam a buscar o que é bom. E há autodidatas que leem qualquer coisa, sem critério, sem seleção, sem ver diferença entre Jorge Luis Borges e Paulo Coelho (acham que porque este se diz influenciado por aquele existe entre eles alguma conexão), sem saber que não se compra nem se lê (exceto se for para criticar) livro de editora ruim. Como saber o que ler sobre seu assunto querido se não há uma referência que abone ou desabone títulos? Usando os próprios livros como referência e lendo artigos na internet. Talvez você seja um aprendiz de leitor de História e não saiba muito bem quais historiadores deve ler. Compre livros sobre movimentos importantes dentro da História (livros sobre a Escola dos Annales, por exemplo) e lá você verá inúmeros nomes de historiadores graúdos que merecem leitura pelo excelente trabalho que fizeram. Compre livros gerais de boas editoras e esses livros quase enciclopédicos darão inúmeras dicas implícitas de “por onde começar”. Fazendo um plano de leitura, vale a pena visitar bibliotecas públicas, jogar o nome do assunto em livrarias virtuais (além de livros com aquele termo, essas lojas costumam fazer recomendações do tipo “quem comprou este livro também levou aquele outro”, que podem ajudar a conhecer mais obras que se tornarão possíveis leituras), ler resenhas na internet. Tendo o plano de leitura encaminhado – é bom lembrar que esses planos são sempre refeitos porque uns assuntos levam a outros –, já é possível estabelecer um plano de compra.

O plano de compra consiste em adequar seu orçamento pessoal à sua vontade de adquirir livros e organizar essas finanças específicas. O mito de que livros são caros precisa ser destruído. Chamar o ato de ler de um ato elitista porque “livros são caros” poderia fazer algum sentido se proferido por engenheiros e médicos, cujos livros custam mais de trezentos reais, mas acho que nem esses estudantes e profissionais reclamam tanto do valor dos livros quanto o leitor médio de Humanas e literatura. Literatura é quase uma piada de tão barata hoje em dia. Há centenas de clássicos popularizados em livros de bolso, e a versão é muito elogiável – bons tradutores trabalham para a L&PM Pocket, para a Companhia de Bolso e para a parceria Companhia & Penguin. Nessa seara, nenhuma desculpa será perdoada. Talvez alguns livros sejam mais caros (a coleção d'A Comédia Humana pela Biblioteca Azul, os livros de ficção da Cosac), mas basta que o comprador se organize financeiramente para adquiri-los. Suponho estar falando, aqui, com um leitor-comprador de poucos recursos, pois é claro que muitas pessoas podem comprar os livros que desejam no momento que desejam. E é para esse leitor pobre que continuarei falando, até porque é para ele que o plano de compra faz sentido (um leitor rico precisa planejar apenas suas leituras, e não suas aquisições). O leitor de poucos recursos precisa pesquisar. 

Com o plano de leitura em mãos, é hora de pesquisar o valor dos livros. Você pode anotar ao lado de cada livro o valor mais barato que encontrou e onde o livro estava por aquele valor. Dependendo do orçamento mensal destinado a qualificar sua biblioteca particular, é possível comprar alguns livros por mês. Digamos que você consiga destinar apenas 60 reais por mês para comprar livros. E gostaria de comprar aquele livro do Jung pela editora Vozes que custa 80. Você pode aguardar mais um mês para tê-lo ou pode abrir mão de alguma trivialidade que libere 20 reais para completar a compra se a vontade de ter o livro for uma emergência. Com um orçamento baixo, eu recomendo, se possível, que espere algum tempo para poder efetuar uma compra maior. Tenho no meu e-mail uma pasta chamada “COMÉRCIO”, onde estão listadas uma porção de coisas que preciso comprar, principalmente livros. Quando um livro me interessa, escrevo um e-mail para mim mesma e depois o movo para essa pasta. A lista vai aumentando, mas o meu anseio pode esperar, já que eu tenho em casa muitos livros não lidos e muitos livros que precisam ser relidos. E o anseio espera até que alguma livraria virtual apresente promoções. Não é raro que essas livrarias façam promoções do tipo “12% de desconto no boleto” e/ou “frete grátis nas compras acima de 199 reais” (não mais tão comum hoje em dia, há também a promoção do desconto progressivo: quanto mais você compra, mais desconto consegue, sendo acima de quatro livros um grande desconto fixo, geralmente de 20%), então sempre vale a pena esperar para comprar certos livros nesses casos, principalmente livros não tão badalados que estão sempre pelo mesmo preço e só sairão mais barato com esse tipo de desconto dado no valor total do carrinho. Em quatro meses, o personagem hipotético do orçamento de 60 reais terá guardado 240 reais. É possível fazer uma bela compra com esse valor, principalmente considerando que as lojas costumam dar frete grátis para um valor como esse. 240 reais não é muito dinheiro, mas permite a compra de nobres livros – o que faz desmoronar a teoria do derrotista indolente sobre livros serem caros. Livros que hoje eu poderia comprar com esses 240 reais: 

Compreender Schopenhauer, Jean Lefranc 30 reais
Aleijadinho e o aeroplano, Guiomar de Grammont 30 reais
Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos, Maria Pallares-Burke 50 reais
Freud – mas por que tanto ódio?, Elisabeth Roudinesco 22 reais
O brilho do bronze, um diário, Bóris Fausto 36 reais
Anna Kariênina, Tolstói 51 reais
As aventuras de Pinóquio, história de um boneco, Carlo Collodi 20 reais

Sete livros aparentemente bons, de excelentes editoras (Vozes, Cosac, Civilização Brasileira, Zahar, Unesp) e que custaram 239 reais. Tem gente que gasta esse valor num dia indo à praia (pelo histórico de postagens, imagino que eu pareça ter birra de praia, mas na verdade é só uma perseguição à cultura estranha da praia que impera aqui em Santa Catarina) e depois vai dizer que não lê porque livros são caros. Tem gente que compra esses livros sem reclamar, enriquece o espírito e vai montando aos poucos uma biblioteca particular que é um tesouro muito personalizado. 

Uma maneira de pensar se sua casa ou sua biblioteca particular são uma representação de você é imaginar alguém que te conheça muito e um dia chega à sua casa, sem saber que é a sua casa e sem você lá. E essa pessoa é questionada: “de quem você suspeita que seja esta casa?” Você gosta de jardinagem e haverá livros sobre o assunto nas prateleiras; você se interessa pela ética que considera animais e haverá livros de Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione e Sônia T. Felipe todos juntos numa seção; há dezenas de livros de literatura africana porque você está realizando um estudo pessoal sobre os diferentes tipos de histórias fictícias criadas no continente; e há, ali, alguns livros e dicionários de francês. Uma pessoa que conhece o patchwork de interesses que te transforma numa peça única saberá que aquela estante só pode ser sua. Essa é uma biblioteca rica e especializada que faz sentido. Monte um refúgio que faça sentido. 

Como procuro dar conselhos que já sigo, não será nenhuma novidade se eu disser que meu quarto é uma extensão de mim. Transformei-o em um lar, em um espaço que me abraça toda vez que eu entro e diz: “bem-vinda de volta, aqui você estará bem”. E realmente estou. É aqui que está meu universo importante, é aqui que eu coloco o que é valioso para mim. Transformar este espaço em aconchego significa dar ainda mais vontade de que eu volte a ele. Será que muitas pessoas odeiam ficar em casa justamente porque suas casas não representam nada e não possuem atrativos para o corpo e a mente? Talvez. Mas esse pode ser um problema mais interior do que o interior da própria casa: de nada adianta uma morada fabulosa se você não consegue se fazer fabuloso dentro dela porque odeia a si mesmo. Uma biblioteca particular gigantesca e belíssima não resolverá o problema de quem não suporta a ausência de movimento mundano e montou uma biblioteca só por colecionismo. Um livro bom não servirá para nada sob as lentes erradas. Da mesma forma, o meu mau julgamento talvez não mereça alcançar todas as pessoas que possuem casas tristes e bibliotecas acabadas, pois talvez sejam leitoras até bem-intencionadas, mas que não pararam para refletir que ler um livro por mês de uma biblioteca pública não basta para se sentir a plenitude de uma relação íntima com o conhecimento que vem dos livros. Não é nenhum sacrifício fazer de sua casa um lar onde você queira sempre estar. Só digo isso porque testo o quanto um lar muito particular faz bem à minha vida, à minha lucidez. Nossas mentes e nossos lares são lugares que não podemos deixar corromper.